1/24
Abro
o portão do prédio. Checo a caixa de correspondência. Há tempos ninguém se
lembra de mim. As escadas naquele prédio
estão escuras, o corredor também. Subo o primeiro degrau. Em passos lentos vou
passando por cada obstáculo imaginário. Quase ninguém mais mora no prédio (mas
ele não está abandonado). Primeiro andar passa. Segundo e terceiro. Estou ofegante,
estou cansado; as pernas não me obedecem como deveriam. Ando pelo corredor até
última porta do lado esquerdo. Procuro a chave no bolso. Um maço de cigarros. O
troco do ônibus. A chave. Abro a porta sem qualquer dificuldade: ainda que bêbado,
estava consciente.
No
sofá: Bruna totalmente nua. Ela dorme um sono profundo. Não queria começar essa
história com a descrição de uma mulher nua, mas é necessário. Bruna se tornará
a pessoa mais importante para mim. Ela e sua pele branca, seus cabelos loiros e
um sorriso enigmático. Olhos verdes? Fiquei olhando para seu sono. Realmente
não me lembro: qual a cor dos seus olhos? Desde que horas ela está me
esperando? Faz calor no apartamento. Sempre está quente. Até em dias de frio,
aqui é quente. Tiro minha camisa (que cheira cigarro, bebida e perfume). Vou
até o banheiro. Minha cabeça para de rodar. Silêncio em toda casa, silêncio
fora dela. Minha vida passa por instantes no espelho: estou ficando
demasiadamente velho. Mais velho que meu pai, mais velho do que eu seria se
estivesse velho. Uma cadeia de informações determinando meu tempo, fazendo com
que ele andasse muito depressa.
Lavo
o rosto. Volto para a sala.
Sento-me
no sofá, observo Bruna. Esperaria horas até que ela acordasse. Observando seu
corpo. Mas não é só pelo corpo que ela me chama atenção – Hoje estou cansado e
triste - Em outras épocas acordaria Bruna. Colocaria seu corpo quente na minha
cama. Colocaria em seu corpo quente. Hoje, não. Só observo. Quais os motivos
que a fazem ficar ali? Entrar em meu apartamento sabendo que eu estaria perdido
em algum bar sujo e boêmio? Que estaria com outras mulheres? A traição, que não
é uma traição; já que não temos absolutamente nada um com o outro (somos
namorados?). Tudo isso parece me incomodar mais. Ela não se incomoda. Bruna não
se importar com o que eu faço ou deixo de fazer, mesmo quando diz que me ama.
Cinco
horas da manhã: Bruna não se move. Eu estou nu no sofá, fumando meu último
cigarro. Será o último em minha vida. Não estou com sede, nem com fome. Quero
apenas entender o motivo de Bruna me amar tanto. Querer tanto estar comigo.
Decidir que sou o homem de sua vida – Que piegas! Ela move o seu corpo nu no
meu sofá, ela parece chamar minha atenção. Seus movimentos, seus sonhos; não
sei bem. Estou mais cansado ainda, meu corpo dolorido e inerte. O sol aparece
no canto direito da janela.
Não
consigo pensar numa solução para a proposta de Fernando.
Levanto-me
antes que ela acorde. Vou para meu quarto. Tranco a porta. Ajeito-me na cama,
totalmente desarrumada e fedendo - Preciso chamar a faxineira para uma limpeza
geral. Bruna não entra em meu quarto sem qualquer permissão. Ela costuma
arrumar meus livros, lava a louça; compra alguns mantimentos para o armário.
Mas no meu quarto ela não entra (entrava). Tenho uma sensação de invasão quando
isso acontece. Considero meu quarto o único lugar seguro do mundo. Isso desde
meus quinze anos.
Hoje
não queria que Bruna me olhasse dormindo.
2/24
Quatro
horas da tarde: Levanto e Bruna não está mais na sala. Não está mais em lugar
nenhum. Ligo o rádio. O disco ainda está no mesmo lugar, na mesma música que eu
deixei quando saí: “But I'm Strong, I'm
Strong enough to carry him”. Preparo um café forte. Lembrei: tenho um
compromisso com meu irmão. Tomo um banho rápido. O tempo é de chuva, mas não
parece que cairá uma grande tempestade. Uma garoa fina, um vento gelado; no
máximo. Olho no espelho do elevador; lembrei que preciso fazer a barba. Lembrei
que estou parecendo velho. Lembrei que ficar velho significa, muitas vezes,
perder pessoas. Minha mãe está morta. Morreu infeliz e solitária. Morreu sem
qualquer abraço. Sem o meu perdão.
Pego
um táxi. Um sujeito com cara de mexicano. Ele pergunta se eu me incomodo com a
música tocando. Digo que não. Ele canta a música no trajeto de pouco mais de dez
minutos. Na verdade ele não é mexicano. Conversa alguma coisa sobre o governo,
eu respondo com poucas palavras. Nenhum assunto é tão deprimente para mim
quanto o governo. Impostos, queixas; corrupção. Não sabemos falar sobre política
nos ausentando do subversivo mundo da bandidagem. Político bom é político
morto, parafraseia o motorista.
“Dizem
que vão invadir o congresso” – Ele continua.
“Duvido”.
“Você
duvida do poder do povo?”.
“Duvido
que alguma coisa mude”.
“O
povo não aguenta mais”.
“Não acredito em grandes transformações que
não sejam íntimas”.
“Como
assim?”.
“Uma
hora eu te conto”.
Seria
uma explicação longa e cansativa para o pouco tempo que me resta dentro do carro.
Também tinha certeza que ele não entenderia nem metade da minha teoria. Também
refletia o fato de eu não ter teoria nenhuma. Era melhor parar a conversa
naquele ponto. No entanto, ele quis falar sobre futebol, novela e culinária.
Incrivelmente ele sabe tantas coisas quanto eu; mas diferente de mim, ele tinha
a grande necessidade de externar a sua ignorância.
Chegamos.
Dei
o dinheiro, ele o troco. Nossa melhor parceria tinha sido aquela: a prestação
de serviço. A chuva aperta, corro para dentro do prédio. A secretária do meu
irmão está na porta me esperando. Ela parecia mais alta, mais magra. Nada disso
importa. Não tenho nenhuma resposta, eu queria dizer. Não consegui pensar na
proposta do Fernando.
“Pensei
que não viesse mais” – Ela começa.
“Tenho
que acabar logo com isso”.
“Ele
ficará satisfeito com sua visita”.
“Não
é uma visita”.
“Mesmo
assim ele ficará feliz”.
“Não
quero saber como ele vai se sentir”
“Você
está sendo muito rude comigo”
“Desculpe”
Ela
me abraça calorosamente dentro do elevador.
“Não
deixe a sua relação com seu irmão atrapalhe a gente”
“Não
tem como. Você é a secretária do cara, cunhada; vê como estamos distantes?”
“Eu
largo tudo, se você quiser”.
“Pois
é, eu não quero”.
Décimo
oitavo andar.
3/24
Fernando
sabe que eu odeio altura, por isso decidiu alugar um escritório no décimo oitavo
andar. Tudo bem, ele não levou em consideração minha fobia para escolher aquele
lugar; mas para mim parecia algo muito pessoal. Roberta abre a porta do
escritório. Fernando estava visitando um cliente (foi o que ela disse), ainda
não havia chegado. Ela me oferece água, café. Ficamos olhando pela janela o
tempo passar. Aquela paisagem me dava uma espécie de vertigem. Voltei a olhar para
o interior do escritório: tudo era de terrível gosto. Ela se senta ao meu lado.
Não havia mais nada que eu quisesse falar com ela. Ela insiste numa conversa
amigável, mas a verdade é que eu ainda não a perdoei. Não consigo perdoar,
parece ser meu maior defeito.
“Vai
assinar a papelada sem discutir seus direitos?”
“Não
quero nenhum dinheiro, nada disso é meu”.
“Mas
era da sua mãe”.
“Eles
construíram tudo isso; não faço parte desse negócio”.
“Mesmo
assim, o dinheiro que ele vai te passar não é nada mal”.
“Prefiro
não saber”.
“Você
ainda está naquele apartamento apertado?”.
“Ele
é a única coisa que eu consegui na minha vida”.
“Acho
aquele lugar uma simpatia”.
“Que
horas Fernando chega, hein?”.
“Ele
deve estar chegando” – Ela olha para um relógio dourando na parede – “Não
demora”.
“Não
tenho muito tempo”.
“Ainda
está com aquela garota?”.
“Viemos
aqui discutir meu relacionamento ou assinar os papéis da herança?”.
“Mais
uma vez rude comigo”.
Roberta
tinha os cabelos avermelhados. Depois de tanto tempo eu não sabia se era a cor natural.
Nunca tive coragem de perguntar. Ela continua sensual como sempre, apesar da
idade. Algumas mulheres ficam melhores com o passar dos anos, uma raridade. Ultimamente
ela tem usado um batom mais vermelho, as unhas mais escuras; brincos maiores.
Desde o dia em que decidimos não continuar com mais nenhum relacionamento, ela
decidiu ser vista por toda sociedade. Principalmente pelos homens. Ela se
levanta e se aproxima de mim. Segura minha mão:
“Aquilo
que aconteceu com a gente, sabe? Foi uma história legal, né?”
Eu
me levanto. Fico incomodado com Roberta perto de mim. Pareço ver Bruna me olhando pela janela, como
se ela tivesse enormes asas; que flutuasse em pleno ar. Ela teria poder de
ouvir minha conversa, de saber exatamente o que estou sentido. Saio de perto da
Roberta. Distante a observo em silêncio. Alguns segundos para meu coração
disparar. Ele vai se acalmando. Ainda
amo Roberta, ainda a quero; ainda tanta coisa. Vou em direção à porta do
escritório. Roberta continuava sentada no mesmo lugar, passiva; estática. Não
havia qualquer palavra que ela pudesse dizer; qualquer movimento que ela
pudesse fazer. Nada mudaria nossa história. Saio do escritório, mas antes de
fechar totalmente a porta, deixo o recado:
“Quando
tudo estiver resolvido passo para assinar”.
