segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Mão que escolhe o crime

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Madeleine era realmente uma menina baixa, seus cabelos continuaram lisos e castanhos, quase louros. Ela deixa cair os livros que estava segurando. Um susto enorme ao ver-me sentado em seu sofá. Não é comum deixar a porta aberta, eu queria dizer; mas só consegui mesmo prestar socorro. Gritávamos, ela pelo susto e eu tentando acalmá-la. Foi inútil, ela continuou apavorada. De repente ela para de gritar, ficou em completo silêncio. Mesmo em silêncio, mantinha uma forma pálida e indefesa. Ajudo com os livros, coloco todos em cima da mesa. Seguro o braço da garota, pedindo para ela se sentar.
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“Desculpe ter entrado assim, a porta estava aberta” – Minha frase não tinha efeito algum sobre a garota.
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Ela continuava me olhando assustada, com medo do que eu poderia fazer. Minha cara não parecia de qualquer psicopata, mas com certeza dava medo. Um pouco da minha barba crescida de duas semanas, uma camisa amassada no corpo, uma velha calça e um sapato sujo. Eu era exatamente aquilo para a garota. Não estava cheirando mal, e também não é por isso que ela estava me olhando daquele jeito. Qualquer um que fosse, do jeito que estivesse; causaria a mesma impressão a Madeleine. Ela começa a voltar a si, já entendendo um pouco minhas palavras. Talvez não tivesse total compreensão das idéias, mas já era um bom começo para desculpar-me pela invasão.
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“Não vou lhe fazer mal. Desculpe, mais uma vez, por ter entrado assim em sua casa”
“Quem é você?”
“Quer um copo de água com açúcar? É só me dizer onde essas coisas ficam na cozinha que eu preparo para você” – Levando de perto da garota.
“Não saia daqui. Fique onde está” – Volto ao mesmo lugar – “Quem é você?”
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Pego minha carteira, dela tiro uma foto surrada. Tiro uma foto de uma senhora, cabelos brancos e olhar triste e cansado. Mostro para Madeleine, ela continua me olhando assustada.
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“Está vendo? É Isabelle Bresson. Já ouviu falar dela, não?”
“Tenho certeza que não”
“Tenho outra foto aqui... vai se lembrar, tenho certeza”
“Pare com isso. Só quero saber quem é você”
“Se me deixar explicar”
“Não tenho que deixar nada... você invade minha casa.... Quero saber quem é você” – Impaciente.
“Então, sou bisneto da Isabelle”
“Quero ver a foto” – Madeleine pega a foto, fica olhando por alguns segundos – “O quê significa tudo isso? Nem conheço essa Isabelle”
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Mais uma vez me esforço para começar o assunto, não é tão fácil chegar do nada e recuperar uma história que para a garota não fará menor diferença. Madeleine e eu somos os únicos sobreviventes de uma família que foi se perdendo durante os séculos, eu digo. Numa breve reflexão sobre o caso, posso dizer que somos primos de graus distantes. Não há mais nada que possa dizer sobre o caso, estaria mentindo mais ainda. Apenas confirmo nosso pequeno e distante parentesco.
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Eu continuo a história dizendo que se fosse um caso comum, ignoraria a existência de Madeleine; como se faz costumeiramente tantas famílias espalhadas neste mundo. Já imaginou se sentir sozinho? Sem uma pessoa sequer da família? Tem gente que nem liga para isso, sabem que em algum lugar do mundo existe uma pessoa com o mesmo sangue, isso é o bastante para se sentirem seguras. Mas e o meu caso? Olhar para os lados, para o passado; futuro e não encontrar absolutamente ninguém. Fico em silêncio observando a reação de Madeleine.

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Ela se levanta do sofá, ainda não entendia direito tudo aquilo estava acontecendo. Para mim era simples, no entanto, precisava ser compreensivo para que as coisas não ficassem confusas na cabeça de Madeleine. Não podia ir direto ao assunto, de onde vim e como cheguei até aquele lugar. Melhor seria acabar logo com aquilo, dizendo o interesse em encontrá-la. Não posso dizer nada disso, na verdade é uma estranha maluquice na minha cabeça. Não deveria estar ali, não deveria ter perdido tanto tempo procurando uma pessoa estranha, que possivelmente não terá os mesmos sentimentos pelo passado que eu tenho. Levanto. El hombre mediocre de José Igenieros. Não li essa história, mas o nome parecia ser perfeito para mim.
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“Desculpe mesmo ter entrado em sua casa”
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Madeleine continua me olhando, mas a cara agora já não é mais de medo. Está assustada? Um pouco, não é bem essa a sensação que ela transmite. Está confusa, muito confusa. Isso é tudo. Quer continuar me perguntado sobre os motivos de ter invadido sua casa, minhas desculpas parecem responder tudo. Estou na porta da sala, indo embora. Ela continua sentada no sofá, olhando meus movimentos. Pensa agora que eu não estou ali para fazer algum mal. Volto, pego a foto de Isabelle que está em suas mãos, coloco novamente no bolso. Vou embora sem qualquer explicação. A outra foto ficou na mesa da sala.
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Perto dali: Longe. Vou embora, volto. São passos que tento ao saber que o trem está chegando. Mil motivos me prendem ao chão, outros tantos me fazem caminhar para perto do abismo e me atirar. Na minha conta confusa e abstrata, não consigo saber o que está valendo mais para minha vida. Paro na dúvida, na incerteza de como as coisas são. Ninguém tem certeza de absolutamente nada nessa vida. Nem se vale a pena continuar ou não. Não tenho essa certeza e espero nunca saber. Volto para meu lugar, longe dos trilhos. O trem passa, vagão por vagão. Um movimento intenso de pessoas entrando e outras tantas saindo. Eu continuo parado. Poucos minutos depois estou no vazio novamente.
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Conto exatamente dez minutos. No próximo eu vou entrar. Há um motivo para isso. Histórias com mistérios são interessantes, com pessoas neuróticas o sucesso é garantido. O trem chega. Conto dois vagões; do começo para o fim. Entro. Duas senhoras sentadas do meu lado esquerdo. Do lado direito um senhor lendo o jornal. Uma criança com sua mãe. A criança parecia doente e sua mãe lhe fazia carinho no rosto. Senti saudade da minha mãe, que me abandonou quando eu era muito novo. Vou caminhando como quem procura um lugar melhor para sentar. Não existe lugar melhor, todos são iguais quando o vagão está vazio. Todos os sentimentos podem nos preencher quando não sentimos nada. Até o ódio ou talvez a vingança.

Passei os últimos três anos procurando por Madeleine e quando consigo me aproximar, vejo que não tenho coragem de continuar meu plano. O tempo vai passando, lembro que esqueci uma foto com Madeleine, era tarde para ir buscá-la. Saio do vagão, tudo está muito silencioso. Quase meia-noite, as pessoas já estão seguras em suas casas. Ando dois quarteirões e chego à pensão. Não tem ninguém na sala, apenas a televisão ligada. Subo as escadas, entro no meu quarto. Estava cansado, decepcionado comigo mesmo. Queria poder dormir e não acordar jamais.
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Percebi que algumas pessoas são muito parecidas. Quase sempre é pela dor que se unem, pelo medo de ficarem sozinhas ou pela raiva que se enfrentam. Eu precisava de algumas dessas coisas: achar quem estava na mesma situação que eu, sofrendo pela solidão. Quem sabe achar alguém com medo de ficar sozinho. Muito pior seria encontrar alguém por quem me vingar.
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Tiro meu sapato, deito na cama. Meu quarto era o menor de todos na pensão. Eu nunca precisei de muito espaço. Não demoro muito para pegar no sono. Acordo com um falatório vindo da cozinha.
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Levanto, ponho a calça. Dou uma olhada rápida no espelho. Continuo envelhecendo sem aproveitar absolutamente nada da vida. Olho para a roupa, hoje ela não pode estar amassada. Pego minha toalha, minha escola de dente, o perfume. No banheiro uma pequena fila. Como sabem, em algumas pensões temos lavatórios coletivos. São duas pessoas na minha frente. Demorarão cinco minutos; ainda tenho tempo. Minha cara é péssima, faço o bochecho; arrumo o cabelo. Na luz a roupa parecia um pouco mais amassada, não tenho outra. Desço correndo, todos os lugares da mesa estão ocupados. Como pão, leite com café e um pouco de manteiga. Não tenho outros direitos naquele lugar, mas é melhor do que de onde eu vim.
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Desço correndo a ladeira, o que me sobrava de tempo parece ter acabado com a demora para engolir aquele pedaço de pão amanhecido. Viro a esquerda, depois direita. Estou em frente ao prédio que na manhã de ontem exibia uma enorme placa procurando auxiliar contábil. Subo as escadas, vejo uma pequena fila se formando. Parece ser um dia de sorte. Tento recuperar na memória tudo que aprendi quando trabalhava com contabilidade, é fundamental saber exatamente como, quando e porquê eu fazia determinadas coisas. Era simples para mim, contava que não fosse para todos que estavam ali. Há essa carnificina natural das pessoas que estão procurando emprego. Continuo pacientemente esperando minha vez.

Por quê o emprego? Eu poderia mudar de idéia em relação a Madeleine.
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Uma senhora não muito simpática me atende. É direta, entrega os formulários e pede que eu responda o mais rápido possível. Fico espremido aos outros candidatos, numa única mesa que fica bem no meio do escritório. Enquanto vou respondendo as questões que, no meu ponto de vista, são absurdas, dou uma olhada para as pessoas trabalhando. Numa mesa atrás da gorda que me atendeu, uma outra gorda. Ela tem olhar triste. Deve morar sozinha, passa as manhãs de domingo limpando a casa e dando comida para os gatos. Um outro sujeito com um bigode fino lê o jornal. Ele não agüenta a esposa, mas não tem capacidade intelectual ou financeira para arrumar uma amante. Mulheres podem até suportar um sujeito pobre, mas burro elas não admitem.
