Capítulo 1 –
Partida da cidade
“A vida se
repete na estação
Tem gente que
chega pra ficar
Tem gente que
vai pra nunca mais....”[i]
É
o momento que todos esperam. Não há regra definida, nem itens que precisam ser
explorados. Não há meio termo, nem critérios demarcados. Não há uma espécie de incerteza,
argumento e qualquer tipo de reclamação. É o momento em que não há escolha.
Momento em que ninguém acredita, mas que acontece sem qualquer dúvida. Momento
em que a grandiosa sequência lógica da vida chega ao seu final. Momento da
grande eloquência, que não precisa de contexto; nem precisa de explicação. O
momento agora, bem na minha frente: preciso aceitar. Aceitar e entender tudo
que é necessário saber. Momento de julgar o delito: culpado ou inocente, sem
mais nem menos. Não há nesse momento ninguém que consiga suspeitar, é quase
sempre uma surpresa. Acontece de repente. Não podemos adiar. Momento da
partida, da viagem. De deixar casa e móveis. Deixar o passado, deixar mesmo; sem
volta. Então olhar para o futuro incerto. Estou nesse momento fazendo a mala;
esquecendo tudo até aqui, olhando para frente. Renascendo pelo desconhecido.
Naquele
dia cheguei na rodoviária vinte minutos antes da partida. Fazia muito tempo que
não viajava sozinho. Estar ali era como se estivesse voltando até a minha
adolescência. Agora não sou tão velho, mas também não sou novo. Algumas marcas
estão espalhadas em meu rosto e cabelos. Carrego uma única mala. Não preciso
mais de nada. O ônibus chega e algumas pessoas se atropelam para entrar. Não
era necessário correr, tenho todo o tempo do mundo. Então, uma viagem. Eu
prefiro avião, mas a cidade para onde eu vou é muito pequena, dificultaria as
coisas. Decidi mesmo pelo ônibus. Quanto tempo não viajo de ônibus? Vai ser
interessante, tenho certeza. Uma viagem tranquila, embora demorada. Ele começa
a se movimentar. Seu movimento também movimenta minha vida, que estava tão
estagnada nos últimos anos. Tudo tão rápido, de repente, estava viajando. Não
me lembro de nada até aqui, desde a discussão com Ângela até estar sentado
nesse ônibus, nada parece ter existido.
Pois
bem, indo embora. Deixando a cidade em que vivi mais de quarenta anos. Estava
ficando tudo para o passado. Ruas, rios, prédios, padarias, mendigos e o
barulho característico. Tudo sumindo. Mais coisas estavam enterradas, mas
prefiro não falar sobre esse tipo de assunto ainda tão confuso. Eu me ajeito na
poltrona. Por sorte ninguém me fazia companhia, pelo menos parecia que não. Em
alguns momentos mais cansativos da viagem eu poderia esticar minhas pernas,
tentar dormir menos encolhido. A ideia não durou muito. Uma mulher bonita, mas
com olhar cansado, está ao meu lado. Eu me ajeito e continuo minha leitura.
Queria terminar aquela obra que estava parada na cabeceira nos últimos cinco meses.
Aquele lugar, naquela situação; tudo era um convite para me meter nas páginas e
esquecer o mundo.
Em
pouco mais de trinta minutos estávamos na estrada. Dos dois lados eu podia ver
matas e montanhas. Algumas vezes passávamos por uma pequena cidade. Em outras
horas cidades maiores. Nada que me chamasse atenção. O mato, sim: o mato e o
vazio era para onde o meu olhar ficava fascinado. Ali onde o mundo parecia ser
o mundo como em sua criação fundamental. O mundo como Deus criou. As coisas
colocadas em seu devido lugar sem a presença destruidora dos homens. Deus errou
em sua obra criando o homem? E eu falando de Deus. Quantas tentativas até aqui
eu tive para entender esse Deus e agora, olhando para a estrada vazia, entre matos
e as vacas; eu tentando encontrar Deus que eu nunca acreditei. No meio dessa
divagação acabo dormindo, acordando apenas na primeira parada.
Estava
realmente com fome, por isso foi providencial.
Esses
restaurantes de estradas são muito parecidos. As pessoas acabam se
condicionando também: primeiro o banheiro, depois um lanche rápido; depois
alguma coisa para levar para ônibus. No restaurante me sento perto da janela.
Queria poder olhar o ônibus. Sempre tive a sensação seria abandonado, esquecido
pelo motorista. Sinto-me assim desde pequeno. Ter o ônibus no raio de visão é
confortante. De repente a mulher que estava comigo no ônibus senta-se ao meu
lado. Ela come vagarosamente, saboreando cada pedaço do lanche que coloca na
boca. Ela é mais bonita agora com os olhos descansados. Minha fome tinha
passado.
“Não
gosto de perder de vista o ônibus” - Ela começa uma conversa.
Trocamos
mais uma dúzia de palavras. A nossa conversa acabou exatamente no momento em
que entramos no ônibus. Dos poucos minutos de conversa descobri que ela era uma
enfermeira. Estava de férias. Iria passar uma semana na casa dos pais. Solteira
e não tinha filhos. Solteira recente, já que tinha acabado de se separar.
Durante pouco mais de quinze minutos foi o que consegui saber sobre a garota, e
ela não conseguiu tirar nenhuma informação relevante de mim. Era melhor assim.
Ela se aconchega no banco. Apenas diz que precisa dormir um pouco, recuperar as
forças do último plantão. Eu peguei novamente o livro, minhas lembranças e
minha satisfação de não estar tão sozinho numa viagem como aquela.
Dormimos.
Não
pareceu que dormimos quase duas horas, estávamos prestes a segunda parada. Banheiro,
comida e lanche, as pessoas fazem a mesma coisa sempre. A parada pareceu ter
sido mais curta. A tarde já estava sumindo. A temperatura também tinha caído. A
garota do meu lado estava ainda mais quieta. Dessa vez ela não quis descer do
ônibus. Dei uma olhada numas revistas que estavam no balcão. Iria pegar um
pacote de biscoito e uma barra de chocolate para ela, desisti. Cheguei no
ônibus bem antes da partida. Qual o nome daquela garota? Beatriz, ela diz.
“Podem me chamar de Beatriz”. Ela estava acordada, olhando pela janela. O sol
já estava desaparecendo.
“Terrível
pensar que não existe nada do outro lado” – Ela olhando para o horizonte.
“Que
lado”?
“Além
daquela montanha”.
Percebi
que ela tinha acordado, no mínimo uma divagação qualquer sobre a vida.
“Olhe você mesmo, não existe nada depois
daquele pedaço de estrada” – Ela continua.
“O
fato de não enxergarmos nada não significa o vazio”.
“Tenho
medo”.
“Estou
aqui com você”.
“Como
você é gentil”.
“Não
vá se acostumando”.
O
ônibus segue a viagem. Eu tento, em vão, terminar a leitura do livro. De alguma
maneira eu já sabia o final. Todos os finais são óbvios. Beatriz não está
dormindo, mas está completamente calada. Aquela seria a última parada, agora
uma viagem de pelo menos mais umas duas horas até o destino final. O ônibus
continua andando. Alguns quilômetros depois, lá fora, o mais completo vazio.
Algumas raras vezes ouvíamos o barulho de algum carro correndo em direção
contrária. O resto dos passageiros estavam dormindo. Acordados apenas eu e
Beatriz, olhando para a janela. Continuamos conversando em voz baixa, sem
olharmos um para o outro.
“Estou
indo visitar meus pais também” – Eu começo.
“Quanto
tempo que você não os vê”?
“Mais
de vinte anos, um pouco mais”.
“Você
não se dava bem com eles”?
“Não
sei o motivo de tê-los abandonado. Só sei que foi um erro. Pretendo reparar”.
“Antes
tarde que nunca, diz o ditado”.
“Pois
é, sempre existe a oportunidade”.
“Mas
não é por saudade que está voltando, né”?
“Não.
Na verdade, eu perdi tudo. Não sou mais ninguém do que era”.
“Já
sei... foi mulher? Tem todo o jeito de ser uma desilusão amorosa”.
“Não
foi desilusão amorosa”.
Ficamos
mais uma vez em silêncio. Uma senhora que estava sentada em nossa frente se
levanta e com dificuldade vai até o banheiro do ônibus.
“Não
sei como eles irão me receber”.
“Pais
são sempre pais, não importa qual o tipo de pessoa você tenha sido”.
“Espero
que esteja certa”.
“Meu
exemplo não é o melhor, mas digo que consegui acertar as coisas”.
“Você
deixou a casa dos seus pais também”?