4/24
A
chuva está mais forte. Saio andando pela calçada até uma padaria que ficava ali
perto. Era quase sete da noite, estava com fome. Pensei em falar com a Bruna,
mas Roberta não saia da minha cabeça. Roberta, secretária do meu irmão; um dos meus
maiores inimigos. Quer dizer, ele não é meu inimigo, pois não tenho qualquer
sentimento por ele. Ela, que traiu minha confiança, ela que fez coisas que não
devia. Ela que ainda não sai da minha cabeça. Ela que decidiu me esquecer no
momento que eu mais precisava não ser esquecido. Ela que fez parte dos meus
maiores sonhos, meus desejos mais incontroláveis; da minha pequena e inútil história.
Quero
comer sozinho, ficar sozinho. Pensar na minha vida, sozinho.
Devo
confessar que tenho medo das pessoas. Essa é a principal frase da minha vida,
invariavelmente. Ela representa exatamente o que sou hoje. Diz também sobre
meus sonhos. Quero uma casa no meio do mato, com uma plantação no quintal para
o sustento. Uma casa com dois quartos e uma varanda. Não sei bem o que faria
com a varanda, mas ela existira em minha casa. Um dos quartos ficaria vazio. Eu
criaria pássaros, que dependeriam de mim, para alimentá-los, e algumas vezes
trocaria a merda impregnada nas gaiolas. Prefiro a merda dos pássaros aos
humanos. Esse é meu pensamento tão desordenado.
No
entanto, vivo no meio das pessoas. Preciso delas. Mesmo que as odiando na
maioria das vezes. Odeio pessoas velhas e pessoas novas. Odeio as crianças e
suas perguntas quase sempre irritantes. Tenho certo apresso por mulheres mais
novas, bonitas e delicadas. Mas o convívio com esse tipo de gente nunca ultrapassa
dois dias. A partir disso somos obrigados a romper qualquer tipo de
compromisso. Gosto também de alguns escritores, que entendem o que eu passo. Mas
com eles o convívio é fictício, pois nos conhecemos apenas indiretamente e
unilateralmente. Gosto de alguns amigos e amigas, mas percebo que eles não são
tão essenciais assim: cada vez mais raros. Roberta foi a melhor pessoa em meu
convívio, Bruna tem sido ótima.
Podem
me chamar de qualquer coisa, mas nunca de uma pessoa má. Tenho um coração
enorme, bondoso; mas muito angustiado. Acham que há exagero no que estou
dizendo? Algum engano? As pessoas se odeiam e, em algumas situações, se
admiram. Mas a admiração é perecível. A convivência é uma regra de
sobrevivência, não por gosto. É necessário trocar meia dúzia de palavras com o
vizinho dentro do elevador, bater um papo no boteco com um conhecido de muitos
anos e dizer o quê está sentido para o médico. Todavia, agradecer o cobrador de
ônibus, elogiar a secretária do seu chefe ou enaltecer a beleza de alguma garota,
são atos desprezíveis e hipócritas; quase inúteis. Na maioria das vezes atos desnecessários.
(Estou
amargurado, não ouçam tanto minhas palavras, há uma dosagem extrema de
incredibilidade em tudo que eu digo).
Roberta
olha pela janela enquanto eu saio do prédio. Se eu estivesse ao seu lado a
abraçaria enquanto ela tentava segurar as lágrimas. Se eu estivesse presente,
teria evitado tantas coisas. Mas não estou; não quero estar. Em mim agora
apenas uma fome desaparecendo a cada mordida no sanduíche de queijo e presunto.
Uma tentativa de esquartejar Roberta mentalmente, em cada volta do ponteiro do
relógio; esquecendo sua existência mesquinha. Meu único pensamento no momento,
pensamento jogado no ar para ninguém ouvir: Quero esquecer Roberta de uma vez
por todas!
5/24
Nessa
minha vida já me chamaram de tudo. Ranzinza é a palavra que eu mais ouço.
Ranheta, apesar do mesmo significado, fica em segundo lugar. E várias outras
palavras que prefiro deixar no local do esquecimento voluntário, perto de
alguma área do cérebro onde são guardadas informações de mágoa, ansiedade e
saudade. E, com sinceridade, não fico chateado com essas reclamações, pois as
considero autenticas e verdadeiras. Sou mesmo um teimoso, mal-humorado,
impertinente, rabugento e embirrento. Mas não podem me chamar de salafrário,
picareta; mau-caráter. Não podem me chamar de corrupto, ladrão; contraventor.
Não me podem chamar de larápio; espoliador.
Bandido,
nunca.
É
claro que não criarão nenhuma simpatia por mim, por todos os atributos que eu
confirmo ter. Pior se eu chegasse aqui e dissesse, de forma enganosa e
sedutora, que eu era uma pessoa fácil de lidar, que gostava dos barulhos dos
pássaros. Que levava café da manhã na cama para namorada e que pensava em sexo
como uma singela parte infinitamente menor do amor (ou maior, sei lá como
querem encarar o sexo). Que eu falasse de mim como um ser romântico, querendo
encontrar a alma gêmea (Talvez eu me tornasse um assassino se minha alma gêmea
existisse e fosse idêntica a mim). Alguns querem de mim o final feliz que eu
sei não ser possível. Mesmo assim, acho minha vida uma neurótica coincidência
de fatos felizes.
E
resumo: odeio as pessoas. Pelo que representam para mim, em suas mais diversas
formas. Mais ainda, pelo que as pessoas em mim representam: o vacilo, a
solidão, o descompasso, o abandono e a incompatibilidade. Foi num desses dias, de
total desilusão, que eu encontrei e conheci Bruna. Dia em que estava muito
irritado, depressivo e vencido; completamente derrotado. Um dia que, para qualquer
pessoa normal pareceria absurdo; mas que para mim era algo muito natural,
comum; cotidiano.
* * *
Era um dia
terrivelmente barulhento. Mas era preciso enfrentar o vai e vem das pessoas, se
esbarrando sem qualquer arrependimento. Bebo um gole de café e um pão com
manteiga. Não costumo sentir fome na parte da manhã. Na verdade eu costumo me
alimentar apenas uma vez por dia, lá pelas três horas da tarde. Não gasto
energias, portanto, não preciso repô-las com tanta necessidade. Pois bem, tomo
um banho rápido. Desço as escadas. O dia ainda estava escuro, tanto pelo
horário como pelas nuvens de chuva que estavam se formando desde a noite
passada. Chego ao ponto onde ônibus. Duas pessoas também aguardam. Um homem de
cabelo branco e anéis de ouro e uma menina com roupa de ginástica.
O mundo faz barulho,
descentralizado. Os sons saem de várias partes, podendo ser de carros,
caminhões, bichos e pessoas conversando. Apesar de parecer um dia deserto, os
barulhos dão dimensão de um planeta habitado. Passa um ônibus, não servia para
nós. Vem outro, entramos. Sento-me no primeiro banco vazio que encontro, na
verdade eram vários lugares. A menina com roupa de ginástica se senta ao meu
lado, abre a bolsa e pega um livro pesadíssimo; gigante. Não tenho paciência
para histórias longas. Eu olho fixamente pela janela, vendo a cidade passar em
flashes. Viver sem vontade é um dos piores tormentos do ser humano. Eu não
sentia nenhuma vontade.
“Você é meu vizinho?”
– Ela começa.
6/24
Sábado
e domingo mornos. Alguns filmes; terminei de ler um livro que tinha começado há
meses. Bruna tinha ido visitar os pais, nos encontraríamos apenas na
terça-feira. Ela já estava morando comigo há várias semanas. Estava calor; e,
diferente dos dias anteriores, o Sol apareceu na minha sala (morrendo na janela
da cozinha). Um resto de pizza na geladeira, pão velho; mas ainda macio. Leite
tinha acabado. Misturei achocolatado com água e bastante açúcar. A insônia era
terrível, mas não chegava a me torturar. Tudo passou lentamente. Dois dias sem fumar,
dois dias sem beber. Alguma coisa em mim parecia mudado. Estava curado?
Bruna
disse que minha morte era certa se continuasse vivendo como vivia antes de
conhecê-la.
Segunda-feira.
Nove horas da amanhã. Roberta em pé na minha frente. Três dias depois de nosso
último encontro, ela me procura no único lugar que eu não queria que ela me
achasse: meu apartamento. Ela entra. Está carregando uma pasta. Diz que meu
irmão queria estar ali, mas ela insistiu para que ele ficasse no escritório. Assim
é melhor, pensei. Ela fica no sofá do canto, onde Bruna costuma ficar nua.
Bruna não está; eu disse. Está viajando.
“Os
papéis, como você pediu”.
Espalho
os documentos na mesa. São alguns contratos e algumas cifras, tantos e tantos
números. Assino todos os papéis, sem notar quais os valores e o que estava
escrito. Folha por folha. Não confiava em nenhum deles, nem no meu irmão.
Também não confiava na Adriana e sua irmã, a Roberta. Mas não me interessava mais
nada daquilo. Nunca me interessou. Nenhum dinheiro que eu pudesse perder ou
ganhar. Devolvo os papéis nas mãos de Roberta. Não tinha pensando na hipótese
de ficar com o dinheiro, mas alguma coisa me fazia pensar que precisaria dele
num futuro não muito distante.
“Tem
certeza que não vai ler o que está escrito?”
“Confio
em vocês”.
“Tem
certeza que não quer me ouvir?”.
“Tenho
certeza”.
“Penso
em você todos os dias”.
“Estou
namorando agora, você sabe”.
“Ela
é um passatempo, eu sei que é um passatempo”.
“Não
é um passatempo”.
“Você
confia em sua namorada?”.
“Ela
tem mais motivos de não confiar em mim”.
Eu
rumo até a porta, Roberta me segue. Vai embora com os documentos devidamente
preenchidos. Minha relação com todo aquele pessoal parecia cancelado,
encerrado; os papéis decretavam minha completa e irrestrita ruptura com aquele
tipo de gente. Pelo menos eu pensava isso.
* * *
Bruna e eu no ônibus
em nosso primeiro encontro:
“Outro dia eu escutei
uma música vindo do seu apartamento”.