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Entrego a papelada, outros tinham sido mais rápidos; mas pouco caprichosos. A velha continua me olhando com indiferença, decerto achando que sou velho para o trabalho. Pega minha ficha, coloca dentro de uma caixa entre outras centenas. Sou o mais velho entre eles.

Procuro algum dinheiro no bolso, é tudo que eu tenho. Umas moedas e algumas notas amassadas. Pensei em procurar um velho amigo, para quem trabalhei outras vezes fazendo um serviço temporário, esqueço. Entro num bar, já era hora do almoço. Numa placa horrivelmente escrita com giz, o cardápio do dia. Meu dinheiro pagaria esse almoço, eu me orgulho. Simples minha vida: sem dinheiro e sem emprego. Eram tempos complicados, mas que precisavam de alguns dias para ajustes. Era certo que passaria fome por um pequeno espaço de tempo, que teria que arrumar desculpas para a velha da pensão. Quase todas são incompreensíveis ao nosso estado econômico. Mas era tudo passageiro, já vivi inúmera vezes a mesma situação. Peço o prato, aguardo em silêncio para não perder forças.
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Um balcão enorme, com aquelas cadeiras giratórias. Um total de vinte cadeiras. Do meu lado direito um rapaz cheirando suor. Comia rápido, pensando nas coisas óbvias. Do meu lado esquerdo um velho pensativo, mastigava com dificuldade. Quem sou eu? Um velho sem futuro ou o jovem sem esperança? O velho botou uma colher de arroz na boca, mexeu lentamente o queixo. Podia-se notar a dor que sentia. Por causa da afta, da dentadura ou pelo gosto que ele não sentia da comida. O rapaz engolia tudo, e mesmo que no meio do arroz branco, com gosto forte de gordura de porco, houvesse uma barata; ela seria triturada pelos molares impiedosos da fome. Chega minha comida e repentinamente perco a vontade de comer.

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Saio do bar. Perto dali uma praça suja e abandonada. As coisas são assim mesmo nos dias de hoje, quase tudo perdeu o valor. Antigamente podíamos ver crianças brincando, mães discutindo as últimas traquinagens dos filhos, velhos jogando dominó. Hoje só o mato crescendo, ratos e outros bichos num local seguro. Almas continuam perdidas. Não sou tão velho, mas tenho saudade do passado. A solidão muitas vezes faz surgir uma nostalgia. Sento num banco. Madeleine surge na minha cabeça, surge também uma história que eu não podia estar contando. Parecia que naquele momento a única coisa que me mantinha vivo era uma pessoa que eu não conhecia e sentimentos que eu abominava.
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Tinha medo de tudo isso virar uma estranha obsessão, resolvi esquecer novamente o assunto. Vou tentar arrumar dinheiro, vou pensar que as coisas podem melhorar. Quero muito o emprego. Quero nada, uma ova que quero trabalhar naquele lugar com aquela gorda e aquele sujeito com bigode. É preciso, mas não quero. Levanto, preciso fazer alguma coisa. Fazer exatamente o quê? Paro no meio do caminho, não tinha nenhum plano para minha vida sem Madeleine. Nunca fiz um plano sequer para minha vida. As coisas iam acontecendo e, sem eu perceber, estava mais uma vez ficando velho. Exatamente quarenta e sete anos desse mistério: estar vivo. Alguém poderia me ver, ao longe, sentado naquele banco da praça e pensar: esse sujeito não vai dar certo. Continuo andando, sem ter para onde ir. Continuo não dando certo, nem decidindo o certo.
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Sem perceber estava novamente na porta de Madeleine. Estranhamente todos os caminhos da praça me levavam para longe dali. Talvez, inconscientemente, minhas pernas buscaram um lugar seguro para ficar. O velho não está do outro lado da rua, eu também não tenho vontade nenhuma de entrar na casa sem autorização. Sento na calçada, depois de apertar a campainha algumas vezes. Foi bom ela não estar em casa. Posso pensar melhor no que fazer, e se devo fazer. Diferente da outra vez, não tinha nenhuma perspectiva em relação ao encontro. Meu coração estava mais leve, esperando apenas um perdão que não chegaria.
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Madeleine aparece no final da rua, ainda não percebeu que estou esperando. Ela é bonita, não tinha reparado nisso da outra vez. Depois de alguns passos ela levanta a cabeça, já consegue me ver. Não acredita, mas sabe que estou ali. O velho aparece na janela, o mesmo que me deu informação da outra vez. Ele apenas olha sem dizer nada, de repente sua esposa aparece na janela também, ambos ficam olhando nosso encontro. Madeleine se aproxima, não parece estar surpresa.
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“Sabia que voltaria”
“Sabia?”
“Esqueceu a foto de sua bisavó comigo. Como é mesmo o nome dela?”
“Isabelle”
“Isso, Isabelle”
“Queria me desculpar por tudo”
“Sinceramente ainda não sei o que aconteceu. Pensei em avisar polícia, caso você voltasse”
“Não fez isso, fez?”
“Não. Não fiz. Mas não foi por sua causa, é que eu percebi que você não queria me fazer nenhum mal”
“Não quero”
“Só um minuto, vou pegar a foto”
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Madeleine pega a chave, abre a enorme porta de madeira. Eu continuo esperando do lado de fora. Ele demora alguns minutos, volta com a foto na mão. Eu seguro com firmeza, ponho na carteira. Ela sorri, diz que o susto serviu para não mais esquecesse de trancar a porta. Ficamos olhando um para o outro, sem muito o quê dizer.
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“Quer entrar?” – a pergunta surge do nada, de forma inesperada. Não sei bem se ela queria mesmo perguntar aquilo, apenas perguntou.
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Eu fico olhando para Madeleine, ela tinha realmente olhos tristes. Como são os olhos de quase todos da família. Olhos caídos como quem está sofrendo pela eternidade. Digo que não quero entrar, ela diz que ficou curiosa pelo modo como eu apareci em sua vida. Como não agi de forma errada da outra vez, acabou confiando em mim. Entro, sento no mesmo lugar. Sentia-me seguro desse jeito, fazendo as mesmas coisas. Ela pergunta se eu queria beber alguma coisa, pega uma taça vinho. Começamos a beber, ela conta que está trabalhando numa pesquisa para a escola, sobre um escritor francês que está fazendo um grande sucesso. Não me interesso pela questão.
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“Mas me diga: como veio parar aqui?”
“É uma história longa, queria dizer tudo naquele primeiro encontro, mas fiquei sem saber como começar”
“Não foi um encontro, foi uma invasão”
“Sim, aquela invasão”
“Você me mostrou uma foto, perguntou se eu conhecia aquela senhora. De repente saiu correndo, desapareceu. Eu estava assustada, ninguém nunca invadiu minha casa antes”
“Foi uma maluquice a minha, ir entrando assim. Não tem medo de ficar aqui sozinha?”
“Vai contar o que veio fazer aqui ou não?”
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Puxo novamente a foto do bolso. Digo que aquela mulher na foto chama-se Isabelle, até ai nenhuma novidade para ninguém. Digo que ela é um parente distante, mas que, diferente do que Madeleine sabia, também era sua parente. Madeleine fica surpresa, sempre soube ter sido adotada, e nunca quis saber dos pais verdadeiros. Pega a foto da minha mão.
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“Quer dizer... da minha mãe ou meu pai?”
“Seu pai verdadeiro”
“Como posso ficar dando ouvidos a qualquer maluco que chega na minha casa”
“Seus pais adotivos eram muito próximos aos seus pais verdadeiros. Sua mãe morreu e eles resolveram cuidar de você”
“Está bem, vou acreditar em tudo isso”
“Não estou brincando”
“Um sujeito que mal conheço chega em minha casa dizendo que meus pais verdadeiros não me abandonaram, que minha bisavó verdadeira..... alguma coisa não está indo bem” – É evidente a mudança de humor da garota.
“Eu sei que é difícil”
“Difícil. Difícil? Vivi de casa em casa sem saber qual era minha história. Quando eu começo a esquecer qual é a importância de quem eu realmente sou, você aparece com essa história. Você precisa ir embora”
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Madeleine levanta do sofá, parece estar mais transtornada do que da primeira vez que estive aqui. O fato principal que a incomodou: os pais adotivos também terem a abandonado. Ela ficou sozinha naquela casa, sem sabe direito o que fazer; comer ou como ir para escola. Foi se virando com ajuda dos vizinhos, meio largada; jogada. Foi levando a vida, sem querer saber certos detalhes, que naquele momento não iriam fazer menor diferença. Ela abre a porta, diz que eu preciso ir embora pois ela está atrasada para a escola.
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“Desculpe se disse alguma coisa que não devia”
“Não disse nada que eu precisava saber” – Ela fecha a porta na minha cara.
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Sabia que tinha que preparar melhor toda a história. Como eu posso chegar, de repente, e querer mudar tudo isso? Continuo andando, procurando algum lugar para dormir. Estava sem dinheiro, lembrei nesse momento. Sem dinheiro, sem esperança; lembrei mais uma vez. Madeleine com quem eu poderia contar, a única em quem eu confiava. Precisava corrigir as coisas, não era certo chegar assim: primeiro sendo um estúpido, invadindo a casa daquele jeito. Depois contar uma história que era mesmo muito estranha. Preciso voltar. Esperar Madeleine acordar, tentar ajudá-la a entender tudo que tinha acontecido. Minha cabeça estava confusa novamente.