O
ônibus chega pontualmente às seis da manhã. A rodoviária continua da mesma
forma. Três vagas para ônibus, um único guichê e uma barraca onde se podia
comprar pão de queijo, tomar um café, água ou o jornal da região. Se eu me
sentia voltando no passado quando sai da cidade; agora posso dizer que o
passado está em mim. O sol já tinha sumido completamente, por isso um frio
acolhedor. Minha cidade natal parecia tão igual, embora eu tenha desembarcado
muito diferente.
Capítulo 2 –
Voltando para casa.
“Era uma casa
muito engraçada
Não tinha
teto, não tinha nada.
Ninguém podia
entrar nela, não....”[ii]
Beatriz
pega sua mala. Trocamos informações e decidimos que iriamos nos encontrar
quando estivéssemos devidamente estabelecidos. Não era uma promessa, nem
estávamos tão entusiasmados; portanto acho que o encontro não aconteceria de
fato. Sinceramente conheço pouco da minha cidade natal. Um a um os passageiros
foram saindo, pegando suas malas e partindo para lugares aleatórios. Eis que a
minha primeira surpresa é não ver minha mala no bagageiro. Eu olho para o
motorista, ele também surpreso olha para Beatriz. Sim, ele vai tentar
justificar o acontecimento. Vai dizer que por um descuido alguém acabou levando
minha bagagem por engano. Ou vai dizer que eu fui roubado. Assim por diante. Tudo
bem, tudo bem; eu repeti para ele. Não tinha nada naquela mala que pudesse me
fazer falta. Meus documentos e meu dinheiro estavam comigo. Era tudo que eu
precisava. Beatriz ao meu lado pergunta se eu preciso de ajuda. Resolvemos
pegar o mesmo táxi.
“Você
sabe onde podemos pegar um táxi por aqui”? – Ela conversa com o motorista do
ônibus.
“Do
outro lado da rodoviária tem um ponto fixo de táxi” – Ele responde.
“Não
quer ir mesmo até a delegacia”? – Ela me pergunta.
“Não
há necessidade”.
Ele
nos mostrou o ponto de táxi. Na cidade apenas dois motoristas. Um deles era do
Senhor Manoel. Eu pedi que ele me deixasse no sítio da Dona Olga. Beatriz ao
meu lado continuava calada. Ela pega um mapa, diz qualquer coisa para o
motorista. Ele acena com a cabeça afirmativamente. Partimos. Não disse mais
nenhuma palavra no caminho. Supostamente o motorista sabia onde minha mãe
morava. Não queria muito papo. Não queria maiores detalhes sobre minha vida. Se
a cidade soubesse quem eu era, qual minha profissão, talvez todos ficassem
eufóricos. Não é arrogância, eu juro. Mas uma figura pública sempre gera algum
tipo de curiosidade. Será que eles me reconheceriam? Será que alguém suspeitará
de alguma coisa? Manoel sugeriu mostrar a cidade numa outra oportunidade,
Beatriz respondeu que seria ótimo ter um guia turístico.
“Gosta
de vinho”?
“Sim”
“Aqui
fazemos o melhor vinho da região. E de doce”?
Vou
confessar que foram os cinco minutos mais longos da minha vida. Não pela
conversa descontraída entre Beatriz e o taxista, mas pela ansiedade em saber
como eu seria recebido pelos meus pais.
“Dona
Olga também faz um ótimo queijo” – O motorista falando com Beatriz.
“Eu
sei” – Ela responde
“Vai
ficar por muito tempo”?
“O
necessário para resolver uns problemas” – Ela continua.
Chegamos.
Meu coração está batendo muito forte. Eu não tenho problemas cardíacos, mesmo
assim não é difícil ter um treco e cair duro no chão. Beatriz paga o táxi. Eu
desço e ela continua a viagem. Dou mais dois passos em direção ao portão.
Quanto tempo estou distante? Como estariam meus pais? Eles estariam vivos? É
duro manter essa distância durante tantos anos e não pagar pelas consequências.
Eu devo explicações, talvez um dia eu consiga realmente falar sobre o assunto.
Nesse exato momento eu só queria tocar a campainha e ser recebido como se nada
tivesse acontecido. São quase sete horas da noite, uma luz em um dos cômodos.
Deve ser da sala. Minha mãe, como me abraçaria? Meu pai como me olharia?
Por
diversas vezes eu pensei em voltar para a casa, fingir que nada tinha
acontecido; esquecer todos os erros. Mas as horas foram passando; dias e anos.
De repente eu já não me via mais naquele lugar, chamando aquelas pessoas de
pais. É claro que nesse momento vocês estão pensando em como eu pude ser tão
rude. Mais uma vez eu digo: é muito difícil falar fazer escolhas. Tive que
fazer uma escolha que mudou para sempre minha vida. Eu me tornei um homem sem
amor? Julgando-me como uma espécie mais desprezível de ser humano? Não
abandonar pai e mãe é o que vocês leem todos os dias na missa? E ser abandonado
pelos pais? Eu sei, sinto-me uma espécie
que não merece perdão nem desculpa; não merece absolutamente nada.
Realmente
muito complicado o perdão. Perdão que eu agora peço, olhando para o portão
enferrujado de casa. Com perdão eu olho agora para o pé de laranja lima. Para a
horta que continua ali. Para o pequeno lago onde minha mãe criava patos e
marrecos. Pedir perdão para Dom e Preto, meus cachorros que já devem estar
mortos. Evidente que estão mortos. Pedir perdão para a minha irmã, que correu
desgovernada para o meio da rua; sendo atropelada por uma charrete, sem que eu
pudesse fazer absolutamente nada. Pedir desculpa por me acharem o culpado, por
eu carregar a sua morte durante todos esses anos. Pedir perdão por nunca ter
encontrado o conforto do esquecimento. Agora eu estava ali plantado na frente
da minha casa, esperando que meus pais pudessem me perdoar não apenas pela
minha fuga, mas por ter brincado de pega-pega com minha irmã.
* * *
Alguns dias antes: A primeira vez
que senti aquela dor pensei ser alguma bobagem que tinha comido na noite
anterior. Era uma dor incomum, forte e densa; mas não houve muito tempo para
pensar nas consequências. Quando acordei já estava na cama de um hospital com
um médico me olhando, ao mesmo tempo que olhava os exames que estavam em sua
mão. Ângela estava ao meu lado. Ainda estava casado naquela época. O médico não
tinha boas notícias em relação a minha saúde, mas confortava-me dizendo que,
conforme já tinha percebido, estava vivo.
Será que quando morremos sentimos
algo tão diferente do que é estar vivo?
Capítulo 3 –
Reencontro.
“...Por cima
das casas, cal
Frutas em
qualquer quintal
Peitos
fartos, filhos fortes
Sonho
semeando o mundo real....”[iii]
Parado
na frente do portão eu pensei em desistir de tudo aquilo, caminhar de volta
para o centro da cidade, pegar um ônibus e ir embora para nunca mais voltar. Não
podia ficar parado ali por muito tempo. Estava ficando tarde e esfriava cada
vez mais. Não tenho muitas lembranças daqui, mas com certeza não fazia tanto
frio. Minhas mãos congeladas, um tremor involuntário no corpo. Crio coragem.
Bato palmas esperando ser atendido. Medo, ainda que tenha coragem, sinto um medo
terrível. Medo de ser, naquele momento da minha história, rejeitado. Quantas
vezes eu sonhei com um momento como aquele? Mas quantas vezes esse sonho se
tornava um enorme pesadelo? Bato palmas mais uma vez, então dois cachorros
aparecem em disparadas, não sei bem de onde. Eles não latem. Aproximam-se,
apenas me contornam. Cheiram minhas roupas, meu corpo. Na mão sinto o focinho
gelado e úmido de um deles. Então balançam o rabo e voltam para a direção da
porta da casa.
Uma
luz acende.
Uma
mulher na porta. Ela não diz absolutamente nada. Ela me olha com surpresa. Escorre
uma lágrima. Como eu poderia dizer agora o tanto de arrependimento que eu
carrego? Como eu poderia dizer agora que amava minha mãe? Quantas e quantas
vezes quis aquela oportunidade? Um cenário inimaginável. Eu amo minha mãe,
sempre amei. Amo com todas as minhas forças. Mas como ter deixado minha mãe e
nunca mais ter voltado? Ela agora estava ali na minha frente. Ela vem em minha
direção lentamente. Ela não acredita que estou ali. Eu também não consigo
entender minha situação. A única coisa que eu sei é que está acontecendo.
Algumas coisas na nossa vida são inexplicáveis. Elas precisam ser sentidas. Ela
abre o portão. Eu choro como uma criança. Choro como a criança que foi embora
naquele dia. Choro por todas as dores que eu não consegui suportar. Choro pelo
erro, pela arrogância, por todo mal que eu fiz a mim mesmo e as pessoas que eu
amo.