Eu não gosto de
incomodar ninguém com meu barulho, por isso prezo ser um cara totalmente
invisível. Surpreendeu-me a noticia daquela garota, de que tinha escutado uma
música saindo do meu apartamento.
“Música? Bom, eu
escuto música com volume muito baixinho”.
“Sim”.
“Talvez esteja me
confundindo com outra pessoa”.
“Era você mesmo”.
“Ficou incomodada com
a música? Posso abaixar o volume”.
“Qualquer dia nós escutamos
músicas juntos”.
Ela sorri e desce do
ônibus.
7/24
Os
dias são solitários sem a Bruna. Querendo ou não, é a única pessoa no mundo que
eu converso mais do que seis palavras. Toda tarde inerte no sofá. De repente da
janela vejo um homem olhando em minha direção. Quem seria? Talvez um acaso. Ele
olha insistentemente. Atravessa a rua em vem na direção do prédio. Só pode ser
comigo. Um pouco mais de dois minutos o sujeito bate em minha porta. Abro sem
qualquer receio. Não tinha medo de nada e de ninguém, exatamente por não
possuir nada. Eu tinha apenas minhas lembranças.
“Posso
entrar?”.
“Bom,
na verdade eu nem te conheço”.
“Mas
eu te conheço bem. Você é irmão do Fernando”.
“O
que aquele cara aprontou dessa vez?”.
O
sujeito puxa a carteira do bolso, era um policial.
Entramos.
“Preciso
fazer algumas perguntas”.
“Estou
à disposição”.
“Fernando
foi encontrado morto esta manhã”.
O
silêncio no meu apartamento. Por mais que eu não concordasse com uma porção de
coisas em Fernando, ainda assim era meu irmão. Tudo bem, uma espécie de
hipocrisia se apodera de mim, principalmente por ter imaginado que minha maior
felicidade era vê-lo morto. Mas morto mesmo, de verdade? Aí era outra história.
De relance lembrei quando brincávamos numa bacia de água, quando nossa mãe
ficava desesperada com medo de ficarmos resfriados. Quando brincávamos de
policia e bandido, e seu instinto já o levava a ser o personagem que no futuro
tomou forma e cor. Minha mãe morta, agora Fernando. Minha vida tinha tudo para
ser mais feliz.
“Como
isso aconteceu?”.
“Ele
foi encontrado dentro do escritório”.
“Tem
algum suspeito?”.
“Aparentemente
suicídio”.
“Suicídio?!
Não, não pode ser”.
“Eu
disse aparentemente. Sabe que seu irmão é um sujeito muito perigoso”.
“Não
sei muito sobre ele”.
“Mesmo
assim, tem alguma informação que possa nos ajudar?”
“Ele
é muito ganancioso, é a única coisa que eu sei”.
“Ele
encontrou com você? Pediu algum favor?”.
“Impossível”.
“Seu
irmão tem muitos inimigos”.
Contei
a história da herança e da visita de Roberta no dia anterior.
“Você
sabe quais os itens do contrato?”
“Não
li”.
“Não
leu e mesmo assim assinou os documentos?”.
“Provavelmente
uma ciência minha de que ele poderia ficar com tudo”.
“Seu
irmão deu um golpe na organização criminosa criada por ele e pela sua mãe”.
“Já
disse que sei pouco sobre meu irmão”.
“Suspeitamos
que ele mandou dinheiro para paraísos fiscais. Essa coisa é um tanto
complicada, sabe?”
“Não
tenho nada com isso”.
“Ele
usou pessoas confiáveis para fazer
isso”.
“Não
sou confiável”.
“Mas
foi inocente ao assinar os documentos”.
“Não
tenho qualquer coisa com ele”.
“Roberta
também desapareceu”.
Não
passava por minha cabeça o quê poderia ter acontecido.
“Estamos
vasculhando o apartamento da secretária do seu irmão”.
“Ele
pode ter sido assassinado?”.
“Não
excluo essa hipótese”.
“Ela
pode ter alguma coisa isso?”.
“Não
sabemos ainda. Mas achamos que ela pode ter deixado várias pistas”.
“Não posso ajudar em nada”.
“Uma
coisa eu tenho certeza: seu irmão não se matou”.
8/24
Bruna
chega. Estou no sofá, a televisão desligada; tudo apagado. Andei pensando no
meu irmão, em tudo que ele fez comigo; tudo que ele representava. Não estava
comendo direito, nem dormindo. A Bruna na minha frente era como um anjo para me
salvar; ou quem sabe um anjo para me levar para outro lugar. O disco no rádio
tinha tocado a última música, mas estava com um problema sério: o braço não
voltava automaticamente. A conversa com Bruna aconteceu com o acompanhamento
chato e insistente do braço tentando se reerguer para posição normal. Eu estava
tentando me reerguer, mas as notícias sucessivas me deixavam cada vez mais
desanimado.
“Fiquei
sabendo do seu irmão. Vim assim que pude”.
“O
mundo não perdeu nada”.
“Não
é possível que seja tão insensível”.
“Não
adianta agora eu querer mudar a história”.
“Tente
perdoá-lo, sabe que ele precisa de paz agora”.
“Não
preciso perdoar ninguém, não acredito nisso”.
“É
seu irmão”.
“Meu
irmão morreu quando decidiu por esse caminho”.
Bruna
me levanta do sofá, eu estava visivelmente mais magro do que da última vez que
estivemos juntos.
“Você
precisa de um banho”.
“Preciso
de você aqui”.
Ela
me leva até o chuveiro, me ajeita na mesa da cozinha; prepara uma sopa. Odeio
sopa, mas confesso que tive prazer em cada colherada. A imagem do meu irmão na
minha cabeça, quando brincávamos de guerra de legumes na mesa. Depois pensei na
Roberta, me levando para o banho, esfregando meu peito. Bruna era linda, mas
não tínhamos muito em comum, principalmente o sexo. Era uma coisa um pouco
mecânica, sem sabor; mas ainda assim era bom. Sexo com uma garota como Bruna
sempre será bom.
“O
enterro será amanhã”.
“Não
quero ir”.
“Sabe
que é importante”.
“Não
quero encontrar ninguém”.
“Que
birra é essa?”.
“A
família do meu irmão era a sua máfia.”
“Ele
não tem mais ninguém agora, só você.”
“Fico
triste por ele.”
Meu
pai não foi ao enterro, por motivos óbvios ele estava distante do meu irmão e
da minha mãe.
* * *
Roberta
está em alta velocidade numa estrada de terra. Ninguém sabe como ela foi parar
naquele lugar. Pelo rosto cansado parece estar dirigindo há vários dias. Ela
está assustada, terrivelmente assustada. Fugindo? Existe algum motivo para ela
estar fugindo daquele jeito? O carro passa por um buraco, ela tenta desviar de
um bicho que apareceu de repente no meio da estrada.
Quase
morrem.
9/24
Segundo encontro com
Bruna. Ela tinha um olhar meigo, simples e inofensivo. Eu tinha acabado de
terminar meu namoro conturbado com Roberta. Estava subindo as escadas em
direção ao meu apartamento. Sempre a escuridão. Uma voz ao longe, uma voz
suave; eu olho para trás e Bruna aparece.
“Debussy?”
Meus olhos brilharam.
Depois de tantas decepções alguma pessoa conseguia entender o que estava
acontecendo comigo. Uma pessoa que eu nem conhecia gritando o nome do meu
compositor favorito. Foi um dos instantes que eu deixei de lado o quadro da minha
vida para notar o rosto, a feição de quem estava vindo em minha direção.
“Conhece Debyssy?”
“Um pouco. Não é meu
forte ainda. Prefiro Dvorak”
“Como pode comparar
Debussy com Dvorak?!”
“Eu não estou
comparando, só estou dizendo que prefiro Dvorak”
Eu fiquei pensando no
que ela disse. Como alguém pode gostar mais de Dvorak do que Debussy? Bobagem.
São personagens distintos, que pretendem a música de forma diferente. Eu o
chamo de um eslavo clássico, como se fôssemos íntimos. Waldesruhe nos ouvidos
tem uma coloração incrível, cheia de vida e otimismo. Tem uma excelente
melodia, quase assustadora. Quem falaria mal de Dvorak? Bom. Ela deve saber
mesmo o que disse quando faz sua opção. Mas eu continuo gostando do outro.
Se ela gostasse de
Brahms eu criaria caso com a garota? Talvez não. Talvez aceitasse o convite
para sentarmos em algum lugar, tomarmos conhaque e discutir música. Que ideia
interessante essa de me apresentar como não sou. Eu que desisti da música,
agora querendo discuti-la tomando alguma bebida. Dane-se a garota, não preciso
dela.
Qual o seu nome? Bruna.
Ela respondeu antes de entrar em seu apartamento.
* * *
Hoje
estamos aqui, olhando o caixão do meu irmão sendo baixado lentamente. É a
última vez que verei seu rosto. É a última impressão em minha memória. Tudo
acabado: as brigas, as traições; o ciúme e o sofrimento. Uma das pessoas que eu
mais amava e mais confiava, indo para um lugar desconhecido, que eu nem sei se
existe; que eu não quero acreditar. Bruna segura minha mão, meus olhos
vermelhos. Ela passou a ser a única coisa que me importava, mas eu sabia que
seria por pouco tempo. Num canto isolado o delegado acompanhava tudo.
“Ainda
não entendo como tudo aconteceu”.
“Parece
ser um grande mistério”.
“Não
estou satisfeito com minhas investigações. Acho que logo terei que tirá-lo
daí”.
“Já
não tem os resultados periciais?”
“Não
sei, não sei. Tem coisa estranha nisso. É o meu faro”.
“Boa
sorte com as investigações. Da minha parte tudo morre aqui”.
Jogo
uma foto minha e do meu irmão, ambos no colo pelo meu pai.