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Sento novamente na calçada, não havia ninguém passeando pelas ruas. Pudera, estamos no meio da semana de uma cidade que está crescendo sempre, onde pessoas trabalham sem parar. Por sorte não fazia frio naquela noite, é um verão quente. Fico al, imaginando como poderia me aproximar novamente de Madeleine, não cometer as mesmas bobagens dos últimos dois encontros. Precisava pensar também na questão do emprego, como bem lembrado, estava sem dinheiro sequer para comer. O Sol aparece fraco entre as casas, timidamente as janelas vão se abrindo.
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Poderia conversar com Patrick, ele sempre me ajudou. Estava mesmo precisando fazer qualquer coisa, precisava comer, dormir. As roupas ainda durariam alguns anos. No entanto, não podia ficar doente. Uma febre me colocaria entre os indigentes, um tombo qualquer me faria virar um pedaço qualquer de carne na calçada. Sexo? Nem pensar. Iria procurar por ele. A movimentação dos carros começa, tenho certeza que é dia. O sol ardia, as pessoas começavam a sair de suas casas. Sinto fome, saudade do pão duro da pensão. Levando, espalho a poeira do corpo com as mãos, arrumo os cabelos. Na casa escuto barulho de gente. Ela abre a porta:
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“Você aqui ainda?”
“Não tinha para onde ir”
“Isso não é problema meu. O quê quer dessa vez?”
“Queria me desculpar”
“De novo?”
“Sim, eu sei que é difícil para você”
“Se soubesse não comentaria nada”
“Você viveu todo esse tempo pensando uma coisa, de repente chega um estranho, dizendo que sua vida não é como imaginava”
“Minha vida é exatamente como imagino: está vendo? Vou comprar pão, tenho que arrumar minha pesquisa, depois darei aula. Isso é a única coisa que sei”
“Não pode ficar tão ofendida por seus pais estarem mortos”
“Não estou ofendida por causa disso”
“Por causa do abandono dos seus pais adotivos?”
“Também não. Estou ofendida pela mentira. Mas isso passa, eu passei tantas coisas na vida que isso é apenas mais uma bobagem que vou tentar esquecer”
“Duvido ter passado pelas mesmas coisas que passei”
“Você acha que eu vou fazer alguma coisa em relação a isso?”
“Poderia ficar em sua casa”
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Paramos para atravessar a rua. Madeleine fica pensativa. Com absoluta certeza essa pergunta era a última que ela esperaria escutar. Não há menor sentido naquilo que estou dizendo. Como não há sentido em nada que está acontecendo conosco. O que ela poderia responder? O que eu espero ouvir? Quem é esse cara, ela deve estar pensando. Quem é esse cara para invadir minha casa, falar sobre minha família e ainda querendo dormir na minha casa? Tudo isso estava passando pela sua cabeça naquele momento.
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Madeleine fica no meio da calçada, tentando entender minha pergunta. Na minha cabeça era uma coisa muito simples: estou desempregado, sem dinheiro; logo serei mandando embora da pensão. Parece simples que uma pessoa me ajudasse. Ela não deve imaginar que me deve pelo menos um lugar para morar. O farol fecha, os carros param. Ela começa atravessar a rua, eu fico parado. Minhas pernas não obedecem meus comandos, quero gritar o nome de Madeleine, mas o som não sai. É uma loucura tudo que estou vivendo. Ela continua andando, nem percebe que fiquei parado. Afinal ela se importaria comigo por qual motivo? Pela minha idade? Meus cabelos brancos? Estou com fome e meu raciocínio começa a ficar lento. Sinto ódio novamente e as dores no corpo começam a ficar mais fortes. Lembrei de como minha vida poderia estar diferente agora.
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Volto andando para a pensão, não ficava longe dali. Minhas esperanças iam se perdendo com o passar dos dias, esperanças em abandonar o plano também vão sumindo. Subo as escadas, andei pouco menos de uma hora. Abro a porta do meu quarto. Todas as coisas continuam no mesmo lugar. Era um lugar pequeno, sem espaço para móveis ou qualquer outra ambição. Uma cama que ficava abaixo da janela. Do lado esquerdo de quem entra um pequeno guarda-roupa. Uma mesa e uma cadeira do lado direito, perto da janela. Entro. O movimento é simples para mim, para outras pessoas seria um sacrifício executá-lo: Abre-se a porta, projeta-se o corpo para dentro, para o lado esquerdo. Fecha-se a porta. Pronto. Um único vão no quarto onde se pode andar com facilidade: entre a porta e o pé da cama. Eu deito, estou cansado. Qual foi o dia que me encontrei com Madeleine pela última vez?
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O sono chega rápido apesar do calor insuportável daquele lugar. É verão, já disse. Três horas da tarde, nada acontece de novo. Apenas uma briga no corredor, logo tudo é resolvido com a chegada de Yves. Ela é uma senhora alta e gorda. Tem braços fortes. Não deixa nada acontecer de ruim naquele lugar. Pega os arruaceiros pelo colarinho e expulsa todos daquele lugar. A briga pára, escuto os seus passos vindo em minha direção. Uma batida na porta. Queria não atender. Era impossível, ela não perderia tempo esperando minha resposta, colocaria a porta no chão. Não era bem no chão que a porta iria cair caso ela resolvesse usar violência, talvez acertasse minhas pernas e parte das costas. Grito que estou indo, não abro a porta, conversamos pela fresta. Primeiro que estava com medo, segundo por estar apenas de cueca.
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“Estamos em fevereiro”
“Eu sei, Dona Yves. Prometo que vou acertar tudo na próxima semana”
“Não fico com pessoas no quarto devendo mensalidade”
“Quantas vezes eu lhe dei trabalho para o pagamento?”
“Nunca ninguém me deu trabalho. Jogo as malas do sujeito pela janela”
“Não vai fazer isso comigo, vai?”
“Não deveria?”
“Eu não sou igual a esses outros que ficam brigando no corredor. Não trago mulheres, não fumo e não bebo. Tenho certeza que nunca me viu embriagado. E sabe que se não estou pagando é porque a situação está muito complicada mesmo. Saio daqui na segunda-feira se não conseguir pagar minha dívida“
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Dona Yves se move com dificuldade, mesmo assim anda muito rápido. Em poucos minutos já estava na sala lendo mais um romance idiota. Com certeza tinha conseguindo um prazo para pagar minha dívida. Como vou conseguir dinheiro até segunda-feira? Deito na cama esperando o milagre acontecer. Preciso de idéias. Preciso lembrar de pessoas para quem trabalhei. Preciso fazer alguma coisa. Vou pensando, pensando, bolando um plano na cabeça. Fico orgulhoso de poder pensar tantas coisas brilhantes mesmo quando as coisas não estão bem. Outras pessoas entrariam em pânico, ficariam confusas e desesperadas. Eu apenas penso que a solução está muito perto, que é só uma questão de tempo.
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Meu corpo está cansado, deito. Madeleine e o ódio voltam a me incomodar novamente.
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Não deu dez minutos da conversa com Yves, alguém bate na porta do meu quarto. Para minha surpresa a batida era leve, sutil. Nada comparado ao nervosismo de Yves. Levanto da cama, são dez horas da noite. Mais uma vez abro somente uma fresta, dessa vez não tive medo, mas continuava de cueca. Uma figura simpática está na frente do meu quarto, um vestido vermelho e uma blusa de lã azul escuro. A noite esfriava quase sempre. Seus cabelos estão presos, e agora parecem mais escuros do que da primeira vez que eu os vi. O perfume era indiscutivelmente bom, não deixava menor dúvida qual a pessoa que poderia estar usando. Tento abrir mais um pouco a porta, é inútil. Preciso me afastar e fazer todos aqueles movimentos sincronizados.
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“Como me descobriu aqui?”
“Tem o endereço no verso da foto”
“Espere um minuto, preciso trocar de roupa”
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Coloco a calça que estava jogada na cama. Arrumo o cabelo.
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“Nunca esperei que viesse me devolver a foto”
“Não vim por isso”
“Não?”
“Queria fazer umas perguntas”
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Saio do quarto. Descemos as escadas. Yves odiava que qualquer pessoa ficasse conversando pelos corredores. Saímos da pensão, continuamos andando sem destino. Madeleine parecia mais alta e mais bonita do que das últimas vezes. Talvez estivesse me acostumando com seu jeito, com seu rosto e maneira de agir. Continuamos andando.
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“Poderia me dizer como me achou?” – Madeleine ainda tentando entender toda história que eu contei no dia anterior.
“Dois anos pesquisando em cartórios, hotéis, conversando com pessoas. Não foi um trabalho fácil” – Eu tinha motivos para mentir sobre isso.
“Por que me procurou?”
“Você é a única da minha família”
“Eu sempre vivi sozinha. Não moveria uma palha para procurar uma pessoa que eu não conhecia”
“Temos visões diferentes sobre a família”
“Conte mais um pouco minha história” – Sentamos num banco de concreto numa praça ali perto.
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Não é nada tão surpreendente, eu digo. A verdade é que Madeleine foi adotada por um casal depois da morte da mãe verdadeira. O pai era um alcoólatra desgraçado, fugiu quando soube da gravidez. Um casal muito próximo aos pais verdadeiros de Madeleine resolveu criá-la. Quando ela completou dez anos de idade outra catástrofe acontece: o pai adotivo fica muito doente, um tumor maligno que o mata em dois meses. Mais um ano depois da morte do pai adotivo, a mãe também morre de uma doença rara. Madeleine ficou órfã aos onze anos.
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“Nunca ninguém me contou essa história. Deve estar brincando comigo”
“Não estou”
“E meu pai?” – Fico em silêncio.
