sábado, 30 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 21, 22 e 23

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21
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Tanto tempo para perceber a vida. Descobri tarde, quando não podia mais fazer nada. Se soubesse, todos os instantes seriam mais do que instantes. Abro os olhos, Luisa ficou a noite inteira comigo. Leo apareceu mas foi logo embora. Estou deitado na cama de hospital, novamente os tubos e os medicamentos pelo corpo. Luisa está numa cadeira, do meu lado. Ela não percebe que acordei, tento sussurrar seu nome. Ela está cansada, quase dormindo naquela posição incomoda. Tento mais uma vez chamá-la, minha voz sai fraca. Luisa dorme.
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O fato de Paul estar morto divide os fãs. Alguns não acreditavam na história, pensando ser apenas uma jogada do mercado fonográfico. Eu não duvido, mas não acredito nos motivos. Outros acham que ele morreu mesmo, e que vários sinais foram deixados pela banda desde 1966. Eu vi Leo chorar uma vez, quando tocamos no assunto. Leo acreditava que um sujeito muito parecido e talentoso estaria se passando por Paul. Tão talentoso que ninguém conseguia notar a diferença. É claro, ele estava bêbado e eu também, por isso o choro não me comoveu tanto quanto ele esperava. Lembrei da história pois sabia que eu não era talentoso o bastante para me passar por quem eu não era.
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Luisa consegue perceber que estou acordado, ela se levanta em vem em minha direção.
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"Você está melhor?"
"Queria comer uma pizza"
"Logo estaremos em casa"
"Fiquei sabendo que não vou mais sair daqui"
"Quem contou?"
"Ouvi a conversa dos enfermeiros"
"Eles não podiam dizer isso"
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Tento me ajeitar na cama, Luisa me ajuda. A verdade era uma só: só continuaria vivo se ficasse naquele lugar. Remédios no horário certo, comida e tudo que pudesse me auxiliar no resto dos meus dias. Em certos momentos isso podia ser considerado como uma preparação para a morte. Meu cérebro poderia não suportar mais uma vez os ataques. De algum modo sabiam como evitá-lo, mesmo sem saber qual era o motivo. Era essa a única explicação que podiam me dar, era a única que me interessava.
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"Hoje mesmo vou trazer o aparelho de DVD"
"Deve ser ótimo ficar aqui vendo filmes" - Eu respondo com ironia.
"Tente ver o lado bom de tudo isso"
"Não existe lado bom em ficar no hospital para sempre"
"Quem sabe descubram alguma coisa nos próximos dias"
"Não gosto de milagres"
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O sonho ainda me confortava. Uma pintura, uma casa com a porta fechada. Procuro nos bolsos, no paletó. A chuva está fraca, aumenta. Meus pés não estão mais no chão, perco a vontade de conversar, de dizer tudo que estou sentindo. Não é só uma doença que pode acabar com a gente, às vezes um amor ou uma desilusão. Estou em milhares de pedaços, lembrando tudo que eu podia ter feito, as várias opções da vida que joguei fora. Luisa não me vê chorando no sonho, mas sei que ela sabe como estou me sentindo.
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Ainda estou sonhando. Fernanda aparece. Ela trouxe um dos meus filmes prediletos. Senta-se ao meu lado, eu inclino a cabeça. Não consigo me mover por causa dos fortes remédios. Ela me beija a boca, sinto o corpo ficar quente, a dor na cabeça aumenta. Seria Fernanda a responsável pela minha doença? Seria Fernanda a cura? Sinto o perfume, que se espalha nas mãos e no corpo. Seu cabelo também é perfumado. Mais uma vez o beijo, nós dançamos num salão enorme, no dia da formatura.
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"Vou ficar essa noite aqui, com você"
"Não precisa"
Acordo. Estou sozinho.