Entramos.
A
casa continuava do mesmo jeito. Assim como a minha surpresa com a rodoviária, o
primeiro impacto ao entrar no meu antigo lar também era de extrema nostalgia.
Os quadros continuavam no mesmo lugar. Uma imagem de Jesus Cristo na parede. A
mesa arrumada com um pano branco, um vaso com flores coloridas. Um sofá, uma
televisão ligada; uma namoradeira ainda com cheiro de verniz. Meu pai, nas
horas vagas, restaurava mobílias e as revendia. Mas por algum motivo que ele
não sabia explicar, aquela namoradeira nunca mais saiu de casa. Então, no canto
da sala, lendo um livro, fazendo anotações com um lápis (extremamente bem
apontado) estava meu pai. Maior surpresa que minha mãe, meu pai continuar
estático ao me ver chegando. Diferente da recepção que eu havia sonhado, meu
pai continuou do mesmo jeito. Voltou-se para o livro, soltando um suspiro que
me deixou muito mais confuso que ele. Decerto não acreditava na minha chegada.
Não acreditava que o filho, que fugiu de casa um dia, e de poucas notícias,
estava ali novamente.
Minha
mãe continuava me olhando com um sorriso receoso. Ela então vai para o meu
antigo quarto. Todas as cores, todos os formatos; todos os móveis. Meu coração
acelera, meu peito se aperta; meus olhos se enchem de água. Não queria chorar
na frente da minha mãe, nem queria que ela pensasse que eu estivesse triste.
Muitas vezes o choro dá essa sensação de que as coisas não estão indo bem. Mas
naquele momento, muito pelo contrário, estava me sentido vivo. Uma vitalidade
que havia tempo eu não tinha. Eu me vi ali naquele quarto, juntando as mãos e
rezando proteção. Na minha inocência infantil eu via anjos se aproximando,
levando-me para cama, ajeitando o meu cobertor. Lembrei! Naquela época
realmente fazia muito frio. Então, naquela época, minha mãe me beijava na testa;
e depois de alguns minutos meu pai abria a porta do quarto para saber se estava
tudo bem.
Estava
tarde. Agora os fatos não aconteceram como quando eu era criança. Mas, de
alguma forma eu me ajeitei na cama, minha mãe me beijou a testa e meu pai não
apareceu na porta para saber se estava tudo bem. Talvez ele ainda não havia
acreditado que estava ali com eles. Mas eu estava. Eu voltei para dizer o
quanto eu estava errado. Voltei pelo perdão, voltei porque eu precisava voltar.
Realmente estava muito cansado de tudo que eu havia vivido até então. Toda
minha infelicidade pela ausência dos meus pais em minha vida.
Por
isso, naquele dia, tenha conseguido dormir com facilidade.
* * *
Ângela estava ao meu lado. O
médico não tinha boas notícias em relação a minha saúde. Disse tudo isso antes,
mas agora preciso esclarecer mais alguns fatos. Então, o médico disse que eu
tive sorte de ainda continuar vivo. Minha saúde não estava frágil. Os exames não eram nada confortáveis, teria
que mudar minha postura diante da vida, ou as coisas poderiam não ter mais o
final tão milagroso como agora. Enquanto o médico me alerta sobre os
acontecimentos, Ângela continua segurando minha mão.
“Vamos sair dessa, tenha calma”
“Quando poderei ir para casa”?
“Você não ouviu o médico? Tudo foi
sério”.
“Mas estou vivo, então não há
necessidade de ficar aqui. Além disso tenho uma porção de projetos, eles não
podem ficar parados”.
“Daremos um jeito nos projetos, o
mais importante agora é cuidar de você”.
“Não pode ter sido tão grave”.
“Você pensa assim, pois está
conseguindo sorrir e conversar comigo”.
Fico em silêncio.
Capítulo 4 –
As primeiras impressões.
Mi vekiĝis
kaj ĉiuj dormas[iv]
Acordei
bem tarde. Ainda não estava acostumado com a rotina daquela casa. Antigamente
eu acordava bem tarde, quase na hora do almoço. Ou melhor, na maioria das vezes
acordava depois das duas da tarde. Minha rotina era essa: dormir tarde, acordar
tarde. Quando estava trabalhando eu perdia o sono com facilidade. Chegava em
casa e comia qualquer bobagem. Dormia muito mal. Fazia pouca atividade física.
Está bem, eu era uma pessoa que vivia por aparelhos sem saber. Mas também é
verdade que nunca me acomodei, sempre procurando as pessoas, sempre em reunião;
sempre resolvendo problemas. Empresários, líderes sindicais; aposentados e
vizinhos. Todos eles tinham um espaço primoroso em minha agenda. Foi preciso um
desastre para que eu entrasse em harmonia.
Depois
de alguns dias eu ainda não estava completamente ambientado. Os dias, horas e
minutos passam vagarosamente. Sucessivamente o café da manhã, o almoço e a
janta. Junto com tudo isso a minha insônia. Na cidade grande eu costumava
dormir pouco, como eu disse. Mas para tudo eu tinha uma desculpa para ficar
acordado. E agora? Não há motivo nenhum para não dormir dez horas seguidas.
Então, naquela época meu sono era conturbado e quebrado. Era comum eu sair de
casa, apesar do conselho dos assessores para que não fizesse isso, e ir comprar
cigarros. É verdade que eu sentia um medo desconcertante em caminhar pelas ruas
vazias; embora sempre fosse um grito de liberdade com grandes compensações. Não
comprava cigarros, mas voltava realizado. Dormia duas ou três horas e pronto.
Aqui
tudo é um tanto diferente. Sair da cama e vagar pelas ruas de terra, deserta e
completamente silenciosas, parecia alguma coisa muito próxima a insanidade.
Sim, as ruas eram desertas, tudo era deserto. Era totalmente insano, mas não
totalmente descabido. Então, numa dessas noites eu resolvi sair. Abri a porta
do quarto, sai pelos fundos da casa. Sabia mais ou menos dos riscos: os bichos
que se arrastavam a procura de presas. Morcegos ou qualquer espécie que pudesse
atacar por medo ou para defender a cria. Não tão perigosos como um pivete
armado querendo levar minha carteia ou minha corrente de ouro. Cobras, eu sabia
que a região era infestada de cobras.
Andei
sem direção certa por uns cinquenta minutos. Cheguei num lugar alto, embora não
fosse o mais alto da cidade, podia-se ver tudo que nela existia. Era madrugada,
mas tinha absoluta certeza que se eu tivesse chegado antes poderia ver as luzes
das casas acesas. Luzes amontoadas seria o centro da cidade. Luzes espalhadas,
a zona rural. Qual daquelas casas seria dos meus pais? Qual daquelas casas,
daqui algumas horas, estará preparando o café da manhã? Sento-me numa das
pedras e fico olhando para estrelas. Quanto tempo não admirava para um céu como
aquele? Decido voltar. A privação de sono deixa os meus passos mais lentos e
minhas memórias mais curtas. Sinto no ar o cheiro do café, da lenha queimando;
e do bolo ainda quente colocado na mesa.
De
alguma forma eu consegui voltar sem errar o caminho. Diferente da cidade, onde
temos referências como: padaria, posto de gasolina, mercado, farmácia e até o
nome das ruas; aqui tudo funciona por instinto. Cheguei em segurança e ambos,
pai e mãe, estavam acordados. Pensei em tomar o café da manhã. Percebi que
tinha todo o tempo do mundo para não pensar ou fazer absolutamente nada. Como
eu disse, ainda não estava completamente ambientado aquela situação. Por isso,
por mais que eu achasse estranho, não sabendo exatamente onde eu podia ser
útil, a verdade é que eu precisava fazer alguma coisa.
Num
dia desses, minha mãe pega uma caixa dentro do armário. Eu estava na varanda
olhando meu pai trabalhar na horta. Dentro da caixa uma
outra caixa. Fotos guardadas de forma aleatória. Peguei a primeira delas: minha
mãe, meu pai e meu avó materno. Qual ano? Não sei precisar. Eu devia ter uns
doze anos. Quando crianças não suspeitamos a idade dos nossos pais, não sei a
idade deles naquela foto. Eu estava com uma camisa azul, e lembrei que era uma
das minhas favoritas. Lembrei também que, com o passar dos anos perdemos várias
prioridades. Peguei três fotos da caixa, coloquei no bolso da camisa. Com doze
anos eu ainda era feliz. Com doze anos eu ajudava meu pai em sua pequena
plantação. Com doze anos eu cuidava das galinhas. Com dozes anos eu brincava
com minha irmã.