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Os vizinhos dos seus pais adotivos resolveram colocá-la num lugar onde pudesse estudar. Ela aprendeu outras línguas, se aperfeiçoou. Hoje dá aulas numa escola e continua estudando. Morou com várias famílias durante esse período, sempre trabalhando para conseguir comer, fazendo serviços de casa entre outras coisas. Foi quando veio morar na casa dos seus pais adotivos, uma herança que foi mantida em ordem pelos amigos e vizinhos.
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Madeleine segura minha mão. Pela primeira vez tivemos um contato tão próximo. Eu seguro seu rosto, como se quisesse que nenhuma outra situação interferisse naquele momento. Um beijo suave. Não senti prazer, nem dor; nem excitação. O beijo não significou nada para mim, também não significou repugnância. Ela afasta meu rosto, diz que não sabe o que está acontecendo. Ficamos confusos com paixões. Eu me afasto, reconhecendo que aquilo não era certo. Não devia estar pensando em me aproximar daquele jeito, mas manter apenas a amizade a e a confiança.
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"Procurei você porque preciso de um favor"
"Favor?"
"Quero que você escreva minha história"
"Escrever? Como assim, escrever?”
"Um livro"
"Quer publicar um livro com sua história?"
"Não quero publicar, quero apenas que escreva"
"Não tem sentido uma história que ninguém vai ler"
"Você vai ler. Eu vou ler”
"Não estou entendendo"
"Você pode guardar a história com você. Mostrar para os filhos. Vai ter filhos, não?"
"Vou escrever uma história para guardar na gaveta?"
"Acha que todos os escritores publicam seus textos? Dostoiévski deve ter jogado uma porção de textos no lixo. Verne? Um monte"
"Vou escrever sua história, mas não é para mostrar para ninguém?"
"Você faça o que quiser com a história. Se achar que divertirá alguém, publique”
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Não sei qual o motivo de querer escrever minha história, talvez para criar coragem e argumentos para continuar meu plano. Ela se levanta do banco, não sabe se deve aceitar meu pedido. Volta para o banco, ensaia algumas palavras. Escrever uma história sobre um sujeito que ela não conhece, por motivos que ela não entende. Eu também fico em silêncio, escrever qualquer coisa estava muito longe dos meus desejos, os que me trouxeram para perto de Madeleine.
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"Sua história é diferente das pessoas?"
"Não. Sou tão comum como qualquer outro"
"Se eu conseguisse dinheiro para publicar sua história, as pessoas se interessariam por ela?"
"Não sei. Ainda não pensei nisso. Se Goethe ficasse preocupado com a opinião das pessoas, teria feito alguma obra?"
"Você fala de autores como se os conhecesse"
"Não os conheço, nem suas obras"
"É estranho"
"Quer escrever? Escrever por escrever? Ver o tempo passar?”
"Escrever por escrever?"
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Madeleine levanta mais uma vez do banco, ela parece ainda não assimilar tudo que está acontecendo com ela nos últimos dias. Ficar sabendo que a mãe verdadeira morreu quando pensava ter sido abandonada. Saber sobre os pais adotivos. De repente receber uma proposta de escrever uma história, sobre um personagem desinteressante; sem propriamente uma história. Qual o motivo? Como chegou até ali? Com certeza não fazia menor diferença para mim, terminar o livro ou não. Queria mesmo era me manter o mais próximo possível de Madeleine.
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(Continua)

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

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MÃO QUE ESCOLHE O CRIME
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Caminho lentamente pela rua, ela está vazia. Não tenho menor vontade de chegar ao meu destino, poderia desistir agora mesmo, mas é tarde para isso. Tudo está calculado na minha cabeça. Chego. A casa parece a mesma que eu imaginava. Aperto a campainha. Não podia ficar pensando muito, corria o risco de fugir daquele lugar, abandonar o plano. Toco mais uma vez, uma senhora atende. Tem uns setenta anos, está num vestido azul claro. Seus olhos têm um fundo branco diferente das outras mulheres, mas não fiquei impressionado apenas com isso. Ela parecia me conhecer de algum lugar; sabia exatamente o que eu estava fazendo ali. Ela caminha com dificuldade em minha direção, diz que quem eu estou procurando não mora mais naquele lugar.
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Ela tem razão, mesmo sem eu saber como, ela tem razão. Quem eu procuro deve ter uns vinte e poucos anos. Agradeço, fico de costa para a velha, como quem está indo embora satisfeito com a resposta. Paro, volto para o mesmo lugar. A velha continua olhando para mim, sem pressa nenhuma. Talvez não tivesse muito que fazer dentro da casa. Ela continua a conversa, dizendo que a menina que morava naquela casa está a poucos metros dali, numa casa verde. Tento inutilmente mais detalhes, ela não ajuda muito. Parecia mesmo só saber das coisas desnecessárias. Espero não saber o que eu estou fazendo aqui nesse lugar. Mais uma vez agradeço. Vou embora pelo caminho indicado pela velha.
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Uma casa verde na próxima rua. Repito na mente a informação da mulher. Quantas casas verdes podem existir nesse bairro? Vou andando, prestando atenção em todos os detalhes que foram possíveis arrancar da velha. Madeleine tem mesmo vinte e dois anos, como eu suspeitava. Seus cabelos devem ser castanhos claros, seus olhos sempre foram e serão tristes. Não era alta, tinha um sorriso simpático. Mas não era de conversar muito. Uma casa verde, eu toco a campainha. Ninguém atende. Um velho sentado numa cadeira de palha, do outro lado da rua, diz que não há ninguém na casa.
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"Você sabe se aqui é a casa de Madeleine?"
"Não sei"
"Uma menina baixa, com cabelos lisos e castanhos"
"Mora uma menina, mas não sei dizer se é baixa" – O velho respondendo com certa dificuldade. Continuamos a conversa daquele modo, eu de um lado da rua e ele do outro.
"Vou esperar aqui, talvez ela não demore".
"Vai demorar, tenho certeza".
"Como sabe?"
"Está no colégio agora. Ela dá aula numa escola aqui perto"
"Disse que não conhecia Madeleine"
"Não sei se a professora se chama Madeleine. Só sei que tem cabelos lisos castanhos".
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Tento abrir a porta e para minha surpresa ela não estava trancada. Quem pode deixar a casa desse jeito em tempos tão violentos? Posso ser um sujeito de bem, mas bem que poderia ser um ladrão qualquer. Entro na casa gritando pelo nome de Madeleine. Não havia ninguém, agora tinha absoluta certeza. Na sala um sofá vermelho de couro, outro azul claro. Não combinavam. Algumas coisas espalhadas no tapete, livros e revistas. Leon Trotsky espalhado no chão. Sento no sofá.
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Ela está escrevendo alguma coisa, acho que uma pesquisa. Pego um dos textos e dou uma lida. Algumas pessoas conseguem determinadas habilidades que não sabemos de onde vêm. Qual seria a minha habilidade? Quem sabe escrever um livro sobre um assunto que eu nem sei ao menos qual é. Quem sabe suportar viver num mundo cheio de vingança? A porta se abre.
Continua...

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Briga de Foice (FIM)

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22
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Touro se prepara para a próxima luta. Um rapaz entra correndo no camarote onde ele estava descansando. Diz que a luta mudou de horário, ele não sabe dizer os motivos. Para Touro era melhor saber disso, tinha mais um tempo para se preparar para a Segunda luta da noite. No entanto, sabia que sua mãe continuava presa em algum lugar, vigiada por alguns homens de Toninho.
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Fora do galpão a luta começa. Maciel está sendo seguro por dois homens para que não interferissem na luta. Seus seguranças de confiança estavam todos mortos, executados por Alvarenga com um tiro na cabeça. “Não vou gastar muitas balas com esses merdas!”. Alvarenga sempre odiou aqueles caras, principalmente por acreditar que alguns deles mantinham relações com Maciel às escondidas.
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Daniel acerta um soco na boca de Toninho, um dente é arrancado com o impacto violento. A boca começa a sangrar. As apostas são encerradas, o dinheiro é recolhido para o carro-forte que estava estacionado ali perto, era impossível levar o dinheiro para alguma sala secreta de dentro do Local. Toninho se afasta, percebe que não tem a menor chance contra Daniel. Outro soco, dessa vez pega de raspão bem acima do ombro esquerdo. Toninho sente, menos de dois minutos de luta e Toninho estava acabado.
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Alvarenga vai para dentro do Local. Camilo está sozinho, olhando pela janela a briga do irmão. Camilo sente pelo pai, não queria que ele sofresse aquela humilhação. Alvarenga promete trazer Maciel para dentro do escritório, Camilo precisava conversar com ele. Maciel chega, visivelmente contrariado. Camilo senta-se no mesmo lugar de sempre, uma cadeira bem ao lado da poltrona de Maciel. Maciel se sente poderoso novamente.
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“Ele quis pegar seu dinheiro. Foi enganado pelos comparsas que fugiram” – Camilo começa a conversa com seu pai adotivo.
“Não acredito nisso”
“Pode olhar você mesmo. Limparam as salas da primeira aposta”
“Não acredito em você, está querendo me jogar contra seu irmão”
“Não é isso. Estou dizendo apenas o que está acontecendo.
“Malditos!”
“Seu filho está com as horas contadas. Quer ele vivo?”
“Não quero nada de você”
“Daniel é meu homem de segurança. Vai acabar com Toninho se eu não interferir”
“Não quero nada de você”
“Daniel foi contratado por mim para ficar de olho em Toninho, saber de tudo que ele estava planejando”
“É mentira”
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Camilo estava mentindo. Nunca tinha visto Daniel antes, apensar de estar presente quando foram contratados os seguranças. A referência de Camargo era o bastante para que Camilo contratasse Daniel. No entanto, com aquela conversa, queria mostrar seu poder. Algo que Toninho não tinha. Camilo vai para a janela, Maciel não quer pedir ajuda, a luta continua.
