terça-feira, 26 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 9, 10 e 11

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9

Salas tão brancas sempre me dão medo. Eu lembro quando acompanhava meu pai, em seus últimos dias de vida. Lembro também do dentista, como eu odiava ir ao dentista. Sala branca trazendo paz, conforto e para mim uma dose de medo. Pego uma revista, uma revista velha com fatos desinteressantes. Ajuda não pensar em doenças, nas coisas que possivelmente irei escutar do médico. Na verdade não era um médico, mas uma médica. Solto a revista, as pessoas ficam me olhando como se tivesse feito alguma coisa errada. Levanto, pego um copo de água. Aparece o número 083, antes uma campainha. Meu número está chegando, meu futuro. Sento, levanto. Sou o próximo.

Luisa estaria comigo. Teve problemas no emprego e desistiu de me acompanhar. Seria ótimo contar com alguém nesse momento. Olho novamente para o envelope que está em minhas mãos, um enigma tão desconfortável. As respostas sobre minha vida, meus desejos e minhas alucinações estão ali, tudo codificado. Penso em tirar do envelope o resultado dos exames, mas seria inútil. Como foi inútil olhar aqueles números, gráficos e comentários durante todo final de semana. Coloco novamente no envelope, são apenas mais alguns minutos para saber a verdade.

Uma das meninas do atendimento fica me olhando. Ela deve saber os motivos de me ver daquele jeito. Deve trabalhar tanto com gente doente que descobre logo o problema. Pensei em mostrar-lhe os exames, saber afinal o que está acontecendo comigo. Levanto, minha vez está chegando. Sento novamente. Meu número chega, seguido daquele barulho característico. Levando, entro na sala da médica.

Doutora. Médica. Tinha um belo sorriso, apesar dos dentes tortos. Pede para que eu sente, pergunta como estou. Não respondo nada. Estou preocupado com o resultado dos exames. Ela pega o envelope, tira as folhas e espalha pela mesa. Faz anotações, rabisca, pinta e borda. Os últimos meses foram péssimos, quis desabafar. Parei, fiquei mais uma vez em silêncio. Ela começa falar, conversa com calma. Suas frases são repletas de significados filosóficos. No fundo, tinha uma idéia banal sobre os seres humanos. Pessoas são coisas, frias e animadas. Isso me confortava.

“Infelizmente os resultados não são animadores”

A frase tão típica dos melodramas. Escutada por mim tão diretamente. Eu sinto uma vontade de chorar, de gritar. Não vejo ninguém do meu lado. Quero sair da sala como se nada estivesse acontecendo. Saio. Não ouvi o resto da história que ela queria me contar. Eu já sei o resto. Resultados não são animadores significam tudo de ruim, de abominável. Haveria cura? Não sei. Sou uma presa fácil do destino, costumo não lutar pelas coisas que me incomodam.

Lá fora continuam me olhando com reprovação. A sensação ainda é pior, pois agora parecem que também sentem piedade. A piedade deles, o olhar de tristeza em direção ao nada. Não preciso de piedade, quero dizer para aquelas pessoas, seus olhos tão confessos. Não preciso de vocês! Saio daquela sala branca, que deveria trazer paz. Saio para não querer voltar mais. Não querer saber a verdade, apenas viver os dias. Tudo agora parece fazer sentido, a vontade de fumar e o barulho do elevador. Entro, ninguém me acompanha. Onde quero chegar? Sempre sonho que fico preso dentro de um elevador e que não consigo falar com ninguém. A maldita angústia do abandono, do fracasso e da solidão.

Na minha cabeça, a voz continua do mesmo modo. Mesmo assim não consigo entender o quê ela quer dizer. Apenas palavras e mais palavras destruindo um pouco mais da minha razão. A minha vida precisava de alguma coisa, um amor qualquer. Poderia amar qualquer pessoa que passasse por mim (preferiria a Fernanda, se ela aceitasse minha proposta). Preciso sorrir, rir das coisas banais. Preciso ir ao cinema, escutar a melhor música. Preciso tomar um banho com água espumante, pegar uma chuva de verão. Preciso de um encanto qualquer, menor que seja, para continuar vivo por esses dias.

Chorei sozinho.



10

Paul McCartney foi mentor da idéia de transformação. O grupo criaria um grupo imaginário, que seria chamado de a Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta. Eles estavam cansados da vida de viagens, turnês. Uma ótima idéia, eu acho. Queria não ser eu mesmo durante alguns períodos da minha vida. Até comentei isso com Leo, quando falávamos sobre o roteiro. Ele disse que a idéia não era muito bem essa, de fugir do que eram. Não entendi, nem queria entender os motivos. Para mim era fantástica a oportunidade de ser outra pessoa. Quantas coisas que não fazem o menor sentido para mim continuariam ser ignoradas em minha nova personalidade?

“Leu o roteiro?” – Leo me pergunta enquanto assiste o telejornal.
“Sim. Continuo achando que as cores cairiam bem”
“Também acho. Na verdade não sei o motivo de escolher preto e branco” – Ficamos uns minutos em silêncio.
“Sobre a idéia de ser outra pessoa. Acho que eles não queriam ser Beatles?”
“Queriam. O disco não poderia ser genial se eles fossem a banda dos corações solitários” – Dessa vez eu me calo, estava passando uma reportagem interessante na televisão.
“Como deve ser virar outra pessoa?”
“Quem você gostaria de ser neste momento?”
“Camilo” – Mais um pouco de silêncio.
“Camilo? Não lembro de nenhum Camilo”
“Noivo da Fernanda”
“Que bobagem”
“Seria bem mais fácil a relação com Fernanda”

Luisa chega na sala. Pergunta sobre o jantar. Em outros momentos ficaríamos discutindo por várias horas sobre as várias possibilidades. O clima não estava bom, não me sentia muito bem para reclamar qualquer coisa. Eles poderiam estar em outro lugar, se divertindo. Mas naquele momento estavam comigo, um moribundo que não sabe bem quanto tempo continuará vivo. Podem pedir qualquer coisa. Comida chinesa cairia bem. A verdade é que não revelei a conversa que tive com a médica. Não tive oportunidade nem coragem de dizer qualquer coisa sobre o assunto.