Naquele
instante lembrei da Beatriz. Disse que a encontraria. Já sabia que um ônibus
passava duas vezes por dia para levar o pessoal para as compras na cidade.
Sabia também que não havia mais charretes.
Capítulo
5 – Como foi o encontro?
“Eu já
estou com o pé nessa estrada
Qualquer
dia a gente se vê
Sei que
nada será como antes, amanhã
Que
notícias me dão dos amigos?
Que
notícias me dão de você?”[v]
Eu não sabia onde Beatriz morava. Não trocamos mais que meia dúzia de
palavras, apesar de viajarmos juntos por mais de oito horas seguidas. Na
verdade, naquela ocasião não tinha qualquer interesse em Beatriz. Tudo foi
mudando com o passar os dias. Naquela região, tirando os meus pais, ela era a
única pessoa que eu conhecia. Então, resolvi fazer uma busca. Não deve ser
muito complicado achar uma pessoa numa cidade tão pequena. Como eu disse, um
ônibus passava duas vezes por dia na frente da casa dos meus pais. Então, depois
do café eu fui para a frente do portão. Não demorou muito para que o ônibus
aparecesse. Algumas pessoas estavam esperando o ônibus também. Chegando na
cidade procuraria Manoel, o taxista que nos trouxe na semana passada.
Entre no ônibus. Cinco homens e três mulheres. Tinha uma criança com
roupa de escola. O ônibus foi parando de tempos em tempos, pessoas subiam mais
que desciam. Quando chegamos perto da rodoviária ele estava mais ou menos
cheio. Descemos. Na praça mais uma dúzia de pessoas. Duas pessoas idosas
estavam paradas olhando para uma árvore. Eu me aproximei, informei que não era
da cidade; que estava procurando uma pessoa chamada Beatriz. Eles conversaram
entre si, e chegaram à conclusão que conheceram dias pessoas com o nome Beatriz
em toda a existência e uma delas estava morta. Descrevi do jeito que pude a
Beatriz que eu estava procurando. Não me ajudaram. Perguntei então do Manoel,
onde ele poderia estar (já tinha passado pelo ponto de táxi e vi que ele não
estava). Hoje era dia de sua folga?
Entrei em um mercado perto da igreja. De repente, como se o destino
pudesse nos ajudar nos momentos mais precisos, eis que surge Beatriz bem na
minha frente. Ela estava conversando com a vendedora de uma loja, estava
escolhendo um tecido. Num primeiro momento ela não sentiu minha presença.
Curiosamente a vendedora também não me viu. (Se eu queria privacidade, deveria
ter mudado para cá há muito tempo). Ninguém me reconhece naquela cidade, e fico
muito aliviado com isso.
“Eu sabia que te acharia aqui”! – Eu me aproximo
“Não acredito! Estava falando hoje de você”.
“Jura? Posso saber o teor da conversa”?
“Nada muito importante”.
“Então, não disse que nos encontraríamos”?
“Você é um homem de palavra”.
“Vamos tomar um café”?
Ela pegou o pacote com o tecido, pagou a vendedora. Saímos.
“Me conta: como foi o encontro com seus pais”?
“Eu pensei que seria pior, mas foi razoável”.
“Sempre é mais difícil, principalmente na condição que você se
encontra”.
“Minha mãe me recebeu com carinho, choramos; mas não falamos sobre
qualquer coisa de perdão”.
“Os olhares dizem mais que a boca, não”?
“Meu pai foi um pouco mais frio, parece que não estou ali. Mas tenho
certeza que ele vai entender um dia”.
“Dê um tempo, as coisas vão se resolver”.
“Tenho andando a noite. Não perdi essa mania que eu tinha quando morava
na cidade”.
“Você também faz isso? Que maluquice! Não é o primeiro que me diz uma
coisa dessas”.
“Tenho um pouco de medo de cobras, acho que sempre tive medo de cobra”.
“Elas não farão nada contra você, pode ter certeza”.
“Quer andar comigo qualquer noite dessas? Vai ver como o céu é lindo e
totalmente estrelado”.
Podíamos nos encontrar à noite?
* * *
Ângela
estava ao meu lado. O médico não tinha boas notícias em relação a minha saúde.
Os exames não eram nada confortáveis. Enquanto o médico me alerta sobre os
acontecimentos, Ângela continua segurando minha mão. Ela me diz com uma
segurança que estava me faltando: vamos sair dessa, tenha calma.
O
médico tirou minha esperança em ir para casa. Pelo menos nos próximos dias teria
que continuar no hospital.
Capítulo
6 – Tio Arnaldo
“Arroz
branco, farofa e a malagueta;
A
laranja-bahia ou da seleta.
Joga o
paio, carne seca,
Toucinho
no caldeirão
E vamos
botar água no feijão...”[vi]
Mais uma noite quente. Não consigo dormir. Mais uma vez eu me encontro
caminhando sem direção naquelas ruas desertas. Já não sabia mais dizer como
isso acontecia. Estava na cama, de repente não estava mais. As noites continuam
mais frias. Queria andar com Beatriz. Ela me dá uma segurança. Então naquela
noite estava frio e o vento era insistente. Mas o vento não era frio, nem
quente. Um vento que não era forte, nem fraco. Um vento que, mesmo invisível,
confortava-me o coração. Naquele lugar as memórias eram vivas e intensas. Quem
agora sopra nos meus ouvidos segredos tão sinceros? Quem agora diz o meu nome,
pede que o siga, entre matos e rios; fontes de água e animais selvagens?
Perdido, eu olho para todos os lados e não vejo ninguém. Mas também não estou
sozinho. Eu sei que nunca estive sozinho. É claro, algumas vezes, poucas vezes,
o desespero toma conta das pernas, intriga os braços; pesa o tronco; mas nesse
mesmo instante, sinto as mãos leves me levantando e me colocando no caminho
mais interessante e justo.
Beatriz tinha essas mãos leves.
Lembro-me das fotos. Remexo o bolso e não encontro nada. Mas a imagem surge
como um passe de mágica: Meu pai, minha mãe e meu tio Arnaldo. Eu não sei minha
idade, mas parece que estou feliz na foto que eu vi aquela dia. Somos mais
felizes na inocência e na ignorância. Era meu aniversário ou da minha irmã.
Tinha um bolo enorme na mesa. Naquela época se fazia bolos enormes. Eu lembro
bem, tinha um bolo enorme! Bolo que eu nunca mais tive. Uma vez fizeram um bolo
no escritório onde eu trabalhava. Um bolo surpresa. Foi uma surpresa: tive
lembranças da minha infância. Lembrei também quando deixei minha casa e fui
para cidade grande: meu tio Arnaldo me acolheu e me ajudou a arrumar um
emprego. Eu tinha uns doze anos, um pouco mais. Foi ali que tudo começou em
minha carreira e acabou com minha família. Tio Arnaldo não podia ir contra
minha mãe, que exigia que ele me mandasse de volta; mas também sabia que se eu
voltasse, fugiria para um lugar sabe-se-lá-onde. Estar com ele, ainda que longe
da família, era mais seguro. Minha mãe foi convencida por ele.
Durante uns três anos eu vivia fazendo alguns serviços, ganhando um
dinheiro. Tio Arnaldo sempre me fez ir para escola, e sempre exigiu mais e mais
em minha formação. Ele morreu no mesmo dia que fiquei sabendo que havia sido
aceito na universidade. Fiz Direito. Foi o momento mais feliz e o mais triste
da minha vida. Tio Arnaldo tinha sido um pai, uma mãe e um irmão mais velho.
Então, foi nesse dia que revi minha mãe. Trocamos olhares apenas. Por outros
compromissos, meu pai não pode ir no velório de seu cunhado. O caixão baixou
lentamente, como se ele não quisesse deixar essa vida. Ele foi o maior exemplo
de perseverança na vida, num mundo onde o homem, na maioria das vezes, é processo
intenso de auto sabotagem. A humanidade é uma experiência que não deu certo. Eu
não dei certo. Olhei minha mãe de longe e ela não parava de chorar. Queria me
aproximar, mas não o fiz.
Foram seis anos em que não saia, não me divertia, não conseguia sequer
manter uma namorada por muito tempo. Livros, provas e trabalhos; tudo isso
multiplicado ano a ano. Tio Arnaldo sempre fazendo falta com seus conselhos,
sua presença. Ou aquela feijoada que nunca mais comi igual. Então, nessa mesma
época, terminando o curso; encontrei Ângela. Ela estava se formando em
pedagogia, mas por azar, nunca praticou a profissão. Minha vida crescia de
forma assustadora: dinheiro, prestígio e tudo que um homem precisaria. Pelo
menos era isso que eu pensava.