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“O quê você quer de mim?” – Maciel recua em sua prepotência.
“Casa, dinheiro, poder. Quero tomar conta de tudo”
“Você sempre tomou conta de tudo”
“Bastou Toninho se sentir deprimido novamente para que você o colocasse nessa cadeira”
“Ele é meu herdeiro natural”
“Foda-se a natureza! Sou seu filho também!”
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Maciel chora, pede que Camilo acabe com aquilo. A ordem segue até os ouvidos de Alvarenga. Toninho está no chão esperando o golpe fatal de Daniel. Alvarenga fala bem alto que a briga deve ser dentro do galpão, tudo que ocorresse fora do Local era profano. Daniel se levanta, era combinado que não mataria Toninho. Ele diz que não quer matar um homem indefeso, numa briga idiota; por motivos passionais. Gisele não entende, Daniel beija Gisele e a leva para um local ignorado.
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O público não entende o que está acontecendo, alguns se divertem com a maneira tosca que a briga tinha acabado. Outros mais felizes ainda, por terem apostado no Urso. As apostas são pagas aos vencedores.
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23
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Daniel entra no carro com Gisele. Abandona a garota num posto de gasolina depois de alguns quilômetros. Diz que Toninho não era um sujeito bom, que ela deveria voltar para casa e não contar nada para a família do que tinha vivido ultimamente. Ele segue para Campinas, onde encontraria o resto do bando para a divisão do dinheiro. Os outros membros conseguem separar os pacotes. Daniel chega. Diz que tem pressa, precisa encontrar Cecília nos próximos dias.
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Soraia se aproxima, ela sentiu a ausência de Daniel nos últimos dias. Disse que estava preocupada com o estado de saúde de Daniel, se ele conseguiria fugir. Ele troca de roupa. Camargo diz que o carro está limpo, que ele pode fugir com o dinheiro para onde quisesse. Se fosse pego não poderia contar nada do que tinha visto. Daniel é grato ao amigo, pega os pacotes e coloca no carro. Separa uma parte, pede que Soraia deposite o dinheiro na conta da mãe de Lucas. Eles se beijam. Daniel se despede dos outros comparsas. Foge em direção ao sul do país.
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Delegado Freitas decide invadir o lugar. A briga entre Daniel e Toninho tinha acabado. No entanto, Alvarenga já tinha tomado as providência para que nada acontecesse de errado. Há troca de tiros, os policias estão em menor número. Delegado Freitas é atingindo no braço, outro policial leva um tiro na perna. Ninguém morre. Cada vez mais estão sendo acuados, o socorro pedido não chega. Resolvem sair dali antes que todos fossem mortos. Freitas segue para o hospital, estava sangrando muito. Promete a si mesmo que voltará para prender os culpados.
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No Local tudo volta ao normal. Pessoas vão entrando calmamente, se acomodando para a Segunda luta da noite. Novas cartelas são distribuídas. Três horas da manhã, não haveria a terceira luta naquela noite. No escritório Toninho recebe os primeiros socorros, Camilo havia chamado o médico. Toninho estava com um olho ferido e muitos hematomas espalhados pelo corpo. Maciel fica sabendo do roubo, acredita que Toninho foi o grande culpado, considerando sua inexperiência ao tomar conta dos negócios. Maciel assume novamente os negócios.
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Touro sobe no ringue. Está visivelmente transtornado com a demora para a segunda luta. Vê sua mãe na arquibancada. Alvarenga tinha socorrido a mulher depois de saber o que Toninho havia preparado. Um sujeito entra no ringue, Elefante. Simplesmente Elefante. Começa a briga. Touro está feliz com a liberdade de sua mãe, nem percebe que está sendo sufocado até a morte. O amor, muitas vezes, é extremamente inútil em nossas vidas.
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Ainda estamos no inverno. Daniel está cansado com a viagem. Pretende parar mais uma vez para descansar. Não podia. Cecília deve estar esperando por ele. Faltam duas horas para chegar no hotel onde ela estava aguardando sua chegada. Tinha certeza que encontraria Cecília, que fugiriam dali com todo dinheiro para algum lugar perto da fronteira. Assim que pudessem, mudariam para o Uruguai.
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Cecília está dormindo quando Daniel chega. Estava algumas horas atrasado. Cecília esperaria mais alguns dias se fosse possível. Tinha certeza que não seria abandonada. Daniel também confiava que Cecília estaria hospedada no hotel. Ele chega. Duas palavras com a recepcionais, sobe as escadas. A porta do quarto estava aberta, ele entra. Daniel está com uma cara ruim, barba branca no rosto. Tinha sangue perto do pescoço, possivelmente da briga com Toninho. Estava exausto. Ele se deita, diz que tudo saiu de acordo. Cecília tira os sapatos de Daniel, ele se ajeita na cama. Dorme profundamente. Cecília prepara um banho, partirão no outro dia, bem cedo. Dormiram agarrados e bem cobertos. Estava muito frio aquela noite
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FIM
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Briga de Foice (19,20 e 21)

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19
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Delegado Freitas consegue oito viaturas. Foi difícil arrumar tanta gente para um flagrante que botaria muitos poderosos na cadeia. Um amigo de Freitas, que estudo com ele Direito, disse que Freitas estava ficando maluco com a operação, que era preciso mais do que coragem para acabar com uma quadrilha daquelas, era preciso inteligência. “Não é melhor estudar os frequentadores do lugar, primeiro?!”. Freitas não queria saber quem estaria apostando, lutando ou apenas assistindo as lutas. Queria pegar todo mundo, ilegalidade serve para todos, afirmava. Lutas com apostas, homens brigando até a morte!
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Dois policiais se encarregam de entrar no Local. Sondar a disposição do público, do ringue, saber quem trabalhava, quem mandava e tudo mais. Freitas tinha quase certa a apresentação que Marinho tinha feito na delegacia, entregando tudo. Marinho não era louco de mentir para Freitas. Compram os ingressos, recebem uma cartela onde poderiam fazer as apostas, recebem também um folder com informações dos lutadores da noite e das mulheres disponíveis. No papel uma enorme foto de Touro, com dizeres “maior lutador de todos os tempos”. Touro parecia um sujeito conhecido, diz um dos policiais. Eles saem, encontram-se com Freitas. Relatam tudo que viram.
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Era preciso de mais policiais. Ao todo umas quinhentas pessoas assistiam a luta, pelo menos era o número aproximado considerando aquilo que estava no ingresso adquirido por eles: 497 e 498. Na fila mais umas dez pessoas esperavam pela oportunidade de entrar e poder assistir a luta.
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“Filho da puta de Marinho! Disse que eram umas cem pessoas!”
“Aqui diz que a luta do Touro tem chamado atenção dos apostadores!”
“Deixa eu ver essa merda!” – Freitas pega o papel da mão de um dos policiais – “E os cabeças?”
“Não vimos nenhum deles”
“Viu alguma escada, porta; qualquer coisa?”
“Acima de uma das arquibancadas parece ter vários camarotes”
“Pode ser o escritório que Marinho falou”
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Delegado Freitas liga para a delegacia, pede ajuda de mais policiais de outros distritos, não é atendido em sua solicitação. Era sábado, muitas ocorrências menores tiravam policiais de assuntos importantes como aquele que Freitas estava enfrentando. Briga de casal, de vizinhos e roubo de carros. Pensou em recuar, voltar com mais armas e policiais num outro dia. Seria difícil enfrentar os capangas, prender todos os envolvidos.
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Se voltasse outro dia, talvez Maciel tivesse fugido, desmontado toda a organização. Nesse momento deve saber da prisão de Marinho, e das conseqüências que isso poderia causar para o Local caso o assunto caísse na mão do delegado Freitas. Toninho esvaziaria o galpão antes que fossem pegos. A lentidão da justiça e a incapacidade dos policiais criam os ladrões. Estava decidido, delegado Freitas enfrentaria tudo aquilo com coragem. Os outros policiais se motivaram com a presença segura do delegado. Maciel fica sabendo da prisão de Marinho, chama por Camargo. Queria cobrar-lhe o serviço pago, Camargo deveria matar Marinho antes que ele fosse pego pela polícia.
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Camargo recebe o recado de Maciel. É hora do plano ser executado. Camargo inventa uma desculpa qualquer, não vai ao encontro com Maciel. Camilo segue para o cofre, já tinha inventado a história de que o dinheiro estava em perigo, precisavam tirá-lo dali antes que Toninho roubasse. Os seguranças confiavam mais em Camilo do que em Toninho, seguiram com o ex-chefe. Diane, Soraia e Camargo ficaram de prontidão esperando a ordem de Camilo para fugirem com o dinheiro.
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No escritório, Alvarenga diz para Toninho que Daniel está amarrado e com seguranças dentro de um furgão; se quisesse acertar contas com o desafeto teria que ser naquela hora. Toninho sai com Alvarenga, os outros seguranças percebem a movimentação de Toninho, isso confirma o que Camilo havia espalhado, Toninho estava armando um plano para roubar o dinheiro. Toninho é seguido por seguranças confiáveis de Maciel, eles logo informam que Toninho está fugindo do Local. Dizem que foi visto perto de um furgão. Maciel não acredita que o filho está roubando o dinheiro, mesmo assim corre para o lugar indicado pelos capangas.
