quinta-feira, 21 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 6, 7 e 8

6


Chegamos no apartamento. Luisa não conseguia esconder a preocupação. Andava de um lado para outro, sem parar. Foi até a varanda fumar. Eu levantei, fui em sua direção. Queria confortá-la, pois, mesmo estando doente, não me sentia incomodado com isso. Portanto, ela também não deveria ficar daquele jeito. Leo tinha ligado para Luisa poucos minutos antes, mas não consegui ouvir a conversa. Na varanda, Luisa pára de fumar assim que eu chego. Ela está chorando. Olha para mim com medo, ela está com medo de me perder para sempre.

“Já sei, vou morrer” – Eu disse em tom de brincadeira, tentando descontrair minha amiga – “Vamos lá, não precisa ficar desse jeito”
“Já marquei seus exames”
“Não sei o que seria de mim se você não existisse”
“Faço qualquer coisa pelos meus amigos”
“Estou muito doente?”
“Vamos esperar os exames”
“As dores, elas continuam”
“Imagino. Você precisa ser forte”
“Está querendo demais de um pobre mortal”
“Quero dizer que estarei sempre ao seu lado”
“No caixão?”
“Pare com esse papo. Você me deixa nervosa”

Os exames estavam marcados para manhã seguinte. Fui obrigado a antecipar minhas férias. Cheguei no escritório, conversei com algumas pessoas. Nada de importante, quase ninguém ficou sabendo os motivos do meu afastamento. Regina, que era minha secretária, é a única pessoa da empresa que confidenciei minha situação. Ela ficou preocupada, mas assim como eu, não imaginava os rumos da história. Passei algumas coisas urgentes, o resto ela sabia fazer tão bem quanto eu. “Espero que melhore”. Foi a última vez que falei com Regina.

A sensação de que algo grave poderia estar acontecendo comigo era cada vez maior. Era possível que uma doença grave, com seqüelas muito sérias, tivesse me pego desprevenido. Na verdade a vida é assim, ela sempre nos causa algum tipo de susto algumas vezes. É misteriosa a morte, mas sabemos que irá acontecer um dia. Poucos sabem o horário, o dia e o momento da morte. Alguns até se imaginam nesse momento, mas é apenas um delírio que passa desapercebido. Eu estava preocupado, mesmo assim não pensava em nenhum momento que poderia morrer rapidamente.

Leo e Luisa não estão em casa. Eu aproveito para assistir o filme do final de semana, aquele que me fez dormir tranquilamente. Volto exatamente no momento do beijo, quando o casal se encontra. Era impossível não pensar em Fernanda quando via qualquer casal feliz se beijando. Tinha saudade de seu beijo, das conversas e de assistirmos filmes juntos. Nesse momento ela deve estar nos últimos preparativos do casamento. Vai casar mesmo, sem menor arrependimento. No fundo, sei que ela não gosta do sujeito, mas não quer ver o tempo passando, como acontece com suas amigas. Todas solitárias e infelizes. Fernanda poderá ser infeliz no casamento, mas tem certeza que não será solitária. Novamente durmo no meio do filme.

O dia seguinte passa rápido. Bem cedo estou no hospital fazendo os exames. O dia inteiro coletando sangue, entrando em máquinas barulhentas e monstruosas. Luisa está comigo, como havia prometido. Leo aparece no final da tarde, apenas para dizer que está torcendo por mim. Eu agradeço com um sorriso. Estava tenso demais para perguntar sobre o documentário. Durmo até o começo da noite.




7

Quando acordo, estou no apartamento. Nós quatro novamente. Fernanda estava ao meu lado, esperando que eu abrisse os olhos. Luisa estava ao telefone, falando com uma amiga. Leo é o primeiro que pergunta como estou. Fico quieto, como ficam as pessoas que acabam de acordar. Olho para Fernanda, ela parecia Mary Jane, a namorada do Homem-Aranha. Em alguns momentos eu relembro a cena do beijo, quando ele desce pela teia, está de ponta cabeça. Mary arranca uma parte da máscara e os dois se beijam. Fernanda não precisava arrancar minha máscara para me beijar.

“Qual o beijo clássico do cinema?” – Repentinamente pergunto para Leo.
“Como assim?” – Leo espantado com minha pergunta. Todos estavam esperando que eu acordasse meio aturdido – “Você está bem?”
“Claro que estou. Quer coisa melhor do que discutir beijo no cinema?”

Fernanda se ajeita no sofá, se afasta um pouco mais de mim. Já não posso mais imaginar o beijo de Mary. E fazendo uma reparação, Fernanda não se parecia em nada com Mary, no aspecto físico e psicológico. Fernanda tinha os cabelos vermelhos, baixa. Poderia ser comparada com o Rose, do filme Titanic. Eu também nunca pensei em ser super-herói.

“Acho que o beijo de Rose em Jack na proa do navio é fantástico” – Eu recomeço a discussão.
“Muito Hollywood” – Leo sempre criticando o cinema americano.
“Eu acho bonitinho’” – Luisa. Fernanda ficou calada.
“O primeiro beijo sempre é impressionante. Não importa se na adolescência, Hollywood ou Paris” – Eu defendo minha escolha.
“Dama e o Vagabundo comendo espaguete! Quem lembra?” – Luisa.
“Beijo mesmo é de Macaulay Culkin. Em Meu primeiro Amor” – Fernanda em sua primeira manifestação.

Fernanda comentar sobre beijo no cinema podia ser uma coisa normal. No entanto, considerando que fomos namorados quando crianças, que tínhamos planos para o futuro; o comentário foi sarcástico. Eu senti o impacto, fiquei quieto durante vários minutos enquanto a discussão entre Leo e Luisa ganhava aspecto de debate político. Fernanda e eu nos olhávamos, tentando encontrar alguma coisa no passado que ficou perdido, descontrolado e misterioso.