10/24
O
sol aparece timidamente. Eu que pensei que ficaria enclausurado dentro do
apartamento o dia todo. Lembrei-me que tinha que trabalhar. Corro até a sala de
aula, mesmo não estando atrasado. Assim evitaria contato com as pessoas no
pátio ou nas lanchonetes. São duas horas de longas questões se formando em
minha cabeça. Eu não aguentava mais aquilo, mas ainda era preciso, eu precisava
de dinheiro. Intervalo: na praça eu como um lanche e um suco de laranja. A
imagem de Bruna aparece na minha frente. Pela primeira vez, depois de vários
dias; Roberta desaparece - Na verdade ela não tinha saído da minha cabeça,
estava impregnada em algum lugar; como um fantasma na minha frente, roupão de
banho; cabelos molhados.
Volto
para casa. Vodca não é minha bebida preferida, mas era a única coisa que eu
tinha. Encho o copo, olho fixamente para a bebida cristalina. Jogo na pia.
Também estava cansado de vinhos importados. Os nacionais são péssimos, mesmo
quando alguém tenta me provar o contrário. Tiro a garrafa do congelador, boto
no copo. Tudo no ralo. Começo o preparo do almoço. Não tenho muitas coisas na
geladeira, nem nos armários. Culinária mesmo é saber se virar com os
ingredientes disponíveis. Vou experimentar certas fusões inimagináveis. Por mim
tudo bem, já que serei o único que poderei adorar e odiar a comida. Nesse
instante não existe música, nem pessoas em minha volta; nem bebida; só
abstinência.
A
comida estava boa, muito mais pela fome e pelo excesso de tempero. Lavo toda
louça (que não era muita) e vou para sala. Eu estava começando a ler outro
livro, mas naquele dia estava com preguiça. Além disso, eu já sabia o que iria
acontecer com o personagem principal, pois tudo naquele autor era previsível.
As coisas previsíveis me enchem de encanto em determinados momentos, em outros
me causam tédio. Apesar de gostar de uma vida conservadora e monótona, não
gostava de presenciar essa situação na ficção. Da mesmice já me basta a
realidade.
Durmo
na sala.
Bruna
chega. O seu perfume é encantador. A noite estava bonita, brilhante. Não havia
nuvens negras como na noite anterior. Bruna estava com uma saia preta e uma
blusa azul marinho. Ela entra, nós nos abraçamos. Ela sabe que eu tenho algumas
coisas me incomodando. Peço apenas para que me abrace; nós nos beijamos. Adoro
sua contemplação, sua maneira de aceitar a minha condição infiel e desajeitada.
Ajudando-me a tirar Roberta da cabeça, fazendo certa assepsia do meu coração.
Bruna sabia que não existia mais ninguém na minha história; mas sabia que eu
ainda amava Roberta.
Dvorak
tem cerca de nove sinfonias. Particularmente prefiro a dois e a sete. Tem algo
genial para piado e violino. Talvez Bruna gostasse da um e a nove. Não
concordaríamos nisso, tenho certeza. Bruna sai do chuveiro. Está mais cheirosa
ainda. Eu preparo alguma coisa para ela comer.
Quis falar sobre a herança, qual foi a minha decisão; mas achei melhor
não tocar no assunto.
“Eu
procurei alguma coisa de Debyssy”.
“Procurou?”.
“Você
me fez pensar nisso”.
“Geralmente
não perdemos tempo com as coisas que gostamos”.
A
noite se alongou com um filme de terror e uma séria de inquestionáveis sonhos de
nossa já habitual parceria.
11/24
Batem
na porta. Eu saio da cama, ajeito Bruna delicadamente sem acordá-la. Vou em
direção à sala. Continuam batendo. Do outro lado o delegado, mas dessa vez ele
estava acompanhado de dois policiais. Peço para eles entrarem. Delegado Ademar
diz que a conversa seria rápida. Ele diz que não conseguiu localizar qualquer
publicação do contrato que eu havia assinado, onde supostamente havia
renunciado toda e qualquer herança que teria direito por causa da morte da
minha mãe. Sem localizar esses documentos assinados seria impossível descobrir
a verdadeira razão de sua existência.
O
caixão caindo, a foto do meu irmão: A única herança agora é minha paz.
“Descobrimos
que tudo foi transferido para Roberta”.
“A
herança?”
“Todo
o dinheiro limpo das empresas, também o dinheiro sujo dos negócios”.
“Talvez
o teor do contrato tenha sido a renúncia da herança”.
“É
possível”
“Roberta passou a movimentar todo dinheiro que
era da sua mãe”.
“Tudo
está resolvido: ela matou meu irmão para fugir com o dinheiro.”
“Não
confirmo essa informação, pois acho que o seu irmão não está morto”.
“Mas
responde a questão do homicídio, não?”
“Iremos
reavaliar o corpo em três dias. Esse negócio é muito burocrático”.
“Supondo
que dentro do caixão tenha outro sujeito?”
“Roberta
e Fernando deram um golpe em todos vocês, herdeiros legítimos.”
“Meu
pai também?”
“Sim”.
“Ele
deve ter assinado os papéis”.
“Pior
que o golpe em vocês é o golpe que eles deram na organização”.
“Para
me dar um golpe não era necessário minha assinatura, certo?”.
“Com
certeza. Mas o documento pode ter outra serventia”.
“Qual
seria?”.
“Provar
sua inocência”.
“Como assim?”
“Pense:
os bandidos estão eufóricos para acabar com todos os envolvidos no golpe.”
“Os
papéis que eu assinei podem me ajudar?”
“Exatamente.
Se você não quis qualquer dinheiro, não há motivo algum para te perseguirem”.
“Não
pensei nisso!”
“Fernando
e Roberta, se estão juntos nisso, quiseram ajuda-lo”.
“Meu
Deus!”
“Mas
me diga uma coisa: Qual a sua relação com Roberta?”.
Tinha
medo de uma pergunta assim. Por incrível que possa parecer, poucos sabiam que
éramos namorados. Sabiam menos ainda sobre nossa separação. Roberta era uma
situação no passado, que eu insistia em querer estrangular; deformar e sufocar.
Como um quadro colorido, que recebe um jato de tinta preta; misturada com
acetona e álcool. Um quadro deformado e inútil. Um quadro indefinido, rasgado;
como um quadro que caiu da mudança e foi abandonado perto de um bueiro, cheio
de ratos e esgoto ao céu aberto. Roberta não era a questão que eu queria
responder naquele momento.
“Fomos
namorados”
“E
o que aconteceu?”
“É
necessário mesmo responder esse tipo de pergunta?”
“Tudo
pode ajudar”.
Bruna
aparece na sala. Apenas cumprimenta todos os presentes e vai direto para a cozinha.
Pergunta se alguém quer um café. Respondem negativamente. Então ela volta para
o quarto. Um detalhe impressiona: Ela está totalmente nua. Bruna sofria de
sonambulismo? Podem pensar isso - Mas não é isso - Não é nada de anormal com
ela; nada que eu possa explicar. Talvez ela não tenha notado a presença dos
policiais, talvez ainda estivesse dormindo. Talvez eu não saiba os motivos.
“Melhor
termos esse tipo de conversa em outro lugar” – Diz o delegado.
“Eu
gostaria, acho mais apropriado”.
“Assim
que o corpo for analisado, eu mando notícias”.
* * *
Roberta
chega até o hotel. Alguém aguarda sua chegada.
12/24
Volto
para o quarto. Bruna estava sonolenta na cama. Lembrei quando Roberta insistia
em dormir no meu apartamento. Ela acordava mais bonita ainda. Seus olhos
brilhavam. Não entendo o motivo de ter feito aquilo comigo, mas já disse que é
passado. Bruna cheirava algo doce, puro e delicado. Meus braços esticados, eu
agarro o seu corpo ainda na cama. Ela queria um pouco mais de mim. Teria.
Naquele momento ela teria de mim o que há de inteiro, de correto; verdadeiro e
físico. Teria mais: teria minhas sensações. Minha vibração; meu coração
pulsando. Minhas mãos frenéticas e incansáveis. A pior forma de traição era
aquela: o corpo entregue e a mente viajando pelo cosmos, procurando o
verdadeiro amor.
Onde
estará Roberta?
“Você
gosta só de música clássica?” – Bruna me acorda com alguns beijos esparramados
pelo corpo.
“Bom,
ficaria surpresa se eu dissesse que sim?”
“Meu
pai, quando era vivo, adorava música.”
“Gosto
de vários tipos de música”.
“Eu
trouxe Caetano”.
Não
queria discutir com Bruna a questão da música. Estávamos vivendo muito bem todo
esse tempo. Mesmo assim, por tudo que ela tem feito por mim, decidi fazer sua
vontade. Não era tão difícil assim, apesar de parecer impossível em outras
épocas. Nunca pensei que uma música como aquela pudesse tocar em meu
apartamento. Também não perguntei mais nada sobre o pai de Bruna, pois assuntos
familiares são comprometedores; remete-nos a uma intimidade da qual não estava
preparado.
“Seu
pai gostava de música? Que bom. Deve ter aprendido muito com ele.”
“Muito
mesmo. Ele não gostava apenas de música clássica, gostava de compositores
brasileiros da música popular brasileira, chorinho; até de rock ele gostava.”
“Fico
surpreso. Quando educamos nossos ouvidos não conseguimos mais presenciar
tamanho despautério que comentem com a música em geral.”
“Você
fala assim, mas eu tenho quase certeza que nunca parou para ouvir música
brasileira.”
Separo
Rossini. La Cenerentola. Não é a mais conhecida ópera, mas é a que mais me
excita hoje em dia. Talvez os menos avisados conheçam a Il barbiere di
Siviglia, conhecido O Barbeiro de Sevilha. Começa a tocar. Bruna encosta no meu
ombro, escutamos a música até o final. Manhã bem cedo. Acordo e saio sem
acordar Bruna. A aula foi calma e não me deixou deprimido - Não sei qual o
motivo de sonhar tanto com as aulas de quando eu era mais jovem – Durante o
exercício eu fico pensando no meu irmão, na Roberta; mas apenas Bruna me dá a
força necessária para continuar sobrevivendo. Esse era o problema: Bruna não
vai durar para sempre. Ainda não tenho tanta certeza sobre o amor que estamos
vivendo: posso amar Bruna?
