quinta-feira, 5 de julho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 24, 25, 26 e 27 (Final)

24
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Voltei várias vezes para rever a filha de Bianca. Soraia era uma menina linda, olhos cansados e uma boca maravilhosa. Não necessariamente transávamos em todos os encontros. Conversávamos muito sobre a vida. O quê uma prostituta pode saber da vida? Muitas coisas. Elas deveriam trabalhar como conselheiras sentimentais. Conhecem tudo sobre casais, já dizia que eu não ficaria com Fernanda, e que ela casaria com outro homem. Na última conversa, seu dia de folga, entramos num barzinho. Bebemos algumas cervejas.
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“Você é pedinte” – Ele me disse entre uma bebida e outra.
“Como assim?”
“Exige demais da Fernanda”
“Nem cobro nada, me esforço para ser um cara legal”
“É isso que te ferra! Mulher gosta de atenção, só isso”
“Eu dou atenção”
“Não, você pede. Por isso, pedinte. Mulheres gostam de ter uma pessoa para conversar, falar sobre tudo que pensam. Aflições, mulheres adoram falar sobre os medos. É uma espécie de terapia ter um namorado, marido ou amante que nos ouça”
“Eu sirvo para isso com você?”
“Serve”
“Não sou pedinte com você?”
“Não. Deveria ser assim também com Fernanda”
“Não posso dizer todos os meus medos para Fernanda”
“Quem disse essa bobagem?”
“Tenho medo de broxar”
“Esse é seu maior medo?” – Eu tinha outros medos, mas esse parecia terrível – “Quantos caras você acha que aparecem no meu quarto e são broxas?”
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Quantas vezes estamos dispostos a enfrentar nossos medos? Pegar aquela situação guardada no fundo da gaveta, fazer uma reviravolta. Estamos acostumados a brigar com nossos demônios? Tirar a espada, cortar a cabeça daquele monstro terrível que nos consome em nossa existência? Meu maior medo não era de ser impotente sexualmente diante de uma mulher, falei aquilo pois foi a primeira coisa que veio à cabeça. Mas tenho outros medos, muito piores. Todos nós, preferimos esconder nossas falhas, dizendo simplesmente que é melhor esquecer o assunto e seguir em frente.
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“Acha que conseguirei alguma coisa com Fernanda?”
“Não. Acho que sua relação já era”
“Ela diz que continua apaixonada por mim”
“Paixão não basta” – Pega uma batata, coloca na boca. Toma um gole de cerveja – “Para amar é preciso ter coragem, já dizia a música”
“Eu sou apaixonado”
“É mentira, você não é apaixonado. Mesmo assim, vai sofrer quando perdê-la para um outro otário”
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Na noite em que conheci Camila, Fernanda conhece o homem previsto por Soraia. O final da história vocês já conhecem, se casaram e viveram felizes para sempre. Soraia eu nunca mais vi, outro dia passei no local onde ela trabalhava, o velho Homero continuava trabalhando como segurança. Disse que a dona era outra, e que as meninas também. Não me reconheceu, não sabia que eu era amigo de Soraia. Não disse para onde elas foram, pois não sabia.
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No hospital as dores eram fortes, mais uma vez peço para Luisa me tirar daquele lugar. Ela não consegue disfarçar que minha vontade era quase impossível.
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25
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Uma quarta-feira, Leo entra no quarto. Ainda estou no hospital, apesar de me sentir muito melhor. Ele está com Luisa e com Fernanda. Chega todo eufórico, eu sinto a alegria em seus olhos. Todos estão alegres, na verdade. Devo compartilhar todo entusiasmo? Põe uma grande tela branca na parede, monta todo aparelho, diz que vai passar o resultado do seu trabalho dos últimos meses. Está falando sobre o documentário, é evidente. Todos se ajeitam, Luisa sobe um pouco mais a cabeceira da minha cama.
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No disco Abbey Road a foto da capa é certeira em relação a morte de Paul. Leo diz que o famoso Beatle morreu num acidente de moto em 1966. São diversas pistas que indicam a veracidade do fato. Paul segura o cigarro na mão direita, mas o cara é canhoto. Eu seguro o cigarro com a mão esquerda, e também sou canhoto, que merda de coincidência é essa? O cara está em descompasso, com os olhos fechados. Um carro estacionado também indica o código da morte, supostamente 281F quer dizer se Paul estivesse vivo teria 28 anos.
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Queria poder tirar uma foto desse instante. Assim como John está como padre; Luiza seria o anjo que me levaria para uma vida celeste. O morto, Paul, com terno e descalço; necessariamente seria eu mesmo, pelas próprias circunstâncias. George é o coveiro, com vestimentas mais modestas; só podia ser o Leo. Não haveria carro preto estacionado para o funeral, mas uma cama de hospital. 381F? Fernanda seria o inferno, me trazendo situação carnal, do sexo e da vontade de continuar vivo nesse mundo. Fernanda me mostrando quase tudo que eu devia ter feito, mas não fiz.
