segunda-feira, 18 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 1 e 2

O MENOR DOS ENCANTOS

1

Muito frio aquela noite. Meus pés estão gelados. Não consigo movimentá-los, aquecê-los de alguma forma. Mal consigo levantar a cabeça, saber o que está acontecendo em minha volta. Éramos quatro pessoas em meu apartamento, minutos antes de chegar onde estou agora. Estávamos conversando sobre filmes, uma conversa boba e agradável. Preferia conversas despretensiosas, elas dizem mais sobre nosso caráter do que qualquer formulação elaborada, teórica, sobre qualquer assunto. Naquele dia discutiríamos sobre música, minha verdadeira paixão. De repente, no meio da conversa, sinto uma dor muito forte no peito, depois na cabeça. Levantei do sofá onde nós conversávamos, fui até a janela. Estava sentindo falta de ar, uma coisa qualquer me incomodando.

Volto para a conversa, o mal-estar tinha sido passageiro. Música dos filmes, atores. Diretores. Filme de terror, comédia. Não gosto de filme de terror, que jorram sangue. Mesmo assim sabia discutir sobre eles. Fiz uma lista imaginária na cabeça de quais filmes assistiria novamente se tivesse oportunidade. A dor volta, mas dessa vez apenas uma pontada na cabeça. Uma dor fraca, mas continua. Pela primeira vez percebem que eu não estou me sentindo bem. Caio no colo de alguém. Tudo se apaga.

Ainda sinto frio, mas a dor diminui. Não vejo ninguém no quarto, a sensação que sinto é de algum remédio fazendo efeito sobre mim.Um gosto amargo na boca, uma tontura leve e desconfortável. A dor de cabeça não some, mas é bem menor, quase suportável. Um tubo na minha boca, não consigo engolir; nem cuspir. Outro na altura da cintura. Alguns fios espalhados pelo corpo, perto do peito e outro no pescoço. Talvez esteja sedado, minhas pernas não me obedecem. Mãos, braços, dedos e boca. Apenas os olhos parecem se mover em um esforço incrível.

Uma enfermeira entra, junto um outro sujeito. Eles medem minha temperatura, olham duas vezes a prancheta, anotam. Conversam entre si alguma coisa sobre a Tânia. Eu não conheço, mas fiquei sabendo que está grávida do médico plantonista. Posso escutá-los, vê-los andando de um lado para outro naquele quarto frio e claro. Só não posso dizer nada, nem fazê-los perceber que ainda estou vivo. Eles se beijam no rosto, ele vai embora e ela continua examinando os papéis. Queria gritar, perguntar o quê está acontecendo. Ela injeta um medicamento em um dos canos infiltrados no braço. Eu sinto uma queimação, e mesmo pelo impulso da dor, meus braços não se movem.

Eu tinha asas. Voava por toda cidade procurando Fernanda. Fernanda estaria nesse momento dormindo. Ou estaria preocupada comigo? Talvez ela esteja lá fora, na sala de espera. Que notícias o médico daria para Fernanda? Que eu estava próximo ao final dos dias? Continuo voando. A cidade é fria também em meus sonhos. Sempre sonho estar voando, às vezes voando para o passado, o futuro. Sonho com o colégio, com a época da faculdade. Muitas vezes os sonhos são menos nobres, mesmo assim, estou voando. Naquele dia, no hospital, com tubos e remédios, eu sonhava apenas estar procurando Fernanda. Acordo, a sala está escura. Todos foram embora.

Um som, gritante. Todos entram na sala. O frio continua, mas posso ver o sol batendo no rosto. A enfermeira olha para os monitores. Linha subia, descia. Olha para o médico, ele se mantém intacto. Ela coloca mais um medicamento no tubo, novamente uma coisa em mim queima. Parece que engoli alguma coisa quente. Linha sobe, desce. Parece onda, parece música. Ela olha para mim, ele abre minha boca. Não tenho saliva, não posso me mover. Barulho continua, ela entra em desespero. Ele continua me olhando, como se não pudesse fazer absolutamente nada para acabar com minha angústia. Linha sobe, linha desce.





2

A sala foi testemunha de diversas discussões calorosas. Outro dia uma disputa entre mim, Fernanda, Leo e Luisa parecia querer seguir por toda noite. Era uma simples decisão sobre sabor de pizza. No catálogo diversos gostos duvidosos, mesmo assim mantínhamos nossas expectativas pessoais sobre o jantar daquela noite. Apenas uma coisa era certa: vinho tinto. Não haveria pessoa que pudesse duvidar que um bom vinho tinto acompanhasse a pizza com maestria. Leo era diretor de teatro, escrevia roteiros e no momento estava produzindo um filme sobre Beatles. Na verdade era um documentário sobre os Beatles. Fernanda era professora universitária, dava aula de economia. Luisa era palestrante, psicóloga de formação. Eu tentei três faculdades, não terminei nenhuma. Eu trabalhava com ações.

“Tenho uma dúvida incrível para o filme” – Eu e Leo conversávamos enquanto Fernanda e Luisa arrumavam à mesa – “Queria um filme em preto e branco”

O documentário que Leo estava fazendo tomava todo o tempo de nossas discussões, mas na maioria das vezes não conseguia chegar ao resultado esperado. Concordava com Leo sobre o tema, afinal o disco dos Beatles estava fazendo quarenta anos, e merecia um documento como aquele. No entanto, acha que o assunto era tratado de forma maçante por todos os meios de comunicação. Críticos diziam que o disco Sgt. Peppers tinha revolucionado a música e a maneira como se produziam os discos. Um tema muito importante, creio.

“Cara, sabe que entendo pouco de cinema”
“Pô! Mas conhece os Beatles!”
“Sim. Pelos Beatles, e pelo tema; o documentário tem que ser colorido" - Parecia que não íamos sair do assunto.
“Acha mesmo?”

Levanto e vou até meu quarto. Por sorte tinha uma revista atual sobre o assunto. Levei até a sala, mostrei para Leo. Ele ficou olhando para a capa da revista, onde tinha uma cópia do encarte do disco, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Uma edição comemorativa, mais uma das centenas que iriam surgir no mercado.

“Como fazer um filme em preto e branco de uma coisa assim?” – Aponto para a revista – “Você conhece bem a capa, eu não precisava mostrar para você”
“Entendo onde você quer chegar” - Eu não queria chegar à lugar nenhum, apenas convencê-lo sobre a bobagem de se filmar em preto e branco.

Fernanda aparece no meio da discussão, diz que Luisa está precisando da ajuda de Leo. Era apenas uma desculpa para poder ficar sozinha comigo. Ela senta ao meu lado, pega uma taça de vinho. Pergunta sobre o que estávamos discutindo. Eu falo superficialmente sobre o documentário de Leo. Às vezes ele se torna impertinente, principalmente quando está prestes a terminar o roteiro. Quando começar a filmar, então, a coisa piora.

“Novamente sobre o documentário?”
“Sim. Essa semana ele me mostrou o roteiro duas vezes”
“Precisamos conversar”
“Sobre o filme?”
“Sobre nós”

A pizza chega.

Na mesa redonda a discussão sobre filmes continua, Leo é o mais interessado na conversa. Continuo querendo falar sobre pizza, e os diversos sabores e aromas que o povo de São Paulo consegue fazer em tão pouco espaço. Pego um pedaço, coloco na boca. Fernanda está sem fome.
“Como isso pode cheirar tão bem?”



(Continua....)

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