Estava
sem fome, portanto não precisaria ir até a cozinha preparar uma comida cheia de
tempero, despistando o paladar confuso das misturas. A campainha toca, eu me
levanto do chão. Curiosamente gosto de escutar ópera deitado no tapete, com a
cabeça abaixo do lustre pesadíssimo. Torcendo em alguns momentos para que ele
caísse em minha cabeça bem no meio de uma apresentação. Bruna não estava no
apartamento.
13/24
Quando
Bruna está longe eu não consigo deixar de pensar na Roberta. Estava realmente
preocupado com tudo que estava acontecendo. Será que ela matou meu irmão para
ficar com todo o dinheiro? Será ela vai entrar por aquela porta, pedindo
desculpas; perdão; se jogará no chão pedindo que eu fuja com ela? Tenho
delírios quando não bebo e quando não fumo. Mais de duas semanas sem cigarros.
Onde escondi o meu último maço? Bate o desespero. Estou com saudade; sinto
Roberta tocando em meu corpo, me levando até o chão, tapete macio. A música
para. Para qualquer tipo de saudade ainda não inventaram remédio.
Depois
de duas horas Bruna chega. Ela parece sentir o perfume de Roberta, mesmo assim
não diz absolutamente nada. Bom, ela não sabe como é o perfume da Roberta. Ela
nem conhece a Roberta. Diz que está com fome, procura alguma coisa na cozinha. Eu
saio do tapete, vou para o sofá. Pego o livro que havia começado há uma semana.
Acho que é mais fácil conversar comigo quando chega à noite. Fico mal humorado
de dia.
“Você jantou?” – Ela me pergunta.
“Estou
sem fome.”
“Trouxe
Chico”.
“Chico
Buarque? “Banda”? Muito chato”.
“Trouxe
algumas coisa do Djavan”.
“Quer
escutar agora?!”.
“Eu
vou mostrar composições interessantíssimas”
“Como
alguém pode gostar de Dvorak e Chico Buarque?!?!”
Sobrou
desse nosso desencontro
Um
conto de amor
Ficamos
juntos, ouvindo a música. A ansiedade dos primeiros encontros, que geralmente
acontecem com casais apaixonados, foi diluída de uma maneira natural. De
repente estávamos nos beijando, como se já nos conhecêssemos há muito tempo.
Ouvindo uma música que eu não gostava. Beber vinho nacional que eu odiava (ela
pegou a garrafa em seu apartamento pouco tempo antes)?. Em breves momentos
nossos corpos unidos, em movimentos impensados, cansativos e repetitivos. Os
copos ficaram cheios em cima da mesa, não bebemos nada, como eu havia
prometido.
As
óperas são famosas pela dramaticidade. Para leigos, quase sempre ela representa
o sofrimento de algum personagem. Um drama, eu diria, nem sempre é coisa
alegre. Mas também não podemos dizer que óperas são coisas tristes, para
pessoas infelizes. Bruna está junto comigo na cama, dormimos juntos. É questão
de tempo ela se enojar do meu temperamento, ir embora para sempre. Tantas
pessoas que fizeram isso, que não será nenhuma novidade esse acontecimento. Com
o tempo apreendemos a lidar melhor com as perdas.
Eu
sei que pareço um velho chato, geralmente as pessoas dormem quando eu começo a
falar. Todavia, deveriam se manter acordadas, evitando um pesadelo
desnecessário. Comprovadamente existem mensagens subliminares em qualquer
tagarelice do cotidiano, por isso quase sempre ficamos sonolentos com pessoas
chatas.
(É
como se elas nos dissessem, insistentemente: “Durma! Nem eu aguento esse papo!”).
Bruna
acorda.
14/24
Roberta
sobe as escadas do hotel. Estava com um papel na mão, indicando o endereço e o
quarto do encontro. Ninguém na recepção, por sorte ou azar. Ela bate duas vezes
na porta, espera alguns minutos. Um sujeito abre a porta, ela entra. O outro
sujeito está no banho. Ele deixou a porta do banheiro aberta. Roberta coloca
uma pasta na mesa, puxa alguns papéis. Fernando aparece depois de alguns
minutos com uma toalha enrolada no corpo.
“Trouxe
o que eu pedi?”
“Tudo
aqui, conforme suas instruções”.
“Alguém
suspeitou de alguma coisa? Viu alguém te seguindo?”
“Não,
ninguém, nada”.
“Meu
irmão? Como ele está? Suspeitou de alguma coisa?”
“Que
nada, nem olhou para o caixão”.
“Ele
não reconheceria o cadáver”.
“O
pagamento em dinheiro para aquele médico, tudo está perfeito”.
“E
sobre você?”.
“A
polícia esta me procurando”.
“O
que eles acham?”
“Que
eu dei um golpe em você, coisa do gênero. A hipótese do suicídio já era. Um
absurdo!”.
“Deixou
as pistas como indiquei?”.
“Sim”
“Eles
correm riscos?”
“A
polícia já descartou o envolvimento do seu irmão em sua morte”.
“Meu
medo não é a polícia”.
“Demo
Duarte também já sabe que seu irmão e seu pai não receberam nenhum dinheiro”.
Dois
tiros derrubam Roberta no chão.
* * *
Queria
contar a verdade para Bruna, que ainda estava apaixonado por Roberta. Queria
contar que estava tudo muito estranho em relação à morte do meu irmão; que
existia uma suspeita dele estar vivo. Queria contar a verdade sobre o suposto
suicídio. Queria contar sobre minha mãe, sobre meu pai. Queria trazer Bruna
para mais perto de mim, que ela me ouvisse, que saíssemos nas ruas de mãos
dadas. Queria levá-la para jantar, depois assistir um filme no cinema. Qual a
relação que eu queria agora com a Bruna? Será que ela suporta saber da minha
paixão? Será que é preciso? Sinto uma dor no peito, sinto uma angústia; sinto
que a mentira me faz um mal que eu não consigo compreender. Queria poder amar
Bruna, queria que ela viesse morar comigo para sempre (meus dias estavam tão
solitários). Queria que Bruna respondesse minhas perguntas, tão filosoficamente
elaboradas para não serem compreendidas. Queria ser uma pessoa diferente para
Bruna.
Bruna
merece um sujeito como eu, mas estou longe de ser o sujeito ideal.
* * *
Fernando
e seu capanga pegam os documentos na mesa e colocam dentro de um envelope.
Partem em direção ao carro. Roberta no chão, sangrando como uma galinha
decapitada, um bicho qualquer. Descobririam Roberta depois de alguns dias,
quando o cheiro insuportável começou a incomodar alguns hóspedes. Por ironia,
ela foi descoberta por um casal que estava ali passando a lua-de-mel. Eles nunca
quiseram ter filhos.
Outra
pessoa surge novamente no meio disso tudo: Adriana, esposa do Fernanda e irmã
de Roberta. Ela sabia de todo o plano, e com seu aval ele estava sendo colocado
em prática com maestria e frieza. O pensamento deles era fugir para outro país,
assim por diante, até conseguirem a paz.
Pelo
menos Fernando pensava que o plano era esse.
15/24
Queria
perguntar sobre Bach, Saint Saens, Bach, Beethoven, Rossini,Brahms, Berlioz,
Handel, Villa Lobos, Vivaldi , Haydin, Lizt, , Tchaikovsky ou Mozart. Mas a
conversa seria impertinente para naquela hora da manhã. Pergunto se ele quer um
café forte, estava com cara de ressaca. Café forte é um ótimo remédio. Ela
apenas sorri, vira-se e dorme novamente.
Eu
estava cansado de tudo: um cansaço extremo. Cansado de pensar nas coisas.
Cansado de conversar sobre música. Cansado de pensar na música como a única
coisa que poderia me fazer feliz um dia. Cansado do meu trabalho. Cansado das
pessoas me perguntando coisas. Lembro-me das aulas, quando eu era aluno. Hoje
eu sou professor. Arredio e exigente; características que as pessoas de hoje
não mais toleram. Admito que também ser mais intolerante; e que acabo odiando a
humanidade por causa disso.
Em
momentos eu sei que a humanidade não é responsável pela minha felicidade.
“Estou com sono, mas preciso ir” – Ela diz.
“Mais
alguns minutos”.
“Não
sei se foi certo ficar aqui tantos dias”.
“Não
pense nisso agora”.
“Acha
que fizemos alguma coisa errada?”
“Precisamos
de um café forte, um pão quente; só isso”.
Levantei.
A
padaria fica a poucos metros. Comprei o necessário. Preparei um café da manhã
confortante, mas não luxuoso. Comemos. Não trocamos mais nenhuma palavra. Absolutamente
nada. Estamos distantes, numa distância natural. Não nos conhecemos, afinal. “Qualquer
dia desses nos vemos” – Ela poderia ter dito no meio da refeição. Não disse. Bruna
estava gostando de mim, e cada aproximação minha, ela ficava com mais medo.
Isso parecia uma coisa normal para um casal tão diferente, antagônico e por
vezes esquizofrênico.
“Well I don't go to church on Sunday
Don't get on my knees to pray
Don't memorize the books of the Bible
Got my own special way
I know Jesus loves me”
Bruna,
eu não gosto apenas de música clássica; cansei de repetir.
* * *
Fernando,
Adriana e o capanga em alta velocidade. Ninguém suspeita que eles estejam
carregando dados que são chaves para uma fortuna; tanto dinheiro num pequeno
envelope pardo e cheio de números.
* * *
A
suspeita do Delegado Ademar se confirma: Eu não tenho nenhuma relação com o
lado criminoso de Fernando, nem mesmo com Roberta; com quem tive um
relacionamento amoroso. De algum modo, a cópia do contrato localizado no
apartamento, em que eu dizia não querer nada da minha mãe não tinha o menor
sentido de existir. Exceto nas investigações: meu nome, a partir dali, seria
esquecido para sempre. O delegado pegou todo documento das investigações
realizadas sobre mim e colocou dentro de um envelope todo rabiscado. Pediu para
o assistente arquivar, dizendo logo em seguida:
“Esse
sujeito não tem onde cair morto”.
“Pode
um homem renunciar uma herança ilegal?” – Um policial novato pergunta ao
delegado.
