quarta-feira, 20 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 3. 4 e 5

3

Diversas vezes o mesmo pesadelo: minhas costas pegando fogo. Sonhava que tinha asas, mas sabia que não era um anjo. As asas eram parecidas com as de Gabriel, igual a imagem que vi na última vez que entrei numa igreja. Acho que tinha onze anos. Sabia que era sonho, não podia ter asas, mesmo assim sentia aquilo tudo como se fosse real. Voei pela cidade, pelos prédios; vi um bandido assaltando uma garota, vi um casal de namorados se beijando; vi o engarrafamento no centro da cidade. Expiava, no alto; livre. Continuava voando mesmo com as asas em brasa. De repente estou na cama, me debatendo. A chama, mesmo não existindo de verdade, me incomodava. Acordo assustado.

Vou para o quarto de Luisa, ela está dormindo com Leo. Bato na porta duas vezes, ninguém atende. Ela se levanta calmamente, pergunta qual o motivo de eu ter acordado tão cedo. Eu digo que tive novamente o pesadelo, ela suspira como sabendo onde a história iria parar. Dessa vez estou mais calmo, parece que ando me acostumando com os sonhos. Ela me leva para a sala, faz um café bem forte. Diz que exageramos no vinho. Leo levanta logo em seguida.

Fernanda não comeu nada, e por diversas vezes tentou conversar comigo. Eu me esquivava, mudava de assunto. Ela acabou indo embora sem dizer nada sobre a gente. Nossa relação andava confusa, como quase todas as relações apaixonadas no mundo de hoje. Éramos namorados no passado, mas por algum motivo que ninguém entendeu direito, acabamos desmanchando. Ainda saíamos juntos, nos amamos. Fernanda era uma ótima companhia e ela jurava que eu também era. Mesmo assim não servíamos um para o outro, não suportávamos nossas diferenças. Ela queria conversar sobre o casamento, suponho.

Tomo o café. Luisa pergunta se a dor de cabeça tinha passado. Eu tinha esquecido da dor, mas ela continuava, bem fraca. Digo que vou procurar um médico, que a dor continua apesar de nem ser percebida. Leo conta a vida de um tio, na verdade ele conta a morte do tio. O sujeito ficou com uma dor na cabeça, a mesma que a minha. E de repente o velho morreu. "Mas você não é tão velho assim", ele disse. Em nenhum momento a conversa pode me ajudar, aliás acabou despertando ainda mais meu medo de estar gravemente doente.

Teria uma reunião importante na empresa, isso poderia ser um fator agravante para minha saúde. Vinho, comida, exagerei na noite passada. A crise com Fernanda, não conseguimos nos acertar. Tudo podia estar contribuindo para o problema. Realmente estava levando uma vida um pouco tumultuada nos últimos meses, tenho dormindo pouco. O reencontro com Camila, lembrei. O encontro que podia ter sido maravilhoso, pode ter me deixado daquele jeito. Mas vou procurar um médico, prometo. Saio da mesa sem dizer uma só palavra, Luisa que me conhecia muito mais tempo que Leo, sabia que alguma coisa não estava nada bem.

Chego no escritório, ninguém presente. As coisas são assim mesmo, reuniões importantes marcadas na véspera são sempre um fracasso. Vejo alguns papéis na mesa, jogo alguma coisa fora. Fiquei longe da minha mesa por três dias e foi suficiente para o volume de lixo se acumulasse de forma drástica. Em pouco tempo minha mesa estava habitável novamente, e melhor ainda; podia encontrar o que eu quisesse. Naquele momento, por exemplo, não queria encontrar nada. Lembrei que meu quarto está uma bagunça, se Luisa não entrasse algumas vezes para tirar latas de cerveja, refrigerante e pacote de bolacha; talvez eu não conseguisse mais entrar nele.

