quinta-feira, 28 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 18, 19 e 20


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18
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Conto para Luisa e Leo sobre minha filha. Leo estava debruçado, todo encolhido com seu roteiro. Joga as folhas para o alto. A cada novo dia, novas coisas sobre mim eram reveladas. Luisa perguntou quem era a mãe e o motivo de eu nunca ter dito nada sobre isso. Ela fica mais surpresa ainda quando eu digo que é a Camila. Tudo explicado, resolvo contar uma outra novidade, de que vou procurar minha filha e contar tudo que aconteceu conosco.
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"Ela só tem onze anos, como acha que vai receber tudo?" – Luisa.
"A história pode fazê-la odiar a mãe para sempre" – Leo pegando o roteiro que caiu no chão.
"Eu pensei nisso, mas não posso esperar. Não tenho muito tempo"
"Eu contaria primeiro para Camila, ela quem conhece melhor a sua filha" – Luisa.
"Pois é, esses adolescentes são complicados" – Leo voltando para o roteiro.
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Eu sento no sofá. De qualquer maneira era preciso me preparar para qualquer coisa que acontecesse, só não podia fazer minha filha sofrer. Posso inventar uma história para dizer qual o motivo de ficar tanto tempo afastado. Preso político? Que bobagem, ela nem sabe o que significa ser um preso político, exilado ou coisa do gênero. Eu posso dizer a verdade sobre a família, posso dizer que tive que sumir do mapa pois estava jurado de morte. Meu Deus? Porquê não vêm em minha cabeça pelo menos uma idéia boa? Vou tentar agir naturalmente, sem dizer que esse ou aquele é culpado. Uma coisa era certa, com certeza iria procurar minha filha.
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Um dos melhores discos, segundo crítica e público especializado. Dizem que foi o período em que os músicos mais estiveram em contato com ociosidade. Estavam todos renegando grandes turnês, querendo apenas olhar o tempo passar e as idéias brincarem. Não havia preocupação com o tempo, agenda ou compromissos. O consumo de drogas também é fator determinante para que o álbum chegasse tão longe em matéria de criatividade. Ninguém conseguiria fazer A day in the life em sã consciência, afirma Leo. Nunca usei nenhum tipo de droga, os remédios de agora já eram suficientes para me deixar meio alucinado.
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Procuro Camila no mesmo dia em que tive a conversa com Leo e Luisa. Ela trabalhava num escritório no centro de São Paulo. Era um prédio bonito, bem cuidado. Não era novo. Chego, ponho o crachá. Subo dois andares pela escada. Aguardo Camila por vinte minutos. Ela estava com um cliente, eu preferi esperar do que voltar outra hora. Depois de uma hora e dez minutos ela me atende.
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"Preciso falar com Cíntia"
"Não sabe como se aproximar da nossa filha?"
"Vou sair do país" – Não queria revelar o verdadeiro motivo de estar ali - "Preciso falar o mais rápido possível com minha filha"
"Sabe quando ela nasceu?" – Eu fiquei quieto, não me lembrava direito em que dia de outubro minha filha tinha nascido – "Pois bem, faremos o aniversário"
"Estarei lá"
"Ela vai aguardar, ansiosa"
"Não diga quem eu sou"
"Como assim?"
"Não quero que ela se iluda comigo"
"Quem você é, então?"
"Um amigo, somente um amigo"
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Conversamos mais um pouco sobre Cíntia. Camila me disse que ela estava empolgada com o aniversário. Garotas adoram completar doze anos, é místico. Homens rezam pelos dezoito, mulheres sonham com os doze. Eu realmente não sabia nada sobre mulheres. Pergunto se ela tem namorado, que tipo de música ela gosta; pergunto a cor do cabelo. Camila puxa uma foto da gaveta, diz que é a mais recente. Cíntia é muito bonita, tem os traços da mãe. O namorado, não é bem um namorad. O nome dele? Bem, é um nome bastante comum.
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Em casa a dor reaparece mais forte. Ela nunca me deixou de lado todos esses dias, mas era tão suportável que eu nem percebia sua presença. Deito na cama, o sono demora para chegar. Estava eufórico para conhecer minha filha, mesmo sabendo que demoraria muito para isso acontecer. Nunca rezei para dormir e ter bons sonhos; não rezava para coisa nenhuma. Mas aquela noite eu dormi tranqüilo e cheio de esperança.