“Talvez
a renúncia não sirva para nossa justiça comum, mas para a justiça deles; os
criminosos”.
A
insistência para que eu assinasse os papéis era um pretexto usado por Fernando
para poder me encontrar? Ou ele nem soubesse disso, e que aquela exigência toda
era apenas uma forma de Roberta se aproximar? Delegado Ademar confidenciou a
policiais que esse pequeno deslize de Fernando (ou de Roberta), forjando um
documento tão inutilmente infantil, poderia levantar ainda mais suspeitas sobre
mim. No entanto, em relação ao meu nome, o caso estava encerrado completamente
encerrado. Pelo menos naquela delegacia.
16/24
Estou
andando pela rua, sem destino. Queria olhar o mundo e as coisas em sua volta.
As ruas de domingo não ficam tão abarrotadas. Não encontro com ambulantes, nem tantos assaltantes. Paro na
praça, tento reorganizar minha vida. Não é uma fase muito fácil, mas eu sei que
existe uma saída. O resumo principal dessa minha tristeza não é apenas a
questão amorosa com Roberta; mas a questão existencial com meu irmão morto;
principalmente com minha mãe.
Continuo
andando, e de repente estava a quase duas horas distante do apartamento. Bruna
ainda estaria dormindo? Penso na Bruna como uma amiga, uma companheira; alguém
com quem eu possa conversar; jogar papo fora; e discutir todos esses assuntos
que tanto me incomodam. Eu pensei em levar a vida com menos sofreguidão, ser
mais hedonista, encontrar mais prazer nas coisas. Nas mínimas coisas. Acho que
isso só acontece quando sofremos um choque, uma perda; uma ruptura brutal com
nosso antigo eu.
Preciso
da morte, da ruptura; renascer agora mesmo.
Ando
me desviando de assuntos sérios, parece. Bruna seria um objeto da minha nova
existência. Vejamos o seu exemplo: namorando um cara mais velho, que não é
bonito (mas também não é feio), que não tem muito dinheiro; e que vive
reclamando. Meu corpo não é atlético,
não falo outras línguas; conheço poucos lugares no mundo. As mulheres odeiam
homens reclamando, pois não suportam conviver com homens fracos. Bruna me ama, pois,
possivelmente tenho alguma coisa interessante.
* * *
Eles
param para colocar gasolina. Fernando estava no banco de trás com Adriana,
resolvem revezar a direção. Ganhariam mais disposição, e consequentemente mais
tempo. Pretendiam chegar à fronteira na tarde do dia seguinte. Eles comem
alguma coisa, Fernando checa alguma coisa no celular. O envelope com as senhas está
no porta-malas, junto com algumas roupas e armas. O capanga não sabe qual será
o seu fim, no entanto acompanha o casal. Em sua cabeça surgia à imagem de uma
traição: Fernando iria se livrar dele assim que pudesse.
Quais
as garantias de que Fernando não o mataria também, assim como fez com Roberta?
Pode confiar na Adriana? Uma mulher que planeja a morte da própria irmã é capaz
de qualquer coisa. Eles saem do posto de gasolina. Fernando agora está no
volante, Adriana no banco da frente e o capanga dormindo no banco de trás. Seus
sonhos eram pesadelos, pensando num tiro que poderia acontecer de uma hora para
outra, vindo de alguma arma do Fernando ou da Adriana.
Felizmente
o crime comporta uma ética discutível e injusta.
“Só
não entendi o motivo de querer ajudar seu irmão”.
“Com
tudo que passamos, ele ainda é meu irmão”.
“É
uma besta”.
“Não
fale assim dele”.
“Vai
me bater por causa disso?”.
“Apenas
quero que o respeite”.
“Não
entendo esse seu joguinho”.
“Não
precisa entender”.
Nunca
quis o dinheiro do crime, mesmo quando preciso utilizá-lo.
17/24
Delegado
Ademar chega em sua casa. Sua mulher grávida de alguns meses está esperando no
portão. Ele guarda o carro. Discute com a mulher sobre ela ficar ali esperando,
em épocas de violência e crimes. Pediu que ela ficasse dentro de casa,
trancada; principalmente quando o movimento da rua começasse a diminuir,
facilitando os pequenos criminosos, ladrões de televisão e rádios; dinheiro
para drogas e bebidas.
Diante
dele passa a imagem de Fernando e a história de um verdadeiro criminoso. Alguma
coisa estava confusa em tudo aquilo. Desde a morte, do corpo; e de tudo que
envolveu o inquérito. Não confiava nas pessoas envolvidas; nem no médico; nem
em qualquer pessoa que tivesse participado diretamente ou indiretamente daquele
suicídio. E se foi um homicídio? Dúvidas em sua cabeça não o deixavam dormir.
Levantou-se e cobriu sua esposa. A temperatura tinha caído drasticamente
naquela noite.
Duas
horas da manhã ele recebe um telefonema de um amigo: Roberta foi encontrada morta.
Outra informação mudaria todo o rumo das investigações: Fernando não estava
morto, no seu lugar um indigente qualquer. Delegado pula da escrivaninha, quase
acorda a esposa que estava sonhando. Fernando fugiu com todo dinheiro, usou
Roberta e depois a matou. Essa era a hipótese mais provável. Ele quis me ligar
no mesmo instante, mas estava demasiadamente cansado. A esposa também se
contorcia na cama, logo precisaria correr para a maternidade.
Mais
sensato era aguardar até que todos estivessem acordados.
Fernando
era um cara poderoso. Sua organização criminosa tinha negócios com grandes
empresas; desde transportadoras até indústria da pirataria. Roupas, remédios;
comida; e jogos. Fernando conhecido como Polegar. Chefe de uma organização que
começou com sua mãe, Dona Sônia ou Tia Sônia. A morte da matriarca causou um reboliço
enorme entre os líderes. Alguns diziam que o Polegar deveria ser o sucessor,
algo natural. Outros acreditavam que Demo Duarte era o cara que colocaria a
empresa no rumo certo. A organização havia perdido espaço em vários setores,
principalmente a ligação com os políticos.
Na
cabeça de Fernando tudo estava resolvido: Se ficasse no lugar de sua mãe ele
seria assassinado. Resolveu armar um golpe, tirar o dinheiro da organização;
fugir dos caras. Para isso ele pediu ajuda de um sujeito misterioso, um tanto
enigmático; mas que tinha conhecimento e poder no submundo do crime organizado.
Com o pacto feito começaram a ação. O plano era minucioso e Roberta era a
figura principal. Fernando só não contava com a traição de Roberta e o acordo
que ela fez com o seu principal inimigo.
* * *
Do
outro lado da cidade Bruna dormia em meu colo. Ela estava triste, pois estava
decidida a fazer uns exames médicos. Estava incomodada com uma porção de coisas
que estavam acontecendo: mal-estar repentino, dor de cabeça; estômago
embrulhado. Ela não estava grávida, me garantiu. Eu alisava seus cabelos longos
e macios. Enrijecia-me o corpo, sensibilizando todas as áreas nobres que ela
por ventura tocasse. Seria um ótimo sexo, se ela não estivesse tão triste. Eu
tento umas palavras de conforto, mas inutilmente ela continua cabisbaixa.
De
repente o delírio: Roberta entra na sala com os papéis que eu devo assinar.
Eu
a acordo delicadamente. Ela vai para meu quarto. Eu pego uma roupa e decido
sair. Não estava com sono, e se ficasse naquele lugar eu ficaria maluco. Pego
uma cerveja na geladeira. Não bebo cerveja, e acho que os efeitos que ela
poderia me causar são demorados. Saio do apartamento, pego o elevador. O
porteiro me olha com estranheza, não sou um sujeito que tem hábitos noturnos.
Ele abre o portão. Ali eu percebo que já são mais de onze horas da noite. Pego
o caminho inverso daquele que eu costumo andar, eu precisava encontrar uma
pessoa. Jogo a latinha de cerveja no primeiro lixo que encontro: não bebi
nenhum gole
Pouco
mais de vinte minutos eu entro numa rua sem saída. A casa que estou procurando
é a última do lado direito, com paredes esverdeadas e janelas antigas. Bato
palma. Uma luz acende. Da pequena portinhola da janela um sujeito aparece:
cabelos brancos, olhos cansados; um sorriso amarelo. Meu pai me atende,
entramos:
“Está
precisando de dinheiro?”
“Acha
que eu venho aqui só para pedir dinheiro?”
“Quase
sempre” – Ele sorri e me abraça.
“Dessa
vez o senhor está enganado”
18/24
Os
olhos do meu pai brilham. Preciso contar os últimos acontecimentos, mas tenho
medo da reação dele. A verdade ainda é o melhor remédio, ele me diria, se ele
pudesse ler os meus pensamentos. A relação não era nada agradável entre meu
pai, minha mãe e Fernando. Conto que o seu filho está morto, mas prefiro não
entrar em detalhes. Ele se levanta com dificuldade, caminha pela sala de forma
lenta. Eu apenas observo, sem muito dizer.
“Espero
que ele encontre finalmente a paz”.
“Eu
rezo por isso, meu pai; mas não posso dizer que confio”.
“Deus
olha a todos os filhos da mesma forma, pois ele é um pai sereno”.
“Fernando
nunca foi uma boa pessoa”.
“Aos
olhos de Deus tudo é possível”.
Ele
caminha até a estante onde uma Bíblia enorme está aberta em Salmos. Ele olha
fixamente para as páginas enigmáticas, faz o sinal da cruz e volta
tranquilamente para o sofá onde estava agora pouco. Eu seguro sua mão, eu sei
que ele está sofrendo; mas ao mesmo tempo sei que sua fé, sua confiança; sua
esperança; sempre o ajudaram em momentos tão dolorosos.
“Queria
que você acreditasse apenas um pouco”.
“Sabe
que isso é impossível, não é?”.
“Queria
poder ajudá-lo com esse coração tão angustiado”.
“Não
pode me ajudar; mas entenda que não é culpa sua”.
“Eu
te olhava, ainda criança, aqueles seus olhos de esperança; sempre acreditei que
você seria um homem melhor do que é hoje”.