Vivemos um para o outro. Resolvemos não ter filhos.
* * *
Ângela
estava ao meu lado. O médico não tinha boas notícias em relação a minha saúde.
Sentia ainda uma dor forte no peito. Sentia um gosto amargo na boca. Minhas
pernas estavam fracas. Quanto tempo estou naquele hospital? Duas semanas? Um
mês? Tinha uma reunião com um pessoal que viria da China, mas minha esposa me
proibiu qualquer situação que não tivesse relacionado com minha recuperação.
Ficar naquele lugar estava me prejudicando também e ninguém entendia:
“Você
não me transformou em sua assessora à-toa”.
“Preciso
falar com a Shang”.
“Ela
pode esperar”.
“Como
estão no partido”?
“Os
jornalistas estão mais preocupados com você que o pessoal do seu partido”.
“Ademar
não me ligou”.
“Ademar
está preocupado em limpar muitas coisas que você andou fazendo”.
“Era
preciso”.
“Não
era preciso! Você nunca foi obrigado”!
“Não
vamos discutir isso agora, né”?
“Podemos
discutir outras situações, como por exemplo a questão dos seus pais”.
“O que
tem eles”?
“Souberam
do seu estado. Mandei buscá-los”.
“Não
deveria fazer isso sem me consultar antes”.
“Você
não tem condições de escolher mais nada”.
A dor
no peito aumentava. Com ela veio também a dor de cabeça, que antes era apenas
uma pontada mas que agora incomodava muito mais.
Capítulo
7 – Doce de Mocotó
“Mamãe, eu
ontem passei mal e me lembrei de você!
Mamãe, eu me
lembrei de você e gritei ... Mamãe!
E depois ...
O silêncio e a calma tomou minha cara...”[vii]
Acordei
mais cedo que o pontual. De alguma maneira já estava me acostumando com a
rotina daquela casa. Levantei e fui ver o Sol. Naquele dia ele estava
diferente. Bem no fundo do quintal passava um rio. Não me lembro de ter falado
dele em algum momento. Bom, o importante é que ele existe. Então, estava um dia
convidativo para me jogar na água. Tem uma trilha que leva até ele. Vou pela
mata. O caminho estava na minha cabeça como se eu tivesse passado por ele há
pouco tempo. Não é verdade, não passo por aquele lugar desde que sai de casa.
Continuo caminhando e a mata vai ficando cada vez mais fechada. Depois de uns
dez minutos caminhando eu já consigo ouvir a correnteza e sentir cada vez menos
os cheiros da minha casa. Sim, as casas possuem um cheiro característico, podem
perceber. A casa da minha mãe cheirava comida, café e madeira queimada. Ela
sempre estava cozinhando. Meu apartamento na cidade cheirava cigarro e perfume
francês. Não tinha o costume de beber quando estava em casa.
Chegou
até o rio.
Um
senhor está sentado numa pedra, uma vara de pesca; uma jarra térmica e duas
xícaras. Eu me aproximo silenciosamente, mas não digo nada. Ali não seria um
bom lugar para mergulho. Então eu tento outros caminhos, mas percebi que não
havia como sair daquele lugar, exceto retornando pelo caminho que fiz para
chegar. O senhor continua estático, provavelmente esperando a hora certa de
agir. Nunca tive paciência para pescar. Meu pai, meu avô e o Tio Arnaldo também
não. Por isso não sabia muito sobre aquilo. Quando estava pensando em voltar o
sujeito puxa o anzol. Completamente vazio.
“Hoje
não é um bom dia para pescar”.
“Não
posso nem pensar em opinar. Tudo que disser será uma bobagem”.
“Diga
mesmo assim, guardar coisas no peito não faz bem”.
“Ia
dizer que está ventando, por isso os peixes somem”.
“É
realmente uma bobagem”.
“Não
disse”?
“Você
é quem? Nunca vi você por aqui”.
“Sou
filho da Dona Olga”.
“O
filho desaparecido”?
“Desaparecido?
Bem, estou aqui”.
“Sua
mãe chorou muito por você ter partido”.
“Eu
me arrependo muito de não ter voltado”.
“Quantas
vezes você se arrependeu”?
“Ora,
uma porção de vezes”.
“É
bem pior. Arrepender-se e não fazer nada para arrumar a situação”.
“Não
tive forças”.
“Eu
me arrependi de uma coisa, uma única vez; eu me sinto muito mais leve que
você”.
“Não
tenho como mudar o passado”.
“E
pode confiar em mim, se pudesse mudar, faria ainda pior”.
“Como
pode ter certeza”?
“Não
temos como acertarmos quando não temos experiência”.
“É
verdade”.
“Quer
café”?
Ele
ajeita novamente a vara, joga o anzol no rio. Ficamos em silêncio por alguns
minutos.
“Mais
uma vez: perda de tempo”.
“Não
perguntei quem você é. Que cabeça a minha”.
“Sou
o Geraldo, trabalhei com o Arnaldo”.
“Geraldo?
Geraldo do doce de mocotó”?
“Isso!!
Isso! Lembrou direitinho de mim!!”
“Como
não consegui reconhecer o senhor”?!
“Parece
óbvio que minha aparecia não é mais de um jovem de quarenta anos”.
“O
senhor está muito bem”.
“Pode
dar um recado para o seu tio”?
“Sinto
muito, pensei que o senhor soubesse, ele está morto”.
“Que
pena, não? Mesmo assim vou deixar o recado: Diga que estou com saudades e que nunca
tentei roubar Margarida dele, está bem”?
“Margarida,
minha tia”?
“Sim,
sua tia. Falecida que eu saiba”.
“Não
poderei dar o recado”.
“Tente
se esforçar, por favor. Se você não puder, quem poderá? Sabe que ele ouve muito
você”.
“Então
o senhor andou paquerando minha tia quando eram mais novos”? – Rimos da
situação.
Tomamos
mais uma xícara de café.
* * *
O
médico não tinha boas notícias em relação a minha saúde. Sentia ainda uma dor
forte no peito e na cabeça. Ângela não me deixava sair. Ficar naquele lugar era
ruim, mas eu sabia que era a única coisa que podia ser feita. A cada dia que
passava eu me conscientizava mais e mais da minha situação.
Não
tinha muito tempo.
CAPÍTULO
8 – Tempo acabando
“Não deixa a
gente passar
pela fome em
tua mesa
não viemos
por teu pranto
nem viemos
pra chorar”[viii]
E
de repente, eu não sabia responder se era morte ou sonho. Nebulosa sensação que
inibia todos os meus sentidos. Enxergava um tanto que porcamente os vultos que
desfilavam por entre as paredes, mas que, mesmo parecendo tão sombrios; não me
faziam nenhum mal. Se vivo, aquelas eram espíritos perdidos? Ou eu quem era a
assombração deles? Salto de onde estou como quem acorda no susto do
despertador. Não estava na casa de minha mãe, nem de mãos dadas com Beatriz.
Estava sim, num pesadelo. Desses que antecipam coisas ruins. Desses que
acontecem poucas vezes, mas que são suficientes para mudar nossa rotina. Às
vezes, são tão verdadeiros que nos deixam conturbados pelo resto de nossas
existências. Mas a maioria das vezes não conseguimos decifrar os seus códigos.
O pesadelo me deixou com uma sensação ruim no peito que perdurou por alguns
dias.
Encontro-me
com Beatriz na praça. Ela estava com um vestido florido e pela primeira vez
desde que nos conhecemos, estava com os cabelos soltos. Estava sol, embora não
sentisse calor. Sentamos no banco da praça, eu queria lhe contar os meus
planos, saber o quanto ela poderia me auxiliar. Bem, os planos ainda não eram
nítidos para mim; parecia que alguma coisa me inibia cada vez que eu pensava no
próximo passo da minha vida. Uma coisa era certa: eu não poderia ficar mais no
sítio sendo ignorado pelo meu pai e trocando pouquíssimas palavras com minha
mãe. Em algumas ocasiões nem o meu cumprimento desejando um bom dia ela
respondia. Nunca pensei que causaria tanto mal aos meus pais. Quer dizer, eu
sabia; mas não queria acreditar.
“Quero
sair daquela casa, procurar um lugar para ficar”.
“Tem
certeza que está se esforçando para fazer as pazes”?
“Eles
não respondem uma única pergunta. Parece que estou invisível”!
“Eu
me sinto muitas vezes assim também, embora esteja em outra situação”
“Acha
que eu deva sair”?
“Acho
que você deve ter uma conversa franca, dizer tudo que sente; tudo que ainda
está guardando em seu peito”.
“Mas
se eles continuarem me ignorando”?
“Lembre-se
de que alguma mudança você causará. Pode não ser num primeiro momento, mas eles
saberão que você esteve com eles”.