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Pensei em contar minha idéia, mas acabei calando para ouvir o documentário.
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No meio do filme estou dormindo. Era difícil ficar alerta por muito tempo, os ombros doíam. Fernanda deita a cabeceira da cama. O momento feliz é drasticamente interrompido pela minha figura mórbida e fracassada. Estou deitado, nenhum único movimento. Leo interrompe o filme, leva todo equipamento embora.
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Luisa fica comigo a noite toda. Eu sinto sua presença apesar de não vê-la em todos os instantes. Ajuda quando tenho que tomar banho, comer. Várias coisas. Ela sempre foi uma amiga leal. Devia ter percebido, ao longo dos anos, que o amor que Luisa tinha por mim era muito maior do que tinha por Leo. Se Fernanda me amasse desse jeito, hoje estaríamos juntos. Os desencontros da vida, aparecendo tão claramente quando não se pode mas fazer absolutamente nada. Poderia amar Luisa algum dia? Se vivesse mais dois, três anos; como seria nossa relação? Não penso nisso, nunca pensei. Só tenho uma certeza, não posso mais amar Fernanda.
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O quarto está escuro, Luisa deve ter saído para comer alguma coisa. Eu penso em quantos motivos teria para amar Luisa. As famosas listas de Leo na minha cabeça. Como pensar nisso agora? Leo é um dos meus melhores amigos. Luisa chega, percebe que estou acordado. Ela se aproxima, pergunta se estou precisando de alguma coisa. Nossos olhares são diferentes, mas paralelos. Ela sente piedade, eu remorso.
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“Não posso morrer sem saber a verdade”
“Que verdade é tão importante para você?”
“Nós dois, sempre fomos bons amigos”
“Sim, continuarei sendo sua amiga”
“Mas uma coisa me incomoda, não sei como explicar”
“Quer saber se poderia ter existido algo entre a gente?”
“Sim”
“Poderia, mas não aconteceu”
“Não há mais chance?”
“Nenhuma”
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26
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Luisa está cansada. Ela está comigo quase todos os dias, desde que os primeiros sintomas começaram a aparecer. Cuidava de mim, era tudo que eu tinha em minha vida. Mesmo assim sabia que meu amor não poderia ser como ela queria. Assim, acaba me ajudando em meu plano, de encontrar com minha filha. Luisa sabia que era arriscado sair do hospital, mas também sabia quanto era importante minha promessa. O aniversário estava próximo, talvez seria minha última oportunidade de conhecer, abraçar e beijar minha filha.
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Luisa e Vanessa me ajudam, elas trocam minhas roupas, lavam meus cabelos. Estou perfumado, quase não se percebe que passei vários dias trancado no quarto. Faltava o presente, eu lembrei que as pessoas recebem presentes quando comemoram o aniversário não somente quando recebem visitas no hospital. Leo ficou encarregado de comprar alguma coisa, nos encontraríamos no meio do caminho.
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Não sei como conseguiram, mas em menos de dez minutos eu estava no carro de Vanessa indo ao encontro de Cíntia. Meu coração está disparado, sinto medo de ser rejeitado; mas isso não me importa mais. Queria apenas mostrar meu amor, dizer tudo que estava sentido. Uma lágrima, apenas uma lágrima em meu rosto poderia dizer tudo. Leo aparece.
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“Ela vai adorar o presente”
“Eu confio em você”
“Comprei Beatles”
“Não podia ser diferente”
“Eu escutei Beatles pela primeira vez quando tinha doze anos”
“Ela vai gostar”
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Não conseguia falar muito, minha garganta doía. Luisa esteve com Camila, tinham armado o encontro. Provavelmente Cíntia estava preparada para me ouvir, e quem sabe pela má impressão que eu possa causar. Meu coração está disparado, eu sinto falta de ar. Era tudo que não podia acontecer comigo, tinha que me manter firme, seguro. Pensei em todas as coisas boas que poderiam acontecer ao encontrar minha filha, o coração diminui o batimento. Não podia perder a oportunidade. Morrer num instante como esse.
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“Já sabe o que vai falar?”
“Não” – Olho pela janela, era noite – “Acho que vou abraçá-la, simplesmente”
“Ela não sabe de nada. Camila disse que não iria contar nada sobre você”
“É melhor assim”
“Queria estar junto com você”
“Tem coisa que só podemos fazer sozinhos” – Seguro o presente na mão. Meus dedos, meu braço estão fracos – “É o meu momento de ficar sozinho”