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20
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Camilo consegue chegar no cofre, sabe que o dinheiro está ali, mesmo assim diz estar surpreso pelo golpe de Toninho não ter dado certo. Todos confiam em Camilo, sabem que o dinheiro estava agora em segurança. Camargo e os outros chegam ao local onde estava o dinheiro, conseguem dominar os seguranças. Começam a transferir todo dinheiro para uma outra sala, em sacos de lixo. Murilo também tinha conseguido entrar, ajudou a empacotar o dinheiro e a carregar tudo para a sala indicada por Camilo.
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Lá fora Toninho encontra Daniel. Ao contrário do que havia informado Alvarenga, Daniel não estava amarrado. Toninho se aproxima, puxa uma arma, antes de atirar é dominado por Alvarenga, que diz que as regras são claras naquele lugar: proibido usar qualquer tipo de arma. Toninho chama os seguranças, eles também são dominados por homens contratados por Alvarenga. Gisele está perto, mas não sabe como ajudar o noivo. A briga era entre Daniel e Toninho, nenhuma outra interferência.
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Nesse momento chega Maciel, ele não sabe o que está acontecendo. Queria averiguar o roubo que diziam que Toninho estava cometendo. Viu os dois discutindo no meio de um grupo de pessoas, não estavam brigando ainda. Olha para o furgão, não vê nenhum dinheiro. Diz para alguns seguranças correrem para o cofre, saber se está tudo bem. Tenta interferir na briga que estava prestes a começar entre Daniel e Toninho, mas logo é dominado. Os seguranças chegam no cofre, ele está vazio. Eles correm para o escritório, Camilo está com Soraia, os dois estão transando no sofá de couro. Os seguranças correm e avisam Maciel que o dinheiro foi roubado.
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Delegado Freitas sabia que não podia cometer erros. Era importante pegar os cabeças, não estava preocupado em mandar todos os contraventores para cadeia, mas os maiores. Estão esperando o momento certo para entrarem. De repente uma movimentação que parecia banal, um grupo de pessoas em volta de um carro. De longe ele consegue ver Maciel. Não imagina o que está acontecendo. Nem passa por sua cabeça que um dos filhos de Maciel estava prestes a brigar com um ex-funcionário. Alvarenga também estava sendo investigado, Daniel ele sabia que era um ex-policial expulso da polícia. Não tinha certeza dos motivos que levaram a expulsão.
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Ele prefere esperar mais alguns minutos, não era hora de entrar em ação. Uma briga entre dois bandidos, podia ser perigoso para seus policiais entrarem numa confusão daqueles. Dá ordem para os policiais recuarem, mais uma vez pelo rádio pede socorro.
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Águia Chilena entra no ringue. Era o primeiro que lutaria com Touro. Um sujeito baixo, magro; mas um tanto bravo. Era o pior lutador daquela noite. Posto exatamente para ser trucidado por Touro. Isso faria os valores das apostas aumentarem na segunda luta. Foi apresentado, alguns vaiam, outros aplaudem. De repente entra em cena o grande campeão: Touro. O barulho das pessoas podia ser ouvido do lado de fora do galpão. Um dos homens de Freitas diz que o show começaria. Freitas não sorri com a piada, está apreensivo com a situação. Os dois começam a luta, pouco mais de vinte minutos para Touro acabar com Águia. Mais dez minutos para começarem as outras apostas. O resto de Águia é retirado do ringue com um carrinho de mão.
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Camargo sabe que há muito dinheiro empacotado. Apesar do valor alto, não foram muitos sacos que transferiram para outra sala secreta. Murilo manobra o carro de forma que o dinheiro pudesse ser carregado mais rápido possível. Era comum abrirem outra sala para novas apostas. Outra sala, outro cofre, outras senhas. Camilo é chamado com urgência, já que Maciel e Toninho não foram encontrados pelos administradores do Local. Geralmente eles quem decidiam as senhas e em quais salas seriam colocados as notas. Camilo faz a parte burocrática, outra sala é aberta para novos valores de apostas.
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Camargo, Daiane, Murilo e Soraia carregam o roubo para o carro. Na verdade um carro-forte, usado pelo próprio Maciel para carregar os valores das apostas para uma Mansão na zona Sul. Dessa vez o rumo seria outro. Parte do plano estava consumado, tudo estava acontecendo da melhor forma possível.
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21
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Cecília levanta apressada, decidiu ir com Daniel, não importa mais quem ele é. Disse a verdade, isso é o que estava valendo. Uma e meia da manhã, ela prepara sua mala. Chama um táxi. Despede-se da mãe, mas jura que voltará em breve para levá-la para um lugar onde possam morar sem aquele barulho de cidade grande. A mãe está dormindo, não consegue compreender o que a filha está dizendo; vai perceber tudo somente de manhã, quando vê o quarto vazio e os armários sem roupas. Cecília vai ficar por uns dias numa cidade do Rio Grande do Sul, onde Daniel prometeu resgatá-la.
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Do outro lado da cidade Luiza tenta convencer Henrique sobre o pagamento que Daniel havia proposto. Era o dia de vencimento. Luiza se arrisca muito com Henrique, mesmo assim continua brigando por Daniel. Ela diz que o dinheiro vai estar num local combinado com Daniel no Domingo, que podem ir juntos para Campinas e verificar se a promessa foi cumprida. Henrique não esperaria tanto pelo dinheiro caso não fosse um pedido de Luiza. Vão para Campinas no domingo.
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Um ringue provisório é armado. Daniel tinha motivos para ganhar aquela luta: parte do dinheiro que estava no carro junto com Camargo indo para um esconderijo bem perto dali. Toninho tira a camisa, Daniel faz o mesmo. Pessoas estão aguardando a briga começar. Dentro do Local se espalha a notícia que o filho de Maciel e um desafeto estão prestes a brigar. O alvoroço é enorme. Funcionários encarregados de recolherem as apostas não sabem o motivo de tantas pessoas estarem saindo do galpão. Todos querem ver a briga, era intervalo da segunda luta, várias mulheres nuas dançando no ringue não causavam nenhum interesse. Bastou alguns minutos para a luta de fora do Local tivesse um enorme público.
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Novas apostas começaram, nomes das cartelas foram retiradas. Incluíram ali Cavalo Dourado, já que Toninho tinha uma tatuagem de um ser mitológico nas costas, e Urso Branco; pela quantidade de pêlos espalhados pelo corpo e pela coloração de Daniel. Começam a briga, para euforia dos presentes, e desespero de Maciel; que sabia que Toninho iria apanhar mais uma vez de Daniel. Toninho de uma coragem extrema, desde que carregasse uma arma ou que estivesse ao lado de outros capangas. Dessa vez ele estava sozinho, morreria caso Maciel não achasse uma maneira de salvar o filho.
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Na estrada Camargo, Murilo, Daiane e Soraia fogem. As duas mulheres tentam contar o dinheiro, apesar do carro não parar de sacudir. Não conseguem, é muito dinheiro. Camargo grita mais uma vez pela portinhola que separava o motorista das meninas de dentro do baú de aço:
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“Tirem três mil. Coloquem numa sacola verde. Estamos chegando no local combinado”
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Soraia faz exatamente o que Camargo está pedindo. Numa sacola coloca o dinheiro. O carro continua andando, daqui poucos minutos estariam no lugar combinado entre Daniel e Luiza. O dinheiro da dívida estaria definitivamente paga. Soraia diz se Camargo não quer pagar o dinheiro que ele deve, Camargo sorri e diz que vai sumir, Henrique nunca mais vai recuperar os cinco mil emprestados. Chegam ao local, o dinheiro é colocado no meio do mato, continuam na estrada.
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Depois de duas horas Luiza e Henrique chegam no mesmo local onde Camargo deixou o dinheiro. Luiza chora de alegria, Henrique fica triste. Estava torcendo para ter um bom motivo de matar Daniel. Pegam o dinheiro e dormem num motel na beira da estrada.
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Lucas tem outro pesadelo. Dessa vez Amanda fica preocupada. Não é comum uma criança de apenas cinco anos sonhar com tantas coisas ruins. Era certo que de manhã, antes mesmo de levar Lucas para escola, ele seria benzido por dona Hermelita.
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(continua...)

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Briga de Foice (16,17 e 18)

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16
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Delegado Freitas está nervoso com um novo fragrante. Se pudesse colocaria todos os marginais na cadeia. O rapaz está assustado, era primeira vez que tinha sido preso na vida. Ele entra na sala do delegado, está com mais medo do pai, quando ficar sabendo do ocorrido, do que pela possibilidade de ficar alguns anos preso. Senta na cadeira, delegado Freitas pega um copo de café, senta-se na sua frente. O rapaz foi pego roubando um carrinho de mercado cheio de compras, a mulher distraída, enquanto abria o porta mala do carro, não viu o sujeito chegar de mansinho e sair correndo com toda mercadoria.
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Por sorte da mulher, e azar do ladrão; dois policiais viram tudo. Pegaram o cara pelo colarinho, puseram no camburão, devolveram o carrinho de compras para a madame. Uma caixa de leite, um pote de manteiga, farinha de rosca, dois iogurtes desnatados, um pacote de fraldas tamanho M, pudim; uma caixa de sabão em pó, duas latas de leite condensado e uma vassoura.
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“Acha que conseguiria correr com aquilo tudo por muito tempo?”
“Não senhor”
“O que deu na sua cabeça?”
“Nada, não, senhor”
“Aquela porra de mercado só tem gente pomposa. Policiais adoram aparecer para gente pomposa”
“Sei não, senhor”
“Tem filhos?”
“Quatro filhos. Só uma menina, senhor”
“Precisa de vassoura?”
“Não, senhor”
“Porra! Só sabe dizer não!!”