“Tenho
saudades da Ângela”.
“Muitas
coisas deixamos de lado, e quando pensamos em resolver já é tarde”!
“Não
sou de ficar remoendo a culpa, mas tenho me sentido cada dia mais impotente
diante de tudo”.
“A
nossa vida requer cautela em todas as circunstâncias para não sofremos depois”.
“Tanta
coisa que não resolvi”!
Beatriz
se levanta, vai até o chafariz que ficava bem no centro da praça.
“Tem
coisas que perdem o sentido, mas continuam onde estão”.
“Está
falando do chafariz”?
“Não,
claro que não! Estou falando da vida. Carregamos tantas coisas inúteis, que não
nos damos conta do peso morto que não queremos nos livrar”.
“Não
te perguntei, mas está aqui por causa do seu namorado”?
“Não,
estou aqui, pois precisava ajudar uma pessoa”.
“Está
ajudando”?
“Tem
uma série de dificuldades”.
“Posso
te ajudar com essa pessoa”?
Voltamos
para o banco e em silêncio o tempo passou mais rápido do que deveria.
“Precisamos
ir embora”
“Não
contei o encontro que tive com um senhor na beira do rio”
“Quem”?
“O
sujeito disse que era amigo do meu tio, pediu para eu dar um recado; mas eu
disse que meu tio estava morto, e ele continuava insistindo”.
“Confuso,
não”?
“Como
poderei dar um recado a um sujeito que está morto”?
* * *
O
médico não tinha boas notícias em relação a minha saúde. A cada dia que passava
eu me conscientizava mais e mais da minha situação. Eu não tinha muito tempo. Ângela ficou comigo
o tempo todo. Eu sabia que ela não me amava mais, pelo menos não como seu
marido; mas mesmo assim manteve-se como uma amiga, uma grande amiga. Não sei se
ela sabia da Fernanda, também não me interessa mais. Saindo daquela situação eu
acabaria de uma vez aquele romance sem sentido. Fernanda chegou num momento
conturbado da minha vida, e em momentos assim, somos mais predispostos a
cometer tremendos enganos. Um caso com Fernanda era um engano. Naquele momento
eu não sabia quanto tempo eu estava no hospital, nem como estavam os negócios.
Adeus chineses, adeus votações; adeus campanha, adeus diretórios; adeus
partido.
“Tem
uma pasta dentro do cofre”.
“...”
“Dentro
de uma pasta azul, entre vários documentos; tem uma cópia do testamento”.
“....”
“Encaminhe
para o Doutor Leonardo Vieira, diga para ele me procurar aqui”.
CAPÍTULO
9 – O desabafo do filho para mãe
“Mulher
barriguda que vai ter menino
Qual o
destino que ele vai ter?
Que será ele
quando crescer?”[ix]
No
último encontro com Beatriz muitas coisas ficaram claras. Era certo que eu
precisava falar com meus pais, pois era possível que não tivesse mais eles por
perto em breve. A saúde da minha mãe parecia melhor que do meu pai, embora a
morte nunca escolha alguém por questão de saúde. Então, seguiria o conselho de
conversar com os dois, separadamente. Falaria tudo que estava sentido, mesmo
sabendo que eles não me responderiam. Ainda tinha esperança que meu pai me
abraçasse, que minha mãe conversasse comigo. Tinha esperança em resolver a
situação da melhor forma possível. E só existia uma forma: precisaria estar de
peito aberto para ouvir e para falar. Somente assim conseguiria me livrar de
tanto rancor, tanta culpa e tanto medo que se apoderou de mim essas últimas décadas.
Era
madrugada, mas naquela noite meu pai parecia incomodado. Andava de um lado para
o outro da casa. Minha mãe estava escolhendo feijão na mesa, cuidadosamente e
pacientemente. Sentei-me bem à sua frente, esperando que ela me notasse, que me
dissesse algumas palavras. Nada, nadinha. Era como se eu não estivesse ali. Em
alguns momentos parecia mesmo que eu nunca deveria ter voltado. Penso na
Beatriz e quanto parecia fácil resolver as coisas. Não, não era. Então eu
começo a falar. Em momentos do meu discurso eu nem sabia onde queria chegar,
queria apenas dizer aquilo que estava sentido. Falar tudo.
“Eu
não sei bem como começar. Juro que queria chegar aqui e dar um abraço na
senhora. Fingir que nada aconteceu. Mas sabe, eu sei que não é bem assim. Outro
dia eu lembrei daquele arroz caipira que a senhora fazia e vi o quanto é
simples mostrar o amor que temos pela outra pessoa. Mostrar o amor enquanto há
tempo para isso. Eu queria mostrar o meu amor agora, mas eu não sei bem como.
Eu que sempre fui muito teimoso, que sempre fui um sujeito seco, assim; sem
querer mostrar os meus sentimentos. Lembra quando a senhora disse que eu era
tão ruim que nem chorava quando apanhava”?
Minhas
palavras pareciam não surtir efeito na Dona Olga.
“Está
bem, não vou lembrar que apanhava. Se aquilo acontecia era porquê eu merecia,
não é mesmo? Então, mamãe; eu olho para o passado e começo a pensar o tanto que
eu poderia ter feito e não fiz. Um passeio, né? Chamar a senhora para ir até a
sorveteria. Chamar a senhora para conhecer minha casa, minha casa nova. Eu
decidi, junto com a Ângela, que não teríamos filhos. Mais meu desejo que o
dela. Não queria mesmo ter filhos. Mas era uma época em que eu me sentia
sozinho, sabe? Não, não quero culpa-la de nada. Eu sei que eu errei quando sai
de casa”.
Continuava
com as mesmas questões que nunca foram resolvidas.
“Estou
aqui para pedir perdão! Se tem uma coisa que um ser humano não pode suportar é
um negócio desses! Eu não aguento o meu coração carregando um desaforo desses!
Minha mãe, que era para ser minha melhor amiga; minha proteção, ficou lá no
passado. Queria te abraçar minha mãe, queria dizer que nunca fui perfeito, e
que não venho aqui para que a senhora esqueça meus erros; mas que me perdoe eu
não ser como a senhora queria! Queria mesmo voltar anos e anos e fazer tudo
diferente. Mas eu não sendo perfeito faria melhor? Não sei, minha mãe, queria
apenas que perdoasse minha imperfeição. Não quero que perdoe o meu abandono, os
dias que eu não disse “eu te amo”, queria apenas que você olhasse para mim e me
desce esperança de que um dia eu consiga ser aquilo que a senhora sempre
sonhou”!
Não
tinha mais nenhuma palavra. Então, eu levantei da cadeira e enquanto estava
indo em direção a sala pude ouvir minha mãe, com uma voz rouca e cansada de
tanto chorar, dissesse algo que soou como uma bela oração, a melhor que tinha
escutado até então:
“Vá
com Deus, meu filho!! Uma mãe sempre perdoa um filho”!
* * *
Eu não
tinha muito tempo. Ângela chegou com o doutor Leonardo e os documentos que eu
havia pedido. Então, ele fez algumas alterações conforme minhas instruções.
Prometeu que voltaria o mais rápido possível com as modificações para que eu
pudesse assinar os papéis. Eu sabia que não tinha mais tempo. Eu sabia que
alguma coisa iria acontecer comigo nos próximos dias. A sensação de que a vida
não nos pertence mais é irrefutável. Quanto tempo ainda tenho? Não faço a menor
ideia. A doença que surgiu de repente, mas que pareceu uma situação totalmente
resolvida, acabou que se agravando e tirando toda minha esperança. Quantas
pessoas vieram me visitar esses dias? Nenhuma. Quer dizer, muitas pessoas na
porta do quarto, na lista de espera do hospital; mas nenhuma delas tinha como
interesse minha condição de saúde. Queriam resolver alguma pendência, que eu
assinasse alguns papéis; coisas desse tipo. Pessoas que me amavam que estavam
preocupadas comigo? Nenhuma.
“É
muito triste chegar no final dessa vida desse jeito”.
“Não
diga uma coisa dessas”!
“Começo
a perceber que muitas coisas não valiam absolutamente nada. Eu briguei por
tantas coisas, mas eram situações vazias, entende”?
De
algum modo você ajudou muitas pessoas”.
“Como
serei visto quando morrer? Como nós somos vistos”?