“Fernanda disse que não poderá vir” – Luisa pega o telefone para fazer o pedido do jantar.
“Deve estar corrido a vida”
“Está. Como sabe, ela vai casar na próxima semana” – Volta para o telefone – “Duas de mussarela”
“Camilo me odeia”
“Ele sabe que você e Fernanda se amam” – Leo entrando na conversa.
“Ele não sabe nada, nada além do que eu e Fernanda sabemos”
“Você precisa mudar isso!” – Luisa – “Tudo isso? Estamos com fome” – Desliga o telefone – “A pizza vai demorar trinta minutos”

Continuamos vendo televisão, todos sentados na sala. A conversa sobre Fernanda está encerrada. Não queria mesmo falar sobre esse assunto, nem dizer que estava sofrendo demais com a situação. Fernanda estaria casada daqui uma semana. Casada com um sujeito legal, muito compreensivo. Isso era o bastante para mim. Informação que me deixava tranqüilo em relação ao seu futuro. Em pensamento desejaria felicidades para Fernanda, mesmo sabendo que meu coração não admitia perdê-la para sempre.

“A Day in the Life, Lennon escreveu quando lia o jornal de manhã. Que ótima inspiração ele teve”
“Eu não tenho mais inspiração”
“Você não é artista”
“Mas algumas vezes pensei que seres humanos pudessem viver histórias maravilhosas”
“Ainda pensa ser outra pessoa?”
“Não. Apenas penso em outro final”





11


Eu tinha dezessete anos quando cheguei em São Paulo. Foi na mesma época que meu pai morreu. Eu estava morando com um tio, que disse que eu deveria vir para capital aprender uma profissão. Naquele momento não estava pensando nisso, queria mesmo era mudar de vida. Então, numa noite resolvi conhecer as mulheres. Não esperava muita coisa delas, na minha idade o essencial podia ser conseguido sem muito esforço, e com um pouco de dinheiro no bolso.

Era uma rua escura no centro da cidade. Rua de paralelepípedo. Nove horas da noite. Ambulantes estavam guardando suas bugigangas. O número de homens na rua era bem maior do que de mulheres. Naquele local, vários bordéis famosos e bem movimentados. Um lugar tinha vários prédios em completo abandono, apesar das lojas e escritórios espalhados. Passo por uma barraca de churrasquinho, continuo procurando o lugar indicado por um amigo. Um portão de ferro depois de uma loja de calçados. Entro, subo as escadas. Lá fora um cheiro forte, uma mistura de coisa azeda, álcool e a carne na brasa. Lá dentro a coisa ainda é pior. Subo as escadas, sinto o mundo civilizado ficando para trás.

Um homem está na porta. Um negro forte, alto e com um dente de ouro. Ele pergunta o que estou procurando, sem jeito e envergonhado digo que estou procurando uma mulher. Ele sorri, vejo mais de perto o seu dente dourado. Ele levanta, diz para eu esperar. Abre um portão de ferro que nos separava de um corredor, vai andando até o final. Seus passos são lentos. Ele volta, senta-se novamente na cadeira no mesmo lugar onde estava quando entrei.

“Quanto você tem de dinheiro?”
“Cinqüenta”
“Não posso arrumar a melhor garota por cinqüenta”
“Pode ser qualquer uma”
“Eu comecei como você, com garotas desse bordel. Olhe minha posição agora, sou dono de todas elas. Não deveria ser tão humilde”
“Qualquer uma, eu já disse”
“Vou arrumar uma menina que vai adorar você”
“Eu agradeço”
“Siga esse corredor, entre no quarto 12”
“Qual o nome da garota?”

Ele sorri da minha pergunta. Não podia fazer a menor diferença o nome da garota. Ele pega o dinheiro, coloca no bolso. Ando pelo corredor. Um misto de alegria, de medo. Era a primeira vez que iria transar com uma garota. Algumas portas fechadas, outras abertas. Tem gente que não faz a menor cerimônia ao estar num lugar como aquele. Homens, velhos, engravatados e mendigos. Todos são muito iguais nessa hora. Uns podem ficar com deusas por alguns minutos, alguns se contentam com qualquer coisa. Chega o número que eu deveria entrar.

A garota estava deitada na cama, devia ter uns vinte e cinco anos. Eu me aproximo. Ela é indiferente, coloca o cigarro na boca. Solta a fumaça apontando o bico para o teto do quarto. Apaga o cigarro com os dedos, coloca no cinzeiro. Levanta-se, vem em minha direção. Era a primeira vez que eu ficava tão próximo de uma mulher que ficaria pelada em instantes. Meu coração bate forte. Seu corpo tão perfeito, era minha percepção naquele dia. Ela está com uma mini-saia, blusa colocada ao corpo. Ela segura minha mão. Ela arruma o cabelo, passa a palma da mão no meu rosto. Sentamos na cama, ela parecia não querer fazer absolutamente nada comigo, como não queria fazer com nenhum homem que entrasse naquele lugar.



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