“Eu
não faço mal a ninguém, você me ensinou isso”.
“Mas
não te ensinei a não fazer mal para você mesmo”.
Ficamos
ali assistindo um filme em preto e branco. Ele me contou sobre a visita de
Roberta, trazendo alguns papéis relacionados à morte da minha mãe. Assim como
aconteceu comigo, ele também não suspeitava de absolutamente nada. Alguns
minutos foram suficientes para ele dormir. Eu ajeito suas pernas no sofá, jogo
um cobertor em suas pernas cansadas. Saio sem que ele perceba.
“Quando
sair, não é necessário apagar a luz” – Ele me disse tantas outras vezes em que
a mesma cena se repetia.
* * *
Delegado
Ademar chega até a delegacia. Todos estão eufóricos com a reabertura do caso.
Afinal de contas, Fernando era um sujeito conhecido; e isso era sucesso
garantido até para os crimes mais óbvios. Polegar reconhecido como criminoso,
chefe de uma organização poderosa. Como estaria a disputa pelo poder? Não era
problema dele. Naquele momento ele queria mesmo era resolver o caso.
“É
notório que estamos numa situação intrigante” – Ele começa a falar com os
policiais.
“Já
falou com o juiz?”
“Está
tudo certo”.
“Vamos
caçar o sujeito!”
* * *
Demo
Duarte fica na frente do meu apartamento durante algumas horas. Olhou para os
outros dois bandidos que o acompanhavam. Passou por sua cabeça invadir meu
apartamento e me dar dois tiros. Depois pensou em atirar dali mesmo, onde
estava. Seria muito mais prático. Mas a verdade é que ele não tinha nada contra
mim, muito menos contra Bruna. Da janela ele via os vultos de um lado para
outro. Segura a arma com uma das mãos, pensa num tiro certeiro; mas logo em
seguida desiste.
“O
cara não viveria nessa espelunca”.
“Lugar
horrível”.
“Acho
que ele não recebeu absolutamente nada”.
“Quem
enviou aquela papelada para nosso escritório?”.
“Que
importa isso agora?”.
“Polegar
se preocuparia em inocentar o irmão?”
Não
me mataram.
19/24
Bruna
continua dormindo. Estou sem sono. Na sala procuro alguns discos, coisas que
não tenho ouvido ultimamente. Villa-Lobos? Número 4. Brahms? Sim. Não estou
querendo escutar ópera. Segunda sinfonia. Deito no chão, olhos apertos e
atentos nas figuras imaginárias no teto branco e descascado. O sono não chega
facilmente, eu estava me sentido muito estranho por causa da ausência do
cigarro e da bebida. Um vulto passa por mim, vai até a cozinha. Bruna nua e sua
pele branca; seus olhos claros e seus cabelos soltos. Ela não está mais triste,
aparentemente. Pensei em chamá-la, ela ficaria comigo na sala; mas desisti. Ela
estava cansada, iria fazer exames médicos logo pela manhã. Bruna, vinte e nove
anos; alta e feliz; dormindo suavemente enquanto andava pela minha casa. Estou
satisfeito com tudo aquilo.
Ma mi ha insegnato a
non fare del male a me stesso – Meu
pai olhando fixamente para o crucifixo na parede. Nunca soube o que ele queria
dizer com aquilo.
Carmina
Burana, Orff. Não é a melhor coisa; mas é tão conhecida. Sucesso nas carreiras
mais deselegantes; nos momentos mais depravados; homens derrotados. Trilha
sonora de incrédulo, maldito e podres coitados. Alguns conhecem apenas uma
parte da cantata. Para quem não sabe, cantata é diferente de sonata, exatamente
por valorizar mais o canto que os instrumentos. Oh! Fortuna! Parece que pela
fortuna tudo andou acontecendo na minha vida: eu me desviando inutilmente dos
apelos sinceros do dinheiro. “O fortuna,
Velut luna, Statu variabilis, Semper crescis, Aut decrescis; Vita detestabilis,
Nunc obdurat Et tunc curat”.
Bruna
me acorda, ela tinha feito café e o pão estava na mesa.
“Vai
me desejar sorte?”.
“Você
tem toda sorte do mundo”.
“Não
quis dormir comigo? Meus pés estavam gelados”.
“Estive
com meu pai, falei sobre Fernando”.
“Qual
foi a reação dele?”.
“Rezou”.
“Pediu
para ele rezar por mim também?”.
“Pedi,
claro que pedi” – Estava mentindo para Bruna. Nem lembrava o exame.
“Acho
que os anjos estão comigo”.
Bruna
sai.
* * *
O
capanga estava cansado, exatamente por isso ele não conseguiu ficar vigilante
todo o tempo que Fernando dirigia. Ele pega no sono. Eles já estão há duas
horas do encontro com o sujeito que conseguiu toda documentação para a saída do
país. Daqui a duas semanas estarão na Alemanha, Itália e Bélgica. Adriana e o
sonho de se casar em um desses países.
“Quem
afinal é a Bruna?”.
“É
a namorada do meu irmão”.
“Você
passou a grana para uma pessoa que nem conhece?”.
“Se
ela mora com meu irmão, deve ser confiável”.
“Não
tem medo que descubram alguma coisa?”.
“Só
descobrirão se eles mesmos contarem”.
“Eu
fico me remoendo por causa disso. Era um bom dinheiro e você jogou no lixo!”.
“Meu
irmão, já disse”.
Não
haverá casamento em nenhuma parte do mundo, mas talvez exista uma grande festa.
20/24
Minha
cabeça não estava funcionando direito. Estava confuso e cansado. A aula acaba.
Último dia de aula do semestre. Terei tempo para reorganizar minha vida, pensar
em Bruna. Bruna estaria doente? Resolvo encontra-la na porta do laboratório
onde ela faria o exame. Nem tudo ocorre como quero. Uma reunião de professores
me prende por mais tempo que eu esperava. Cintia falava horas sem parar, mas
nunca chega a lugar nenhum. Era praxe reclamações, bocejos e tempo perdido em
suas palestras. Litros de café. Dor de estômago em ouvir tanta petulância.
Enfim, era uma pessoa tão desagradável quanto eu.
No
apartamento preparo alguma coisa para comer. Bruna chega cansada. Ainda tem a
cara triste. Provavelmente os resultados dos exames não foram boas notícias.
Quando estava se arrumando, antes de sair de manhã, tinha uma cara confiante; a
sensação de que tudo iria dar certo. Bruna descansa no sofá da sala, olhar
apático e uma voz distante; parecia não ser a Bruna que eu conhecia. Falei
sobre o almoço, perguntei algumas bobagens sobre o dia; mas não tive coragem de
perguntar sobre sua saúde. Era notório que tudo estava muito ruim.
Naquele
mesmo instante o delegado me liga dizendo que tinha informações importantes
sobre as falcatruas de Fernando. Eu não estava interessado se acusariam meu
irmão, morto e enterrado. Minha única questão a ser resolvida era sobre Bruna. Mas
ele continuou o assunto: Depois do processo burocrático eles iriam tirar
Fernando do caixão. Com certeza ainda estaria inteiro, sorriso largo e todos os
dentes na boca. Fernando que não parecia ser mais o meu irmão, pois tudo
indicava que, naquele momento, ela já não era. Estava arriscando minha vida com
completos desconhecidos? Um morto exumado, uma garota sem vida?
Preciso
de um cigarro.
* * *
O
capanga morto foi descoberto por um grupo de índios. Eles se preparavam para
uma batalha com a polícia por causa da invasão de suas terras. O capanga estava
com o rosto esfolado, um tiro no meio da testa. Fora empurrado por Adriana
enquanto o carro estava em alta velocidade. Os policiais trocaram tiros com os
índios, achavam que assim vingariam a morte de mais um homem branco.
Os
índios foram considerados culpados pela morte do capanga, naquele tribunal
aberto onde todos pareciam ter razões para que a batalha não acabasse.
* * *
Bruna
dorme na minha cama. Ela estava doente, precisaria de cuidados médicos; um
tratamento intenso e sofrível. A pior notícia possível. Além disso: um
tratamento demasiadamente caro. Pensei em chorar, pensei em rezar; pensei em
mais uma vez procurar meu pai. Pensei em tudo isso, mas não fiz absolutamente
nada. Pensei no dinheiro que eu deixei de lado, pensei nos papéis que assinei.
O dinheiro imundo de Fernando poderia me ajudar a salvar Bruna. Uma sinuca; uma
bravata interna; meus egos se digladiando. Meu mundo correto desabando pela
doença incorreta de Bruna. Tudo parecia acontecer na hora errada.
O
fim justifica o meio: livrar-me da herança maldita pode ter sido a pior decisão
em minha vida; poderá ser essencial para a morte prematura de Bruna.
21/24
A
morte de Roberta me chocou. Na verdade fiquei mais chocado pelo modo como fui
avisado. Poderia saber tudo pelos jornais, que não cansaram de falar sobre as
desgraças sucessivas com o Grupo Feero. Primeiro a investigação sobre
sonegação. Depois a morte trágica de um dos sócios, Fernando; que foi encontrado
pendurado na porta do escritório. Fernando que poderia não ser o Fernando. Depois
tudo que falaram sobre a falência; a demência de Dona Sônia; minha mãe. E por
último esse acidente com Roberta, secretária do meu irmão. Havia algo no ar me
dizendo que era extremamente perigoso ficar perto desse pessoal. Então, poderia
a manchete me falar sobre Roberta; mas foi o próprio delegado quem me ligou.
Ele sabia muito mais do que imaginavam os jornalistas, e queria alguma espécie
de informação que julgava que eu soubesse. Lembro-me de Fernando colando numa
prova de física, lá no colégio onde estudamos; mas de resto não posso dizer
mais nada sobre ele. Era um sujeito estranho para mim.
A
verdade é que eu não sabia que Fernando era pior do que eu imaginava.
Encontrei
como delegado num boteco sujo no centro da cidade. Eu disse que ele precisava
ser breve, pois estava com uma pessoa doente em casa. Ele me contou tudo que
tinham descoberto nessas últimas semanas de investigação. A única coisa que ele
ainda não sabia era sobre o capanga de Fernando, cujo registro como empregado
ou qualquer informação pessoal nunca existiram de fato.