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19
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Parte do meu corpo está na cama, meus pés estão quase chegando ao chão. Eu não percebi, mas o ataque da madrugada foi um dos mais violentos dos últimos meses. No travesseiro o vômito, meus olhos estão vermelhos e cansados. Estava sem camisa, devo ter arrancado. A dor de cabeça é forte, estou suado. Luisa entra no quarto antes do almoço, estava preocupada com minha demora. Normalmente acordo antes das nove. Leo me ajuda a sair da cama, eu sinto uma tontura horrível. Ambos me colocam no carro, partimos para o hospital.
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Amiga de Leo me atende novamente. Estou meio atordoado, não sei bem o que andam fazendo comigo. Duas horas no hospital. Sinto sede, minha cabeça continua doer. Luisa e Fernanda estão me olhando, eu sinto vontade de chorar. Qualquer ser humano normal conseguiria suportar aquela situação por muitos meses, eu estava desesperado. A médica entra, se aproxima da minha cama. Ela pergunta como estou me sentindo, mas não é de forma piedosa como qualquer outra visita para doentes. Ela pergunta de forma séria, rígida e querendo saber apenas a verdade. Não consigo sorrir, nem falar muito. Digo que estou melhor, mas ainda sinto dores. Era mentira, eu estava muito pior. Desmaio novamente.
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A médica sai, dois minutos depois chega a enfermeira com mais um medicamento em um dos tubos que está preso em meu braço. Fernanda segura minha outra mão. Ela não precisa dizer nada, recebo seu carinho, que me fortalece. Luisa também era uma ótima amiga, mas o carinho de Fernanda era o único que me fazia continuar vivo. A sensação vai passando, em pouco menos de uma hora estava bem melhor. Mais algumas horas e consigo levantar da cama com ajuda de Luisa. Tomo um banho. De volta para o quarto, deito na cama e durmo até a manhã seguinte. Luisa ficou comigo toda noite, Fernanda viajou com Camilo, não mais nos encontraríamos.
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Depois de dois dias sou liberado. Era horrível ficar naquele lugar, principalmente sabendo que a cura nunca iria existir. Procedimentos, remédios e observação. Luisa disse que iria contratar uma enfermeira para cuidar de mim. Adoro ser bajulado, mas não era o caso. Desisto da oferta, apesar de me parecer útil. Qualquer uma iria sofrer comigo e meu humor descontrolado.
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"Elas não merecem"
"Mas é preciso" - Luisa.
"Se ele não quer, não adianta ficar pensando nisso" - Leo.
"Não pode beber, não pode ir para lugares distantes, não pode comer muito, nem dormir pouco. Tem que tomar todos os remédios" - Luisa relembrando orientações da doutora.
"Posso fazer sexo?"
"Que pergunta" - Leo, sorrindo.
"Sim, fazer sexo pode me ajudar com a auto-estima"
"Isso se você não falhar" - Leo rindo mais ainda.
"Parem com isso!
"Não quero mais fazer sexo"
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Tomo o remédio, caio no sono. Mais uma vez asas, estou voando pela cidade. Dessa vez tudo está colorido, eu consigo escutar minha própria voz também. Todos os meus sonhos eram mudos anteriormente. Dizem que não sonhamos sempre da mesma forma. Meu vôo é mais baixo, estou esbarrando minha barriga no capô dos carros que estão numa fila esperando o farol abrir. Meu grito por Fernanda, depois por Cíntia. Vejo Cíntia num balanço, na praça onde eu costumava ir quando criança. Ela não consegue escutar. Acordo mais uma vez assustado, suando. Meus dias estão chegando, posso sentir. Preciso pedir perdão para minha filha.
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20
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Todos dizem que Strawberry Fields Forever deveria ter sido gravado pela banda do sargento solitário. Leo sempre dizia que uma porção de música dos Beatles, em diferentes épocas, podiam perfeitamente integrar esse álbum. Seu documentário iria propor exatamente isso. Portanto, precisava de entrevistas, críticas e outros documentos que confirmassem sua percepção. Não foi difícil achar quem quisesse participar de um documentário como esse. Até minha participação foi solicitada, mesmo eu não sendo um entendedor do assunto.