A reunião tão esperada não aconteceu. Mas a dor de cabeça, essa não desistiu de mim. Resolvi esperar mais alguns dias, podia não ser nada de grave. Mas e o tio do Leo? Bobagem. Não estou sofrendo nada que possa me matar, somente essa dor de cabeça que me incomoda. Saio do escritório e vou para um bar onde possa beber com alguns amigos. O bar estava vazio, o frio daquele inverno não era nada animador. Foi patético beber duas cervejas e ir embora, sem dizer uma única palavra com ninguém.





4


Já era tarde. No apartamento Luisa me espera acordada, diz que Fernanda tinha acabado de sair. Eu sabia que ela estaria no apartamento, talvez por isso tenha demorado mais para chegar. Tomo um banho, Luisa disse que iria jantar fora com Leo, por isso não preparou nada. Ela parecia uma irmã, cuidava das minhas coisas, se preocupava comigo. Resolvemos dividir o aluguel do apartamento. Nunca brigamos. Não, irmã não é assim. Nunca tive irmã, mas sei que elas são possessivas. Ciumentas, acho. Dizer que todas as mulheres são ciumentas pode ser considerada uma grande mentira, mas todas as irmãs tem ciúme, é pura verdade. Além disso, Luisa e eu namoramos, um namoro bobo e passageiro na adolescência, talvez daí nossa cumplicidade.

Ela sai toda enfeitada, eu disse em tom de brincadeira. Luisa era alta, magra e com cabelos longos e pretos. Tinha um sorriso maravilhoso, era muito alegre. Seu corpo era perfeito, parte pelos cuidados que tinha com a saúde. Não tomava refrigerante, não comia carne e raras vezes devorava uma caixa inteira de bombom. Seu maior vício, chocolate. Saiu. Desejei sorte. Ela volta para perguntar se está tudo bem comigo, eu disse que não poderia estar melhor. Vai para o encontro. Eu pego um filme, começo assistir. Durmo motivado pelo frio e pela monotonia do casal apaixonado na minha tela.

Duas horas da manhã, o barulho da porta me faz acordar. Luisa e Leo se esforçam para manter o silêncio, mas era impossível controlar os impulsos de dois bêbados. Eles seguem para o quarto. Desligo a televisão, vou comer alguma coisa. Estava sem jantar. Levanto, a dor de cabeça está pior. Deve ser fome. Sempre que durmo no sofá fico com dor de cabeça. Pego um copo de leite frio, um pedaço de bolo de cenoura. Uma tontura, caio no chão da cozinha. O copo se espalha no chão, o bolo se despedaça na mão.

De manhã, Luisa me vê caído. Ela me ajuda levantar, não entende o que está acontecendo. Eu não sei responder também. Só lembro de ter acordado na madrugada, meio confuso. Estava com fome. Era essencial lembrar que estava com fome, afinal foi por esse motivo que cheguei até a cozinha. Luisa me bota na cadeira. Eu ainda estava parecendo uma fruta podre qualquer.

“Lembro que você chegou com Leo, foram para o quarto” - Eu tento explicar.
“Sim, chegamos de madrugada. E depois?”
“Vim para a cozinha, estava com fome”
“Certo. Comeu alguma coisa?”
“Não. Quer dizer, não sei”
“Precisa procurar um médico”
“Já marquei nas minhas férias”
“Férias? Daqui duas semanas? Precisa ir amanhã, hoje!”
“Não posso”
“Como não pode?”

Ela me levanta, me leva para a sala. Vai para o quarto chamar Leo. Ele liga para uma amiga que é médica. Marcam uma consulta, urgente. Não tinha como escapar, a coisa estava ficando mesmo complicada. A segunda tontura em menos de vinte e quatro horas. A dor de cabeça também estava pior. Sentia também uma dor no peito, não muito forte. Concordei com eles, precisávamos agir rápido. Tomei um banho, eu estava cheirando leite azedo.

“Pode ligar para Fernanda?”
“Ela esteve aqui, você evitou a Bebel”
“Evitei, eu sei. Mas eu preciso falar com ela”
“Eu dou o recado”
“Precisa ser pessoalmente”
“Quer dizer alguma coisa importante?”
“Ela não pode casar com aquele sujeito....”