“Descobrimos
que seu irmão está vivo”.
“Como
assim? Vi o sujeito morto, enterrado”.
“Não
era seu irmão”.
“Impossível”.
“Sabemos
que ele fez tudo isso para fugir com a esposa, Adriana”.
“Não
pode ser, ele estava no caixão, todos viram. E os médicos? E os documentos do
falecimento?”
“Tudo
forjado”
“Não
acredito”
“Porcamente
forjado eu diria. Na verdade ele queria ganhar tempo”.
“Onde
ele pode estar agora?”
“É
isso que queremos saber. Você tem alguma ideia?”
“Não
tenho ideia”.
“Estamos
procurando o sujeito por todo Estado”.
“Torço
por vocês”.
Admito
uma lágrima, admito ter sentido algo estranho: uma mistura de felicidade, por
ele ainda estar vivo e ódio, por ele ser um criminoso.
“Descobrimos
tudo por causa da carta da Roberta”
“Como
assim?”
“Ela
sabia que poderia ser morta pela irmã e pelo cunhado, deixou um documento
descrevendo tudo que estava acontecendo”.
“Assim
que descobriram o golpe?”.
“Isso
nos ajudou”.
Roberta
disse tudo sobre a organização. Detalhadamente o plano de Fernando e o tal
traficante que o ajudaria na fuga. Roberta só não contou que houve um pedido
importante: Fernando achou que a única maneira de despistar a organização em
relação a mim e meu para era preparar uma série de provas determinando minha
inocência. Mas havia uma informação que ela não tinha deixado: Fernando pediu
que fosse feito uma transferência em dinheiro para conta de Bruna. Assim, a polícia
não investigou esse dinheiro, Demo Duarte também não.
Eu
e Bruna nunca suspeitamos de sua existência.
22/24
Uma
música suave. Bruna imóvel na minha cama. Ela não tinha forças para sair
daquela posição, nem vontade. Um médico se aproxima, ele diz que precisa
leva-la para o hospital para a remoção de tudo que estava contaminado. A operação estava marcada para os próximos
dias. O médico, meu pai e mais duas senhoras: Eles impõem as mãos voltadas para
o peito de Bruna, fazem uma oração. O ritual deveria ser feito mais umas três
vezes, para melhores resultados; conforme a informação do próprio médico. Eles
diziam palavras incompreensíveis, principalmente para mim que estava em certa
distância. Bruna parecia entrar numa espécie de transe, algo que eu não sei
precisar. A verdade é que tudo parecia mudado, em mim também algo mudava. Saiam
sem pedir absolutamente nada, exceto um copo de água gelada.
Uma
doença raríssima, enigmática; mortal.
Estranhamente
o corpo de Bruna passava por uma transformação que eu não saberia e nem queria
explicar. Uma onda de felicidade, mesmo com as dificuldades que ela
provavelmente passaria dali em diante. O seu corpo nu não era mais o mesmo que
andava perambulando pelo apartamento, ou que se encostava sutilmente no sofá da
sala. O seu corpo, aquele que eu não podia nem queria ver, tinha a amputação do
membro corroído, a costura imaginária da fenda aberta; o tumor desaparecendo
por completo. Ali eu percebi que estava amando um pouco mais a Bruna, mesmo
sabendo que não a teria por muito tempo.
A
operação estava marcada.
* * *
Fernando
está cansado. Por alguns momentos a sua vida passa como num desses filmes de
terror. Destruição, morte; sofrimento. Ele acorda do sono impossível quando
desvia de um carro que estava vindo em sua direção. Adriana também estava
dormindo, mas o peso de tudo que estava acontecendo com eles parecia ser menor.
Fernando não era um sujeito que merecesse qualquer respeito, mas a sua vida
piorou depois do casamento e desse amor tão nefasto que tinha por Adriana.
Curiosamente
nunca tive esse sentimento de repulsa por minha mãe.
* * *
Bruna
está na maca. Seus olhos ainda cheios de esperança. Meu pai decidiu me
acompanhar em todo aquele processo. Ainda que ele estivesse tão cansado em sua
própria condição física, ele tinha uma vitalidade incomum para uma pessoa de
sua idade. Entrei com a Bruna até onde eu pude. Dali em diante era uma coisa
que nem eu, nem o médico; nem Bruna poderia controlar. O controle da vida e da
morte nas mãos de Deus.
E
eu falando sobre Deus sem conhecê-lo direito.
A
operação tinha ocorrido da melhor forma possível, mas era quase impossível
continuarmos com o tratamento. Os remédios eram caros, os resultados
improváveis; tudo muito complicado. Meu pai segurou minha mão, depois se
retirou calmamente do quarto. Naquele momento: eu olhando pela janela e Bruna
totalmente desacordada na cama. Tubos, fios e um rosto muito magro e
desfigurado. Levanto as minhas mãos para o céu, e rezo como quando ainda era
criança. Inocente da minha descrença e confiante que Deus escolheria o melhor
para nós.
23/24
Fernando
para o carro perto de um posto de gasolina. Ali seria o seu encontro. Eles
ficam dentro do carro, Adriana segura sua mão; ela também está apreensiva com o
quê pode acontecer com os dois. O caminho até ali tinha sido fácil, elaborar o
plano de fuga também. Mas ter que encontrar com Val não estava em seus planos.
De repente batem no vidro. Um sujeito alto, vestido de preto; terrivelmente
sinistro. Adriana abre a janela, ele pede que saiam do carro. Fernando
encostado no carro, Adriana longe fuma um cigarro; Val continua imóvel desde o
momento em que chegou.
“Trouxe
o dinheiro?”
“O
valor combinado”
“Não
admito traição”
“Está
no porta-malas”
Andam
depressa.
“Um
envelope?”.
“O
dinheiro está depositado”.
“Não
foi isso que combinamos”.
“Achei
mais seguro”.
“Você
não tinha que achar nada”.
“O
dinheiro está lá, pode consultar. Os dados aqui no envelope, a senha”.
“Eu
disse que queria o dinheiro”.
O
cigarro de Adriana apaga.
“Alguém
poderia nos assaltar no meio do caminho”.
“Não
estou aqui para discutir sobre isso”.
“Tente
entender o meu lado”.
“Não
estou aqui por causa do seu lado”.
Fernando
se agacha. Seus olhos voltados para o chão. A figura sinistra segura Fernando
pelo pescoço. De repente as mãos de Fernando procuram algo na terra, como quem
quer se esconder em algum buraco; cavando sua própria cova. Tudo estava perdido,
ele pensa. Olha para Adriana e sente uma dor ainda maior: Ela ao longe com
olhar brilhante, sorriso largo. Então ele leva as mãos ao céu desconfiando de
sua crença incerta, pois ali teve certeza de que, apenas na inocência dos seus
dias de criança, cruelmente não matou Deus.
Fernando
estava morto por sua escolha naquele momento.
* * *
Delegado
Ademar descobre que Fernando e Adriana fugiram com a ajuda de outro traficante.
Curiosamente não sabiam nada sobre ele, nem qual a relação do sujeito com o
crime organizado no mundo. O delegado só tinha uma certeza: Todo o dinheiro sujo estava depositado em
diversas contas de diversas agências; vaporizados na burocratização e no sigilo
de negócios que envolviam muitas pessoas poderosas. Sua única certeza era não
precisar os vitoriosos, nem ao menos se Fernando e Adriana estariam vivos.
Esse
seria o mistério que carregaria por toda sua vida.
24/FIM
Tudo
que Fernando conseguiu em sua vida agora estava no limbo da história. A polícia continuaria a investigação,
querendo saber sobre o dinheiro roubado do Grupo Feero e da morte da Roberta. O
destino de tanto dinheiro era indeterminado, pelo menos era isso que o Delegado
Ademar disse para as autoridades e jornalistas. Também não tinham notícias
sobre Fernando e Adriana, mas as buscam continuaram até que uma ordem surgiu
para que tudo permanecesse como estava, ou seja, sem resolução.
“Jura
que não leu nenhum parágrafo?”
“Não
queria saber de nada do meu irmão”.
“E
se encontrarmos seu irmão e a sua cunhada?”
“Não
quero saber deles”.
“Se
estiverem mortos?”.
“Ainda
assim não preciso saber”.
“Quer
saber como sua mãe morreu?”.
Minha
mãe atacada por uma doença mental morreu sufocada pelo próprio vômito em um
hospital público.
“Quer
mais um café?” – Ademar sugere.
“Ficamos
por aqui”.
“Até
breve”.
“Até
nunca mais”.
* * *
Abro
o portão do prédio. Checo a caixa de correspondência. Há tempos não espero nada
de ninguém. As escadas e o corredor continuam escuros Estou ofegante,
estou cansado; as pernas não me obedecem como deveriam. Cada dia pior. Ando
pelo corredor até última porta do lado esquerdo. Procuro a chave no bolso. Não
há mais cigarros, apenas o troco do ônibus.
No
sofá: Bruna totalmente nua. Ela dorme um sono profundo. Não queria acabar essa história
com a descrição de uma mulher nua e doente. Bruna e sua pele branca, seus
cabelos loiros e um sorriso enigmático. Até que horas ela ficará me esperando?
Vou até o banheiro. Silêncio em toda casa, silêncio fora dela. Minha vida passa
por instantes no espelho: estou ficando demasiadamente velho. Lavo o rosto.
Volto para a sala. Bruna continua me esperando, me olhando apaixonadamente.
Ainda não sei o motivo de me amar tanto.
“Não estou me sentindo bem hoje”.
“Fique
tranquila, isso logo passa”.
“Promete
que não vai me deixar sozinha?”.
“Estarei
sempre ao seu lado”.
“Fica
comigo só esta noite?”.
“Estarei
sempre ao seu lado”.
E
o coração de quem ama fica faltando um pedaço
Que
nem a lua minguando, que nem o meu nos seus braços.
Eu
estava feliz daquele jeito e isso passou a ser minha única riqueza.
FIM