Vários filmes tratam o beijo como algo fundamental no roteiro. Todos esperam que ele aconteça, mesmo que por minutos, segundos. O vilão fica com cara de vencido, enquanto os mocinhos curtem a paixão. Geralmente é cena final, quando tudo foi resolvido. Eu queria um beijo de Fernanda, apagar o que tinha acontecido, ou melhor; construir o que não tinha acontecido. O beijo não existiria, tenho certeza. Levanto, na parede da sala tinha um espelho enorme, nele me via como o vilão da história.

“E o vento levou.....” – Leo e Luisa continuam discutindo.
“Filme é chato” – Luisa.
“Você que defende o cinema americano”
“Eu defendo, eles foram importantes para criar esse tipo de entretenimento”
“Bobagem”
“Não pode dizer isso”

Os dois continuam discutindo, e como os conheço muito bem, sabia que não iriam chegar à lugar nenhum nas próximas horas. Vou para cozinha pegar um copo de suco. Fernanda me acompanha.

“Não precisa mais fugir de mim” – Ela olha bem nos meus olhos. Depois disso vai embora.








8

Na manhã seguinte pego os resultados do exame. Minha vida está num envelope, pardo. Uma enorme etiqueta com meu nome. Volto para o apartamento. Todos saíram. Pensei em abrir, olhar os números. Adiantaria alguma coisa? A consulta está marcada para segunda-feira, ficaria o final de semana inteiro juntando informações, querendo chegar muito próprio ao resultado de quem eu vou ser no futuro. Melhor não pensar nisso. Pego o roteiro do documentário que Leo estava pensando em fazer, seria bom conversar com ele sobre isso. Talvez meu nome aparecesse na tela, uma última homenagem.

Continuarei falando sobre a capa do disco. Acho fundamental que o filme documentário seja colorido, não em preto e branco como está escrito aqui no roteiro. Os Beatles aparecem vestidos como sargentos, ao fundo a colagem de pessoas famosas. Aleister Crowley é um escritor famoso, sua figura está ali. Seus poemas, e sua doutrina foram influências para vários artistas. Raul Seixas e Paulo Coelho, por exemplo. Nesse momento eu levanto do sofá, coloco o CD no rádio. “Do what thou wilt shall be the whole of the law”, faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.

Para a capa foram selecionadas 70 pessoas que de alguma forma influenciaram o mundo ou os Beatles até aquele momento. Sigmund Freud teria influenciado os Beatles? Marlene Dietrich? Sim, muito bonita. Edgar Allan Poe, quem eu não conheci. Prometo que se continuar vivo depois desses exames vou procurar alguma coisa de Poe para ler. Ele é poeta? Acho que sim. Como sou asqueroso em matéria de literatura. Bob Dylan? Está. Leo me disse que tentaram colocar outras figuras na capa, mas por pressão da gravadora, isso não foi possível. Jesus Cristo, Elvis Presley, Gandhi e Adolf Hitler. Não comentei a informação na época, mas agora me causa um desconforto incrível saber esses nomes, tanto para o lado positivo como para o negativo. Adolf Hitler?

A dor de cabeça piora. Sinto medo de desmaiar novamente. Logo passa. Preciso comer alguma coisa, tenho quase certeza que tudo isso que está acontecendo é por causa da minha vida tão abandonada. Tenho dormido pouco, é verdade. Não cuido de mim desde os tempos que sai da casa da minha mãe. Penso em minha mãe, no meu pai morto por uma doença misteriosa. Sofreu vários meses, depois de sua morte resolvi procurar o mundo e fazer coisas que eu nunca tinha imaginado. Depois de dois anos minha mãe morre também. De solidão, desilusão e uma doença no coração. Meus familiares morreram todos por causa de uma doença misteriosa, forte e incurável. A morte em si, é algo sem cura, eu penso.

Talvez seja o único momento da raça humana que ela não quer ser egoísta. Na imortalidade, que é o sonho e a riqueza de todos os seres humanos, é onde colocamos em prática nosso maior desejo de amor ao próximo. Ninguém quer viver para sempre sozinho, então decidimos dividir a imortalidade com todo mundo. Com cachorro, papagaio e familiares. Não importa apenas estar vivo depois da morte, é preciso levar uma porção de gente conosco. Alguns ainda conseguem manipular esse sonho mágico, criando seitas que segmentam quem vai se salvar. No fim, ninguém sabe o certo. Todos nós corremos os riscos de estarmos errados no final da história. Vai ser tarde para reclamar com alguém.

Vida e morte, cantado por poetas, filósofos e religiosos. Vida, minha começou em seis de dezembro. Morte? Não sei. Possivelmente preciso resolver algumas coisas, minha vida não deve ser uma coisa sem propósito. Mas qual o verdadeiro motivo de estar aqui pensando nessas coisas? Qual minha missão, se é que existe alguma missão? Verdade ou não, me sinto fracassado em todas minhas intenções. Se existiu um plano para minha vida, eu rascunhei em algum lugar, mandei embora com o lixo da cozinha. Sim, meu plano está no lixo da cozinha.

Todos já pensaram na pergunta, mas não ouvi ninguém dizer a resposta.

2 comentários:

Neisa Fontes disse...

Você vai deixar esse moço morrer???
E a Camila?
Como vc pode ver já me "viciei" no "menor dos encantos"...

Sérgio Oliveira disse...

Quem pode salvar alguém é você...ahahaha. Que bom que gostou da história, ou melhor está gostando. Camila será a grande notícia para os e-leitores, não sei se pelo lado bom.