“Não, senhor. Vi o leite condensado e os iogurtes”
“Sei. Não quero saber o que viu. Quero saber como e porquê roubou”
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O rapaz mantinha-se em silêncio. Freitas chamou o escrivão. Perguntou se a ocorrência tinha sido feita, ele disse que não havia aberto o boletim ainda. Freitas pergunta se a mulher que foi roubada estava na delegacia ainda, ele diz que ela foi embora. Delegado Freitas pega o sujeito pelo colarinho, passa por toda delegacia carregando o marginal com uma única mão. Saem da delegacia, atravessam a rua. O delegado solta o rapaz, diz para ele nunca mais aparecer no mercado. Se ver a cara dele na delegacia vai arrancar seus testículos. O rapaz assustado, com uma mistura de alegria, some no meio da cidade.
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Passado o plano, todos estavam decididos que pegariam o dinheiro de Maciel. Mais de um milhão era a previsão de caixa para o sábado. Touro tinha caído como uma luva para os planos de Camargo. Vai ser o dia que vai rolar mais dinheiro naquela pocilga. Daniel também se sente eufórico, tinha contribuído e muito com seus rascunhos sobre o sistema de segurança do Local. Camilo ficou sabendo que Toninho estava tomando conta dos negócios, isso contribuiu ainda mais com sua vontade de pegar um dinheiro e ferrar com a administração do irmão. “Meu pai vai ficar orgulhoso de mim quando ver que meu irmão deixou uns delinquentes roubarem seu dinheiro!”.
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Camilo não participaria diretamente do roubo, mas sua presença no dia da luta era essencial. Ele era uma das pessoas que sabia o segredo do cofre, das outras portinholas que levava para a sala secreta onde Maciel guardava todo dinheiro das apostas. Daniel não entraria no Local, mas era a isca para tirar Toninho de circulação. Os seguranças só sabem obedecer ordens, quando faltava o comandante, todos ficavam perdidos, sem saber como agir; essa era a maior falha do Local.
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Camargo, Soraia e Daiane entrariam com Camilo no cofre. Murilo era o motorista que ficaria do lado de fora da casa. Alvarenga se encarregaria de tirar Toninho da sala, prometendo entregar-lhe Daniel. Camilo plantaria um boato entre os seguranças dizendo que Toninho estava fugindo com o dinheiro das apostas. Alvarenga pegaria Toninho, diria para Maciel que Toninho estava traindo o pai. Camilo assumiria o Local.
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17
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Sexta-feira. Um dia antes do roubo. Estavam analisando tudo, nos mínimos detalhes, nada podia sair errado. Camilo estava eufórico, mesmo sabendo que roubariam seu pai; tinha certeza que o dinheiro seria recuperado com novas lutas, principalmente se Touro conseguisse manter a façanha de ganhar as três lutas da noite. Daniel estava preocupado com Henrique, o prazo de pagamento da dívida vencia exatamente no dia que estavam querendo pegar o dinheiro de Maciel.
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Daniel pede para Camargo uma ligação. Tudo era controlado com mãos de ferro por Camargo, o mentor de tudo que estava sendo feita até o momento. Daniel diz que na verdade precisa falar com três pessoas. Camargo autoriza duas ligações, liga primeiro para Luiza.
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“Sim, estou bem”
“Eu cheguei na sua casa, vi que suas roupas não estão mais no guarda-roupa. E o dinheiro? O dinheiro também sumiu”
“Tive que fazer uma viagem. Vou pagar Henrique no Domingo. Você pode me encontrar?”
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Camargo fica atento com o que Daniel vai dizer. Era importante não dar nenhuma dica para ninguém de como seria o plano de fuga da quadrilha. Daniel diz que vai deixar o dinheiro na estrada que liga São Paulo e Campinas. Passou todos os dados para Luiza.
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“Para onde você vai? Onde você está agora?”
“Não importa. Só quero que saiba que te amo muito”
“Não desligue”
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Daniel desliga o telefone sem maiores explicações. Precisava falar com Cecília. A outra pessoa que queria ligar era Amanda. Estava preocupado com o presente, se Lucas tinha gostado ou não do presente. Amanda ficou fora dos planos. Camargo ligaria somente para Luiza. Era apenas um celular, e as outras pessoas também queriam ligações para familiares, amigos e amantes (no caso, Soraia).
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“Queria saber se pensou na minha proposta?”
“Não posso ir com você”
“Você me ama?”
“Claro que amo”
“Não ama. Viria comigo”
“Não quero deixar minha mãe, ela está doente”
“Leve sua mãe. Tenho dinheiro”
“Desiste logo desse negócio”
“Não posso desistir agora”
“Por mim?”
“Não fez nada por mim”
“Vamos ficar querendo provas um do outro em relação ao amor?”
“Sim. Você não viaja comigo, e eu não desisto do roubo”
“Viajo com você para outro lugar”
“Tarde demais agora”
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Delegado Freitas pega os sujeitos do acampamento clandestino perto do Colégio Franco Aguiar. Marinho é preso com uma enorme quantidade de drogas. Topeira tenta fugir, mas leva um tiro na perna. As mulheres e o outro ladrão conseguem sumir no meio do mato (Ainda estão sendo procurados pela polícia). Marinho leva uma surra na cadeia, todos sabem que ele trabalhava para alguém mais poderoso. Revela o nome do Maciel, com mais umas pancadas diz exatamente onde era o Local. Camargo não esperava que o Delegado Freitas conseguisse dar continuidade nas investigações. Soubesse teria matado naquele dia o sujeito que era responsável pela contratação dos lutadores entre os mal-afamados. Marinho era a única ligação dos negócios ilícitos de Maciel que havia sido descoberto até então.
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18
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Touro está sendo preparado para a luta. Para Toninho era essencial que Touro ganhasse todas as lutas de hoje. Duas mulheres japonesas fazem massagem naquela montanha de músculos. Francisco nunca imaginou uma vida daquelas quando veio de carona para São Paulo. Leite, queijo, frutas no café da manhã. Duas da tarde uma feijoada. Um lanche rápido quatro horas. Banheira, sauna e outras regalias de pop-star. Touro recebe instruções de um treinador de boxe contratado especialmente para aquele dia. Touro não precisava de instruções, precisa sentir ódio.
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Toninho entra na sala onde Touro está deitado. Maciel tinha acabado de sair dali com ar de satisfeito. Por instantes tinha esquecido de como era os carinhos de Alvarenga ao se defrontar com a brutalidade do novo herói dos gladiadores urbanos. Toninho entra na sala, com ele mais seis seguranças. Era preciso de todo esse exército para que Touro não estrangulasse Toninho depois que ficasse sabendo da proposta que seria revelada.
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A mãe de Touro estava presa numa sala ao lado. Touro levantou-se da cama, estava completamente nu. Toninho se afasta, fica com medo do que Touro pode fazer com ele. Toninho continua, diz que a Dona Iracema tem apenas uma chance de sobreviver, Touro precisa ganhar todas as lutas. Era fácil motivar um troglodita como aquele, o ódio em sua cabeça. Fechou os punhos, quebraria todos aqueles sujeitos e arrancaria todos os ossos daquele magrelo na sua frente. No entanto, apesar dos músculos, Touro também tinha um cérebro que raciocinou a impossibilidade de sair vivo daquele lugar caso cometesse alguma loucura contra Toninho. Sentou-se e continuou tomando seu suco de laranja.
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“Bom garoto! Assim que gosto dos vencedores!”
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Local estava cheio. Como havia previsto Camargo, a luta de Touro estava chamando atenção de muitas pessoas. Soraia e Daiane eram ring girls das lutas intermediárias, quando não estavam no ringue, divertiam alguns clientes. Alvarenga estava com Maciel, que não sentiu sua falta em nenhum desses dias. Murilo em ponto estratégico, aguardava ordem de Alvarenga para se aproximar. Camargo como segurança, tomava conta de um dos corredores que dava acesso às várias outras entradas secretas, onde numa delas estaria o cofre. Não foi difícil para Camilo saber onde estava o dinheiro estava guardado. Daniel do lado de fora aguardava a chegada de Alvarenga, Toninho e possivelmente alguns capangas.
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Lucas chora sem parar no quarto. Amanda entra correndo, não sabe o que está acontecendo com o filho. Ele teve um pesadelo, explica para a mãe. A mãe passa a mão na testa do filho, dizem que é uma ótima simpatia para se espantar fantasmas. Lucas sonha com o pai, diz que estava sangrando na orelha. Os olhos estavam vermelhos, o pai não respondia seu chamado. Amanda acredita ser apenas um pesadelo, a influência no filho da ausência do pai. Cobre Lucas novamente, canta umas músicas bobas, como são todas músicas de ninar, Lucas dorme.
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Amanda corre para a imagem da santa que está em cima da geladeira e reza pela vida do filho, esquece-se do pai; que daqui a pouco precisará muito mais de ajuda divina.
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* * *
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Cecília atende um rapaz que se feriu num acidente de carro, ela não cansa de pensar em Daniel. Seria correto aceitar a proposta do namorado e fugir com ele para o Uruguai? Aplica a injeção na bunda do acidentado, que esperneia de dor. E se Daniel fosse um bandido, como cansara de avisar Dona Celestina, mãe de Cecília? Ajeita o doente na maca, leva para a sala de radiografia. Tinha que tirar Daniel da cabeça, não era um bom sujeito. Cara metido com jogos de azar, dívida com bicheiro. Não pode ser coisa boa. Dá o remédio errado para o sujeito que ainda sente dor por causa da batida do carro.
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Briga de Foice (13,14 e 15)

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13
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Daniel chega em casa, Luiza já tinha saído. Ele liga para Camargo, resolve aceitar a proposta. Camargo de alguma forma sabia a resposta. Principalmente por saber que Henrique não prorrogaria mais o prazo para pagamento da dívida. Eles combinam novo encontro, inclusive apresentaria outras pessoas do plano. Daniel vai até o quarto, pega as malas. Chama um táxi. Seu destino seria a casa de Cecília. Não liga para avisar que está chegando, queria fazer uma surpresa.