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22
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A madrugada passou rápido. Fernanda me cobriu durante a noite. Na verdade foi Luisa quem pegou o cobertor. Ela se ajeita no sofá, se cobre. Queria estar com Fernanda, dormir junto. Iríamos assistir o filme imaginário que ela trouxe na noite anterior. De manhã o sol, e aquele lanche na mesa. Não tenho fome, nem sinto gosto pelas coisas. Fernanda iria dizer que precisava ir embora, eu agradeço a companhia. Fico por alguns instantes sozinho, com medo e esperando que alguma coisa acontecesse. Luisa volta.
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"Fernanda esteve comigo"
"Como assim?"
"Ela dormiu aqui"
"Impossível. Ela está com Camilo. Longe daqui"
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Quanto tempo agüentaria aquela vida? Mais alguns dias ou quem sabe meses? Minha perna piora, não consigo mais movimentá-la. A cabeça doía um pouco, mas era uma dor estranha, uma espécie de dormência. Parecia que tinha colocado minha cabeça dentro de um balde com gelo, ficado horas ali submerso.
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"Viu alguém com balde de gelo aqui?"
"Gelo?"
"Sim. Colocaram minha cabeça dentro do balde. Eu sinto que minha cabeça está dormente"
"Não, nada de gelo. Quer que eu chame algum médico, a enfermeira?"
"Não. Esquece que te perguntei alguma coisa"
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Os sonhos deixaram de existir, talvez pela minha decisão em não procurar mais por Fernanda. E quando me lembrava dos sonhos, eram totalmente desconexos. Água, fogo. Na maioria das vezes uma angústia se espalhando pelo corpo. Nas poucas vezes que tinha algum prazer, era quando meus amigos surgiam para discussões tolas. Às vezes me sentia cansado e dormia no meio da conversa. Quando acordava todos já tinham ido embora. Era a solidão que mais me deixava com medo. O silêncio, o barulho dos carros sumindo, das pessoas conversando no corredor. De repente, era como se ninguém mais existisse no mundo.
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O tempo foi passando. Meu corpo não obedecia mais meus comandos. Ir ao banheiro, tomar banho ou caminhar pelos corredores daquele hospital ficava cada vez mais difícil. Luisa chega, ela está me trazendo um presente. Uma cadeira de rodas não me faria sair daquele quarto.
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"Agora pode fazer várias coisas, até nos visitar no atendimento", disse uma das enfermeiras.
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Não gostava de ser antipático com pessoas que só queriam me ajudar. Soltei um sorriso como de uma criança que acaba de ganhar um presente no natal. O sorriso era falso, e o presente confirmava mais uma vez o que eu era naquele momento: um fracassado. Fracassado por tudo, pelo meu corpo. Fracassado pelas minhas idéias, pelo meu amor. Fracassado como pai, como amante. Fracassado como analista, como tudo. Um enorme fracasso. Pensei em me atirar da janela, levar comigo todos os meus pesadelos. Desisti. Lembrei de Cíntia. Agradeci a enfermeira com um beijo no rosto, ela era uma das pessoas que não me esquecia naquele lugar.
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Os dias passando, eu não sentia melhora. A médica disse que o remédio está fazendo o efeito desejado, mas estava perdendo a força. Eu quero sair daquele lugar, ver as pessoas. Quero ver o movimento dos carros, dos pássaros. Quero ver o vendedor de cachorro-quente, comer uma porcaria qualquer. Tomar refrigerante, abusar do doce. Comeria uma caixa inteira de chocolate, talvez com Luisa. O café, sinto o cheiro do café. Ao mesmo tempo em que me deliciava com os aromas, me embrulhava o estômago numa sensação de nojo, como se estivesse saciado.
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Outra vez lembrei do sonho. Não voava como das outras vezes, mas podia me ver nitidamente na cama daquele hospital. O rosto cadavérico, os braços e pernas minguados. Não tinha mais cabelo, meus dentes eram brancos, extremamente brancos. Estava fraco, minha voz era rouca. Parecia não ser sonho, tudo era muito real. A enfermeira entra no quarto, me aplica mais uma dose do remédio. Doía, meu corpo, se sentia cansado. De repente, não havia mais ninguém. Abro os olhos, Luisa está olhando o movimento da rua pela janela.