5

Não deu tempo para terminar a frase, estava desmaiado novamente. Eles me pegam e me levam para o hospital onde a amiga de Leo trabalhava. Era um local calmo. Cheguei acordado, ou pelo menos parecia estar acordado. Alguns enfermeiros me colocam em uma maca, correm comigo pelos corredores frios. Entro num elevador. Logo estou numa sala enorme, fazendo exames. Doutora Madalena chega logo em seguida, conversa com Luisa. Todos me olham sem entender o que estava acontecendo. Fui saber depois, que poucos poderiam me ajudar.

Durante um tempo eu apaguei, não ouvia nada ou sentia absolutamente nada. Eram os remédios fazendo efeito. Nesse momento o sonho mais uma vez aparece em minha cabeça. Já não sentia dor, nem medo, nem fome. Tinha uma asa, voava pela cidade. Não pude encontrar Fernanda, nem no hospital, nem em casa ou no apartamento. Ela mais uma vez havia sumido dos meus olhares. Acordo novamente, os exames continuam. Estou deitado em uma cama de ferro, gelada. Leo não está mais com Luisa. Uma enfermeira bonita, cabelos longos e loiros, raspa os pelos do meu peito. De perto pude perceber que ela não era tão bonita assim. Luisa continua me olhando.

Posso morrer. A idéia da morte fica mais forte em minha cabeça. Eu posso morrer agora mesmo, deixar uma porção de coisas em aberto na vida. Não tenho família, sequer uma pessoa que possa chamar de família. Primos, tios, tias e outros. Todos estão muito longe e inacessíveis. Saí de casa muito cedo, perdi contato com todo mundo. Qual o motivo de querer vê-los agora? Na hora da minha morte? Bom, não sei se vou morrer, os exames ainda não estão prontos. Vamos lá, vamos pensar um pouco: a dor é tão irritante assim a ponto de ser uma doença incurável? Não, claro que não. Posso me levantar agora dessa cama, sair por aquela porta. Posso, mas tenho medo.

Fernanda, o trabalho e a insônia são personagens suficientes para acabar com minha vida. Acho que tudo isso tem contribuído para meus problemas. Um simples desmaio não pode me deixar desse jeito, com certeza vou sair daqui muito bem. É uma enxaqueca, eu penso. Só pode ser aquelas enxaquecas terríveis. Meu corpo só precisa diminuir o sal, quem sabe açúcar. Gordura? Evitar sempre. Os médicos sempre dizem isso, só pode ser esse o meu mal. Minha imaginação está indo longe demais, não desmaiaria por causa de uma picanha e uma porção de batata-fria.

Doutora Madalena entra novamente na sala. Eu estava acompanhando todos os passos da médica, da Luisa e dos enfermeiros através de uma janela de vidro que ficava do meu lado direito. Luisa continuava esperando os resultados, alguma notícia. Eu estava me sentindo melhor, mas estava sedado. Consigo levantar a cabeça, conversar normalmente com a médica. Ela começa a explicação. Não estava entendendo direito os termos técnicos, quase sempre são assim, querem esconder tudo. Depois de quase cinco minutos falando uma língua inacessível, resolvemos nos entender:

“Em outras palavras, você teve um desmaio”
“Desmaio?”
“Não é bem um desmaio, mas serve para você entender”
“Tudo bem, desmaio. E daí?” – Saber que sofri um desmaio parecia ser óbvio.
“Faltou oxigênio”
“Faltou onde?”
“Em todo seu corpo”
“Não é possível”
“A explicação é bem popular, quero que fique bem claro”
“Certo. E agora?”
“Você pode ir embora, mas vou querer que faça outros exames. O mais rápido possível”
“Entendo”
“Já conversei com sua namorada”
“Fernanda?”
“Não, aquela mocinha que está lá fora”
“Ela não é minha namorada”

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