CAPÍTULO
10 – O desabafo do filho para pai
“Eu não sabia
que doía tanto
Uma mesa num
canto, uma casa e um jardim
Se eu
soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão
doída não doía assim..”[x]
Na
sala meu pai estava lendo o jornal. Fazia isso todos os dias, mesmo sabendo que
certas notícias nunca deixariam de se repetir. Eu entrei na sala. Ainda estava
com os olhos lacrimejando por causa da minha mãe. Conversar com meu pai seria
mais difícil ainda. Mesmo assim resolvi seguir o conselho de Beatriz. Sentei-me
no sofá que estava do lado de sua cadeira. Uma cadeira antiga, de gerações
passadas. Quando eu era pequeno eu queria me pendurar naquela cadeira,
balançar-me como gangorra; e fazia isso, até que um grito surgia do nada
pedindo para que eu saísse da cadeira, por que ali não era lugar de brincar. Com
minha irmã eles brigavam menos, mas ela também não podia brincar na cadeira.
Então eu me aproximo, meu pai continua lendo o jornal. Ele lê com dificuldade.
Problemas com a visão e por ser aquele lugar da sala o mais escuro da casa.
Minha mãe sempre brigava com ele para escolher outro lugar, mas era em vão.
“Eu
lembrei o quanto o senhor não gostava quando eu queria me pendurar nessa cadeira.
O senhor se lembra? Eu sei que nunca fui um bom filho, nunca fiz nada que
pudesse, nesse momento, fazer a conversa ser natural, como seria uma conversa
entre pai e filho. Mas, assim como falei com mamãe, eu me arrependo de tudo que
eu fiz com vocês. Você consegue entender minha situação”?
No
momento em que pensei que ele estivesse prestando atenção, e que naquele
movimento ele pudesse olhar para mim, olhos nos olhos, e me dissesse alguma
coisa; foi ali que o seu único movimento foi virar a folha do jornal e voltar
para a mesma posição inerte que estava quando eu entrei na sala. Meu pai era
quem mais me culpava pela morte de minha irmã. Ele sempre dizia que eu deveria
protege-la, por ser menino; e por esse motivo deveria ter feito muito mais do
que fiz quando ela correu para a estrada naquele que foi um dos piores dias de
minha vida. Tentei conversar outras vezes sobre isso com ele, até mesmo quando
nos vimos rapidamente no dia do enterro do meu Tio Arnaldo. Mas naquela época
ele pelo menos respondeu minhas palavras, mesmo ressentido. Agora, não. Só
ouvia o silêncio e seu rosto indiferente.
“Queria
mesmo aprender a pescar. Eu sei que o senhor não gosta muito, mas seria ótimo
estar com você. Sabe que eu não tive um pai, né? Tio Arnaldo se esforçava, mas
o meu pai mesmo esteve sempre longe. Você não sabe quantas noites eu acordei
assustado e queria que o senhor entrasse pela porta do quarto e me abraçasse, e
me dissesse para eu ficar tranquilo, pois o senhor iria me ensinar as coisas da
vida. Iria me ensinar o certo e o errado; iríamos beber juntos; jogar cartas.
Juro que sonhava em cuidar das plantas aqui de casa com o mesmo carinho e o
mesmo zelo. Você iria me ensinar a fazer aquela feijoada. Sabe que não sei
cozinhar, né? Nem sei pescar. Nem sei plantar. Nem sei exatamente aquilo que é
certo e o que é errado. Não sei o quê é amor”.
Não
tinha muito mais para falar sobre minha vida que nunca foi preenchida.
“Pai,
eu gostaria de me desculpar sobre aquele dia. Eu vacilei, eu sei. Eu devia ter
cuidado melhor da minha irmã. Eu não devia tê-la deixado correr para fora do
quintal. Eu sei. Eu sonho com aquele dia, todos os dias de minha vida. Não tem
um único momento em que a imagem da minha irmã me dá sossego. Eu, por um
momento, achei que não fosse o culpado. Mas com o passar dos anos, fui
percebendo que eu não deveria ter saído de perto, assim como havia prometido
para o senhor. Então, eu venho aqui e me ajoelho aos seus pés; por favor, me
perdoe todo o mal que causei a essa família. Peço que me receba aqui na sua
casa, que me abrace; que esqueça tudo que eu fiz de errado; que me perdoe. Que
me perdoe. Que me perdoe”!
Levantei
do chão, não havia mais nada que eu pudesse fazer naquele momento. Tudo que eu
tinha para falar com meu pai e com minha mãe estava ali, demarcando todos os
cômodos da casa. Em cada palavra, cada gesto e cada infeliz situação; tudo era
parte da minha história. Se era para eu ser feliz, se era para eu ser triste;
tudo estava consumado. Não havia mais tempo para pensar em quanto eu podia
acertar ou errar. Ali estava decido o meu fim. Então, eu saio como com o
coração tranquilo. Saindo pela porta como cheguei: sem nada, além da esperança
em ser perdoado. Do lado de fora Beatriz me esperava no portão.
“Sabia
que você conseguiria”.
“Fiz
exatamente o que meu coração pedia”.
“E
eles”?
“Minha
mãe soltou uma única frase que valeu todos esses anos”
“Seu
pai”?
“Não
disse absolutamente nada”.
“Já
pensou na possibilidade de não poder ser visto por eles”?
“Como
assim”?
“Por
algum motivo; por alguma circunstância; ele não saber que você estava ali do
lado dele”?
“Não,
nunca. Jamais. Estou aqui, estava lá dentro, você está me vendo. Não, espere
aí, como eles não estão me vendo”?
A
porta da casa se abre, meu pai e minha mãe saem em direção a estrada.
“Vamos
acompanhá-los”?
“Não
quero, não quero. Já sofri demais. Já fiz aquilo que você queria”
“Eu
quero apenas uma oportunidade apenas em te ajudar”.
“Quem
é você afinal”?
* * *
A primeira vez que senti aquela
dor pensei ser alguma bobagem. Era uma dor incomum, forte e densa; mas não
houve muito tempo para pensar nas consequências. Quando acordei já estava na
cama de um hospital. Ângela estava ao meu lado. O tempo foi passando e de
repente me vi assinando documentos que distribuindo meus bens. Embora tivesse
apenas Ângela por perto que eu pudesse chamar de parente. Então, Doutor
Leonardo fez as alterações e eu assinei. Tudo resolvido. Se eu não pudesse mais
sair daquele hospital, ou saísse apenas morto; tudo teria uma rotina normal.
“Como saberei que estou morto”?
“Não diga uma coisa dessas”.
“Eu preciso saber, caso acorde do
outro lado do mundo”.
“Acho que deve ser igual ao sono”.
“Com sonhos ou pesadelos”?
“Mais sonhos”.
Capítulo
11 – A missa
“O Senhor é o
Pastor que me conduz
Por caminhos
nunca vistos me enviou
Sou chamado a
ser fermento, sal e luz
E por isso
respondi: aqui estou!”[xi]
Seguimos
meus pais pela estrada de terra. Eles entraram em uma capela que ficava perto
de onde morávamos. Lembrei de ter ido algumas vezes quando era pequeno, embora
não tivesse mencionado até agora a sua existência. Apertamos o passo, mas não
nos aproximávamos dos dois. Beatriz disse que era melhor mantermos uma
distância, pois poderíamos assustá-los. Não era noite, mas já estava escuro. O
tempo passa depressa, eu digo. Continuamos andando. Eles entram, sentam-se nos
primeiros bancos. Assim, sucessivamente algumas pessoas vão se aproximando.
Algumas nos cumprimentam antes de entrar, outras passam como se não
estivéssemos naquele lugar.
“Alguma
dessas pessoas são conhecidas”?
“Não
me recordo de nenhuma delas”.
“Dê
uma olhada para dentro da capela”
“Estou
vendo todos sentados, inclusive meus pais”.
“Não
consegue notar nada de diferente”?
“Absolutamente”.
Ficamos
alguns minutos do lado de fora. Não havia altar, apenas um enorme crucifixo no
fundo da capela. Todos os presentes estavam rezando. Não havia ninguém
comandando a missa. Eu sei, não era uma missa. Mas tudo parecia como. Beatriz
em silêncio como se contemplasse o momento.
“Algumas
pessoas aqui rezam por você”.
“Não
as conheço”.
“O
fato de você não saber quem são essas pessoas não significa que elas não te
conheçam”.
“Elas
passaram por mim e nem me viram”.
“Parece
um tanto estranho, mas você vai se acostumar”.
“Está
vendo aquela senhora com um laço azul na cabeça”?
“Sim”
“Dona
Genilda. Ela nunca te viu pessoalmente, mas sabe que foi o filho da Dona Olga
que a ajudou com os remédios”.
“Não
lembro disso”.
“Muitas
vezes só valorizamos os nossos erros”.