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Chegamos. Era uma casa grande, vários carros na porta. Era dia de festa, lembrei. Amigos da família, parentes, amigos de escola. Todos estariam agora comemorando com Cíntia. Lá de fora podíamos ouvir a música, todos estavam dançando, alegres. A juventude é uma herança agradável do nosso tempo, ninguém deveria perdê-la por causa de um amor ou qualquer outra coisa desagradável. Vanessa pára o carro, era minha chance de desistir.
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Luisa me ajuda sair, Leo e Vanessa ficariam esperando caso acontecesse algum imprevisto. Não consigo ficar de pé, Luisa me ajuda subir as escadas. Não era alto, mas era muito difícil chegar ao topo.
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“Estou com medo”
“Tudo vai dar certo”
“Caso ela me odeie?”
“Ela vai saber que está sendo sincero”
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27
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No Abbey Road, a música diz “And in the end the love you take is equal to the love you make". No fim o amor que levamos é igual ao amor que fizemos. Não fiz nada por Cíntia, como ela poderia me amar? Penso nisso, paro no meio da escada. Luisa sabe que estou ansioso, tenta me ajudar. Eu olho para as estrelas, o céu estava aberto apesar de ser uma noite de inverno. Queria voltar, estar seguro no hospital. Luisa diz que é uma grande bobagem pensar nisso agora, estou muito próximo de conhecer minha filha.
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Chegamos. Luisa toca a campainha. Camila nos atende, fica surpresa com minha presença. Quer que eu entre, eu digo que prefiro uma conversa rápida com Cíntia ali mesmo. Ela volta para a festa. Lá dentro uma gritaria enorme, para mim tinham vozes de criança ainda, mas eram todos adolescentes. Uma menina grita, diz que é o Anderson que está na porta. Todos sorriem, se divertem. Não era o Anderson. Cíntia abre a porta, fica assustada ao me ver. Logo a sensação de desconforto passa, ela fecha a porta, Luisa também se afasta. Agora estamos nós dois somente, testemunhas do mundo.
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“Está esperando o Anderson?” – Eu pergunto sem jeito.
“Sim, ele é meu namorado”
“Sua mãe me disse que você não namora” – Digo agradavelmente.
“Quem é você?”
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A maldita pergunta. A única coisa que não queria ouvir de Cíntia nesse momento era aquela pergunta. Poderíamos ficar conversando por horas, esquecer que lá dentro uma festa está comemorando seu aniversário. Iria perguntar várias coisas, tinha em mente saber como ela aprendeu andar. Se ficou doente por causa da garganta. O primeiro dia na escola. Como eu queria estar com Cíntia em seu primeiro dia de aula. Queria saber o que ela come, como se veste no cotidiano. Quais as gírias? Adora gírias que não são do meu tempo. Mas não, a pergunta que eu não queria responder.
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“Seu pai”
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Um silêncio. Cíntia ficou surpresa, é claro que desconfiada. Olhar, pode não dizer nada em alguns momentos, eu precisava ouvir alguma coisa. Nada, ela não diz nada. Não é sempre que um estranho aparece em sua porta dizendo que é seu pai. Ela não sabe para onde olhar, para meus olhos cansados ou para qualquer outra coisa inanimada. Não acredita no que estou dizendo, é evidente. Abre a porta, quer entrar novamente na festa e esquecer esse encontro. Volta, alguma coisa faz com que ela pense melhor na situação, era preciso me ouvir.
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“Como assim?”
“Seu pai”
“Só pode estar brincando”
“Não estou”
“Cadê o Anderson? Ele está escondido em algum lugar. Só pode ser uma brincadeira dele”
“Não conheço o Anderson”
“Pare com isso, está brincando comigo! Não gosto dessa brincadeira”
“Não é brincadeira”
“Vai! Levanta dessa cadeira!” – Cíntia tenta me puxar pelo braço – “Pare de fingir, vai, pode parar com essa coisa, brincadeira besta!” – Vejo em seus olhos a tristeza, ela está chorando.
“Não é brincadeira”
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Cíntia me abraça, me beija. Sabemos tantas coisas para dizer, mas no momento o silêncio basta.
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O frio continua, posso ver o sol batendo no rosto. As enfermeiras olham para os monitores. Linha subia, descia. Ninguém tem esperança. Remédios? Não existem mais possibilidades. Linha sobe, desce. Parece onda, parece música. O silêncio, é o fim. Todos continuam me olhando. Linha sobe, linha desce. Linha esticada.
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FIM
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2 comentários:

Neisa Fontes disse...

Achei uma p... sacanagem o cara morrer. Mas tudo bem! Gostei do encontro com a filha, embora tenha sido apenas um, pelo menos foi!
Adorei a história!
Estou esperando a próxima!

Sérgio Oliveira disse...

Claro que foi sacanagem, não quero mocinhos nas minhas histórias....rs