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"Você precisa me tirar daqui"
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O mundo estava sendo inútil para mim.
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23
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O Bar era um dos mais movimentados na década de oitenta. Foi perdendo o encanto com os anos, e hoje era apenas um lugar de nostalgia. Na entrada várias fotos de artistas, jogadores de futebol e políticos que freqüentavam o local, e consumiam o maravilhoso prato feito com frutos do mar. Eu gostava mais da cerveja. Tinha sempre um cantor qualquer, lembrando músicas da minha geração. Violão, uma cadeira, uma mesinha com cerveja e um maço de cigarro.
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Eu estava num canto, sozinho. Mas não estava triste, era um dia legal para ficar bebendo uma cerveja, pensando na vida. Era dia dos namorados, um casal na minha frente não parava de se beijar. Era impressionante a paixão daqueles jovens. A música continua, violão e cigarro. Pego o copo de uísque, vou dar uma volta pelo bar. Não estava pensando em nada especial, apenas andar um pouco. Numa mesa três mulheres sentadas, uma delas está fumando. Odeio mulher que fuma, apesar de todas parecerem charmosas. Uma delas me sorri. Não era a mais bonita, mas era a melhor vestida. Eu sento, faço a apresentação de praxe, logo estamos íntimos. As duas outras meninas saem da mesa.
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"Nunca vi você nesse bar" – Ela me perguntando.
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Não era exatamente o início de conversa que eu queria ter, parecia um pouco vazia e repetitiva. Sabe quando duas pessoas se olham, se admiram mas que parece não haver nada em comum? Pois bem, foi esse o meu primeiro contato com Camila.
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"Eu briguei com meu namorado, estou cansada dos homens" – Ela já embriagada.
"Terminei com Fernanda. Minha admiração por mulheres aumentou"
"Por que todos são assim?"
"Assim como?"
"Tão subversivos"
"Não há nada de revolucionário no que disse"
"As mulheres ficam pensando na relação, em algo que poderia consertar tudo. Homens já partem para outra"
"Evidentemente não está falando de todas as mulheres, né?"
"Sim, quase todas"
"Fernanda desistiu de mim e saiu com as amigas para uma festa na faculdade. Amanhã ficaríamos noivos, entende?"
"Mas ela deve estar pensando na relação, com certeza"
"Mulheres não são mais aqueles bibelôs que guardávamos na estante. Ela deve estar se divertindo, achando engraçado o meu papel de idiota"
"Eu sou muito sensível, ouviu? Não faria isso com nenhum homem. Acharia o máximo ficar noiva" – Começa a chorar em meu ombro – "Não gosto de pensar que fui trocada por outra"
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É claro que a bebida tinha um efeito maléfico sobre algumas pessoas. Enquanto para mim, qualquer bebida me ampliava o horizonte, trazendo novas perspectivas. Para Camila trouxe uma perturbação nada motivadora, numa confusão débil do comportamento humano. Como poderia ser tão categórica em relação ao amor? Dizer que as mulheres, quase todas, sofriam com o final do relacionamento; e os homens ficavam todos mais eufóricos, era uma grande bobagem.
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"Acho que precisa encontrar alguém mais despreocupado" – Eu continuando a conversa.
"Despreocupado?"
"Mais irresponsável, sem ficar pensando se está certo ou errado"
"Como assim?" - Era tão difícil dizer para uma mulher que eu estava simplesmente querendo transar.
"Tem que esquecer o seu namorado. Aposto que ele está saindo com outra garota nesse exato momento"
"Concorda comigo, então? Que todos são subversivos"
"Claro que sim" – Naquele hora não estava mais querendo discutir conceitos de coisa nenhuma.
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