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"Vai ficar legal" – Leo tentando me convencer.
"Não sei nada sobre Beatles"
"Não faz mal, você sabe o que quero ouvir"
Leo coloca a câmera na minha frente, prepara o fundo. Luisa arruma meu cabelo, coloca um produto no meu rosto para eu não ficar com cara de morto. Desculpou-se mais tarde, por dizer aquele grosseria, que eu estava parecendo morto. Releio minha fala, seria simples. Deveria dizer minha profissão, minha idade. Alguns comentários sobre o álbum, minha opinião sobre o documentário. A parte mais difícil era sobre mim, mas não cheguei a dizer nada. Um novo ataque me jogou no chão. Tinha acabado o sonho de Leo em me colocar vivo em seu documentário.
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Era o terceiro ataque ocorrido em menos de dois dias. As coisas estavam se complicando cada vez mais. Leo desliga a máquina, pára de filmar. Luisa estava segurando o texto, também vem em minha direção. Meu corpo treme, sinto os braços e as pernas adormecerem. Luisa corre para a cozinha, pega o remédio que estava em cima da geladeira. Coloca duas gotas numa colher. "Droga! Ele esqueceu de tomar os remédios!!". Eu continuo tremendo.
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No céu, continuo voando. Fernanda mais uma vez não é encontrada. Perdi a esperança, não mais a procuraria em meus sonhos. A cidade é fria, nos meus sonhos sinto o corpo tremer. Não vejo Luisa colocando o cobertor sobre meu corpo, tentando esquentá-lo. Eu continuo voando, pretendo chegar na casa de Camila, mas me perco. Uma floresta, escura e fria. De repente, estou no chão. Bichos começam a morder minha perna. Lesmas, insetos de todos os tipos. Enormes aranhas em meu corpo. Um vulto me derruba, não consigo ver seu rosto.
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Leo corre para o telefone, tenta falar com a médica. Ela era a única que poderia me ajudar naquele momento. Ela não estava, Leo entra em desespero. Meu corpo ainda está frio, minha boca seca. Abro os olhos, Luisa parece um anjo. Ela segura minha cabeça, acaricia meus cabelos. Volto ao mundo desconhecido, onde os bichos me atacavam. De repente, nenhum sonho, nenhuma sensação. Se a morte era o final de tudo, era daquele jeito que me sentiria. Mas eu sei que não morri. Leo e Luisa também sabem.
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Nunca tinha sido atacado por insetos, nem mesmo no mundo real. Quando era criança, tinha medo de baratas. Depois de adulto ainda sentia asco por aquele bicho avermelhado, mas não era medo. No sonho, os bichos continuavam andando pelas minhas pernas, chegando ao braço. O vulto novamente surge, me derrubando no chão. Uma poça de lama, fria. Alguma coisa atinge meus olhos, sinto uma queimação. Alguém poderia me acordar, me tirar desse pesadelo. Cobras, jacarés, lagartos, aranhas, moscas. Répteis gigantes se rastejando pelo chão do quarto, andando nas paredes. Não estou mais na floresta. O vulto, novamente, é uma imensa barata. Está em mim, comendo minha pele.
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Vamos para o hospital. Correm mais uma vez para sala de emergência. A médica chega logo em seguida. Tubos novamente no corpo, algo é injetado na veia. Um remédio qualquer, um gosto ruim na boca. A barata começa a morder meus lábios. Mas, de repente, começam a desaparecer. Todos os bichos indo embora, sumindo como se nunca tivessem existido. Já estou novamente de pé, meu corpo não está molhado. Luisa vê minha melhora, meu rosto ficar mais corado. Ainda estou dormindo, mas já sabem que não estou sofrendo.
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2 comentários:

Neisa Fontes disse...

êba êba êba!!!
Olha que grata surpresa me esperava aqui no blog!!!
Estou TÃO contente!!!
Fica só faltando o final... Já não estou mais muito contente... O Final é o mais legal. Ou Não?!
Abç

Sérgio Oliveira disse...

Depende, não sei responder.