O
barulho de dentro da capela foi diminuindo. As pessoas ali dentro foram saindo
uma a uma. Nós nos afastamos da porta, ficando num lugar mais escondido, do
lado direito da capela. Beatriz apontava cada pessoa e me dizia algo que eu
havia feito, mesmo sem querer; mas que de alguma forma tenha ajudado. Tudo
aquilo me dava uma sensação de alegria, ao mesmo tempo de dúvida. Então, quando
minha mãe e meu pai saíram, meu coração disparou. Vi algumas pessoas abraçando
minha mãe, outras abraçando meu pai; embora não soubesse exatamente qual o teor
da conversa.
“Estão
falando de você”.
Eu
tento me aproximar, mas Beatriz me segura pelo braço.
“Não
é momento de se aproximar deles, lembra como foi o encontro com seus pais. Quer
continuar sendo ignorado por eles”?
“Mas
eu preciso saber exatamente o que está acontecendo”.
“Se
você ainda não conseguiu entender até agora, acho complicado entender
aproximando-se de pessoas que você diz não conhecer”.
“Digo
que sou o benfeitor. Não me disse que essas pessoas são gratas a mim”?
“Elas
são gratas, mas ao mesmo tempo carregam o sentimento do abandono”.
“Nunca
irão me perdoar”?
“O
fato de estarem reunidas aqui já é um bom começo. Mas dê tempo ao tempo”.
“Não
quero mais ficar aqui”.
“Venha
comigo para a cidade? Volto amanhã para visitar meu amigo”.
“Não
tenho para onde ir”.
“Não
vou te abandonar”.
* * *
Tempo quente. Sol nasceu cedo.
Como cedo acordavam todas as crianças daquela região. Hoje era dia especial:
Missa Solene. Tínhamos um dia inteiro pela frente. Eu e minha irmã pulamos da
cama. Comemos um pão com manteiga. Café com leite. Minha mãe disse que o bolo
era para a visita. Tio Arnaldo e Tia Margarida chegariam para o almoço, depois
todos partiríamos para a praça. Lá todos se reuniam para a entrada triunfal na
Igreja. Adorava Tio Arnaldo em casa. Eles faziam uma fogueira. Minha mãe fazia
pipoca. Minha irmã não gostava de pipoca. Ficávamos eufóricos com aquele dia.
Então, acordamos cedo. Comemos rápido. Fui para o quintal para caçar borboleta.
Ela não gostava, dizia que os animais não nasciam para ficar presos.
“Se nem bicho pode, homem também
não”.
Ela bate com toda força na lata
que estava carregando, a lata cai no chão, as borboletas fogem. As borboletas
fogem de mim como se eu realmente quisesse fazer algum mal. Eu corro atrás da
minha irmã, eu realmente não iria fazer nada. Juro que não iria fazer nada.
Iria brigar com minha irmã como os irmãos brigam. Enquanto ela corria ela ria
do meu desespero. E eu comecei a rir também por estar tão desesperado. Sem
grande surpresa ambos rindo do acontecimento, enquanto ela desesperadamente
fugia de mim. E foi assim que aconteceu: ela passou pelo portão, e quando
percebi seu corpo já estava entrelaçado entre as rodas, patas e o desespero do
meu pai, que em vão tentou salvá-la do inevitável.
“Se bicho morre, todos morrem
também”.
CAPÍTULO
12 – O Dejà-vu
“A sonhar eu
venci mundos,
Minha vida um
sonho foi.
Cerra teus
olhos profundos
Para a
verdade que dói.”[xii]
Pegamos
o primeiro ônibus para a cidade. O retorno não foi tão cansativo. O ônibus
segue a viagem. De alguma maneira eu já sabia o final. Todos os finais são
óbvios. Beatriz não está dormindo, mas está completamente calada. Parada para o
lanche, banheiro. Não desci do ônibus.
Também estava sem fome. A imagem daquelas pessoas me ignorando. A imagem da
minha mãe e do meu pai não respondendo nenhuma das minhas questões, nem se
importando comigo. Tudo era terrivelmente assustador. Se não queriam minha
presença, poderiam ter me mandado embora antes. A viagem deveria ser mais
rápida, já que estava programada apenas uma parada. Frio, calor; o vento que
não batia em meu rosto. Estava com Beatriz naquele ônibus sabe se lá por qual
razão. Talvez por não ter mesmo razão para não estar. Nos últimos dias ela era
a minha única companheira.
“Qual
o motivo de você ter se interessado por mim”? – Eu começo a conversa.
“Não
me interessei. Você que sentou ao meu lado no ônibus, lembra”?
“Parecia
que eu conhecia você de algum lugar. Aliás, tenho essa sensação ainda”.
“A
vida tem elementos tão misteriosos, mas tão simples”.
“Tem
certeza que não nos conhecíamos de algum lugar”?
Como
eu disse, a viagem foi rápida. Chegamos na cidade e tudo parecia diferente. Eu
vi todos os carros, todos os prédios e todas as pessoas se esbarrando na
rodoviária. Mas mesmo esse cenário que parecia tão cotidiano, estava diferente.
Eu que pensei que nunca mais voltaria para aquele lugar, estava agora diante da
mesma situação de quando eu parti: não tinha nada mais com aquela cidade.
Seguimos então para a casa de Beatriz, ela precisava tomar um banho, trocar de
roupa. Ela disse que queria ir até o hospital ainda hoje. O apartamento era
pequeno, mas muito bem organizado. Tudo no seu devido lugar. Eu fico sentado no
sofá olhando para a janela. Prédios, prédios e mais prédios.
“Não
posso ficar aqui por muito tempo. Preciso arrumar um apartamento”.
“Pode
ficar aqui até arrumar um”.
“Acha
que devo procurar Ângela”?
“Você
tem alguma coisa importante para dizer”?
“Queria
agradecer por tudo que ela fez por mim”.
“É
terrível, parece que queremos resolver coisas que passamos a vida inteira
evitando”.
“Nunca
evitei Ângela”!
“Mas
sempre evitou agradecer”.
“Eu
sempre fui um bom marido”.
Chegamos
na porta do hospital. Curiosamente era o mesmo onde eu passei os piores dias de
minha vida. Sinto ainda o gosto dos remédios e o cheiro da comida. E eu que
pensei: conheci muitos restaurantes em muitas viagens que fiz, mas a comida que
eles serviam ali era de longe a pior de todas. Fico imaginando se fossem os
meus últimos dias, como seria? Se me perguntassem o que eu queria comer,
pensaria logo no mais básico: arroz, feijão e um bife com cebolas. Poderia
também ter batata frita e uma salada de tomate. Seria tão terrível assim comer
isso? A sopa, a gelatina e o arroz com frango grelhado. Tudo era tão ruim como
não poder ver o rosto das pessoas andando de um lado para o outro nas ruas.
“Você
não quer subir”?
“Prefiro
ficar aqui mesmo”.
“Gostaria
que você conhecesse meu amigo”.
“Será
que ele faria questão? Não estou nos meus melhores dias”.
“Ele
também não está”.
“Já
que você insiste”.
“Você
pode contar o caso de sua família. Pode encorajá-lo numa recuperação melhor”.
Subimos
as escadas. Ninguém notou nossa presença. O sujeito estava no quarto número
três logo no primeiro andar. Os corredores, os quadros e tudo naquele hospital
me dava uma sensação estranha, um tipo de dejà-vu. Um médico passa por nós,
olha para Beatriz como se a conhecesse, embora não parasse para qualquer
cumprimento. Tirando esse fato, o hospital parecia abandonado. Corredores
vazios, um silêncio assustador. Chegamos na porta do quarto onde o amigo de
Beatriz estava hospedado. A sensação de estranhamento continuava. Um silêncio
absoluto. Na cama o sujeito agonizava os últimos minutos, rezando para realizar
o último desejo. Ele estava prestes a rever os pais depois de tantos anos,
poderia enfim fazer as pazes. Mas, por algum motivo do destino os pais chegaram
tarde.
“Sinto
muito pelo seu amigo, Beatriz”.
“Também
sinto”.
Meu
pai e minha mãe saem do quarto tristes por não terem consigo me perdoar.
F I M
[i] “Encontros e Despedidas”, Milton Nascimento e Fernando Brant
[ii] “A Casa”, Vinícius de Moraes
[iii] Vilarejo, Marisa Monte
[iv]
Frase em esperanto, significa: “Estou acordado e todos dormem”.
[v] “Nada será como antes”, Milton
Nascimento
[vi] “Feijoada Completa”, Chico
Buarque.
[vii] “Edipiana Número 1”, Alceu
Valença
[viii] “Na Terra como no Céu”, Geraldo
Vandré
[ix] “Mulher barriguda”, Secos e
Molhados
[x] “Naquela Mesa”, Sérgio
Bittencourt
[xi]
Música Católica
[xii]
“Sonhar venci mundos”, Maria Bethânia