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Cecília estava de saída quando viu Daniel chegando. Realmente era uma surpresa enorme. Ele desce do carro, pega as malas. Ela não entende direito o que está acontecendo. Ele deixa as malas na porta do prédio, ela observa sem perguntar nada.
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“Preciso de um favor” – Daniel começa.
“E essas malas?”
“Preciso que me encontre no Uruguai daqui cinco dias”
“Uruguai? Como?”
“Vou contar com mais detalhes”
“Como uma viagem assim, tão rápido?
“Negócios”
“Nunca me diz sobre os seus negócios”
“Quero dizer agora”
“Estou atrasada”
“Eu espero você chegar”
“Não pode ficar aqui”
“Sua mãe?””
“Sim, ela não gosta de você”
“Espero em outro lugar”
“Não quero ir para o Uruguai”
“Você me ama?”
“Claro, sempre amei você”
“Então, temos que fugir do Brasil”
“Não, espere um pouco. O que você faz? Aquela história de bico, de segurança... o que anda aprontando?”
“Eu já disse, vou contar tudo com detalhes, desde o início”
“Não. Não vou para o Uruguai”
“Podemos ir para qualquer lugar. Prefere Argentina?”
“Não. Nenhum lugar. Quero ficar aqui”
“Impossível. Será impossível”
“Nem quero saber qual é o rolo que você se meteu”
“Tudo bem. Não conto”
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Daniel fica em silêncio, era um absurdo a proposta que ele estava fazendo. Sabia que Cecília não aceitaria viajar com ele para outro país. Mesmo sabendo, tentou. Deixou as malas no chão, caminhou lentamente; assimilando o golpe que acabara de receber. Cecília ficou olhando seu amor indo embora, as malas no chão. As malas pouco importavam agora; ninguém percebeu que naquele momento elas estavam largadas, sem dono. Daniel some, vira a esquina. Cecília não acredita no que está acontecendo.
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Estava decido que Daniel fugiria junto com os outros membros da quadrilha. Conhecia apenas Soraia e Camargo. Tinha um outro sujeito com o nome de Murilo, viciado em jogo. Devia muito dinheiro para Henrique. A esposa de Murilo morreu com um tiro na cabeça. Dizem que capangas de Maciel armaram tudo. Murilo fez apostas no Local, chegou a ganhar dinheiro; mas errou quando apostou no Elefante Branco. Outra mulher, com o nome de Daiane. Daniel não sabia nada sobre Daiane.
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Ele chega no esconderijo, dali sairiam apenas para pegar o dinheiro de Maciel. Seriam dois dias confinados, simulando o plano. Daniel precisava treinar um pouco mais com sua arma, quer dizer; a arma que pegou de Toninho. Daniel, Murilo e Camargo tinham chegado antes de escurecer. Os outros chegariam mais tarde.
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14
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Maciel chama Alvarenga. Quer conversar sobre Daniel. Tinha mudado de idéia, não aguentava olhar para Toninho sem pensar em vingança. Alvarenga estava de saída quando recebeu o recado. Ele entra na sala, Maciel parece bravo. Toninho está sentado na mesa do pai. Alvarenga leva um susto quando vê o filho de Maciel na cadeira de comando. Maciel sorri, pergunta se Alvarenga está surpreso. Alvarenga não diz nada, nem demonstra insatisfação.
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Toninho se levanta da cadeira, diz que acaba de assumir os negócios. Alvarenga fica mais surpreso ainda. Toninho diz que muitas coisas vão mudar naquele lugar. A primeira coisa era que as ordens seriam dadas por ele, o pai estava se aposentando. Maciel ouve atentamente, parece ter orgulho do filho. Alvarenga quer perguntar sobre Camilo, que sempre tomou conta dos negócios da família. Não perguntou, tinha medo da resposta.
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“Quero que traga Daniel até aqui. Quero que ele venha inteiro. Vivinho” – Era essa a primeira ordem de Toninho.
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Alvarenga tinha entendido perfeitamente a missão, ele sairia do galpão. Sabia onde Daniel estava escondido, não seria difícil carregá-lo para Toninho. Mas não era isso exatamente o que queria fazer. Encontra-se no caminho com Daiane. Vão juntos para o encontro com Camargo. Alvarenga era a outra pessoa da quadrilha, e dispensava qualquer apresentação para Daniel.
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Um bolo enorme do Mickey. Lucas se divertia muito com aquele desenho animado. Era sua única diversão quando sua mãe estava ocupada. Amanda chamou alguns vizinhos, tinha ao todo umas quinze pessoas na festa de aniversário do filho de Daniel. Cantavam, dançavam e brincavam. Um rapaz que se dizia amigo de Lucas, e que futuramente viria a ser seu padrasto, trouxe uma bicicleta de presente. Foi o que mais deixou Lucas feliz. Todos estavam se divertindo muito.
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A mãe de Amanda sabe que Daniel esteve de manhã na casa, ficou sabendo por uma vizinha que adorava uma fofoca (aliás, não estava na festa pois não havia sido convidada). As duas conversam, Amanda não consegue mentir o fato; havia muita bebida e comida que não podiam ter vindo da mesada, muito menos do salário de empregada doméstica. Amanda sempre ganhou um bom dinheiro, mas as despesas só foram aumentando depois do nascimento do filho. Ele estudava numa escola privada, pagava plano de saúde. Tinha aberto até uma poupança para o garoto.
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“Espero que aquele safado não tenha vindo aqui fazer sua cabeça”
“Ele só veio trazer o presente do Lucas”
“Que presente?”
“Trouxe um dinheiro. Coloquei uma parte na poupança. Comprei roubas. Comprei um tênis novo”
“Dinheiro amardiçoado”
“Não tem nenhuma maldição nisso”
“Amardiçoado, sim”
“Não é amaldiçoado”
“De onde veio o dinheiro?”
“Não sei. Não perguntei”
“Pode ser roubado”
“Ele não é um ladrão”
“Quem garante?”
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Lucas assopra a vela de aniversário, corta o bolo. Não diz claramente, nem sequer usa a lógica para o pedido; mas em resumo sabemos que ele queria encontrar o pai pelo menos mais uma vez na vida.
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15
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Todos estão sentados em volta de uma enorme mesa de madeira. Por enquanto não falam nada sobre o roubo que estão prestes a fazer. Faltam ainda três integrantes, afirma Camargo. Alvarenga e Daiane chegam em seguida, para surpresa de Daniel. Camargo diz que ainda falta uma pessoa, que chegará em breve. Daniel, Camargo, Murilo, Alvarenga, Soraia e Daiane; estão apreensivos, calados. Querem logo ver o que Camargo havia preparado para o golpe.
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Uma outra pessoa chega, todos estão prestando atenção numa piada que Murilo está contando. Ninguém percebe Camilo entrando. Murilo pára de contar a piada quando vê aquele sujeito magro, com olhar assustado. Fora Camargo, Alvarenga e Soraia; ninguém mais conhecia Camilo. Daniel já tinha escutado o nome quando trabalhava no Local, mas nunca imaginaria que ali estava o filho adotivo de Maciel. Ele senta na única cadeira vazia. Todos estão em silêncio.
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“Podemos começar!” – Camargo abrindo uma enorme cartolina na mesa de madeira.
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Toninho quer falar com Maciel sobre a possibilidade de mandar Alvarenga embora. Ele não sente confiança no capataz que trabalha com o pai há mais de dez anos. “Ele é sujo!”. Era um assunto delicado para Maciel, principalmente pela paixão que sentia pelo sujeito. Toninho quer uma arma nova, diz que não pode tomar conta de um lugar cheio de gente podre sem nenhuma proteção. Maciel é contra, diz que todos ali estão para se divertir.
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Uma moça alta entra na sala. É a nova namorada de Toninho. Recém descoberta no canfudó de uma cidade do Rio Grande do Sul. Maciel sai da sala. As apostas continuam, as lutas também. Touro lutaria no sábado, era um grande acontecimento. Maciel iria fazer sua despedida nesse dia, não mais cuidaria dos negócios e morreria feliz em alguma praia do litoral nordestino. Chamaria Alvarenga, para a felicidade ser completa, era preciso que Alvarenga fosse com ele.
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Na sala, Toninho diz para Gisele que precisa de uma coroa. Gisele percebe que Toninho está surtando, mesmo assim estimula a loucura do namorado.
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“Eu preciso de um vestido novo! Quero também um bobo da corte”
“Bobo tem um monte lá fora!”
“Quero o Daniel. Aquele que você diz que é seu inimigo”
“Vou quebrar a perna daquele desgraçado! Já imaginou ele andando nessa sala sem uma perna!”
“Quero um bobo, não um saci”
“Então vou arrancar a língua do sujeito”
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Gisele senta no colo de Toninho, ele se diverte com a mulher. Toninho nunca pensa estar apaixonado, mas acaba agindo como se estivesse. Gisele em poucos meses de namoro já dominava todos os impulsos dele, fazendo dele o verdadeiro bobo. Gisele gastou em duas semanas dinheiro que outras namoradas de Toninho levaram anos. Ele estava feliz, isso é que importava; pensa Maciel.
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Cecília carrega as malas para dentro do apartamento. Estava atrasada mas não podia deixar toda roupa de Daniel jogada na calçada. A mãe de Cecília não entende o que está acontecendo, mas acaba aceitando a desculpa da filha que diz que uma amiga ficará no apartamento por alguns dias. Ela abre as malas, ajeita as roupas; pega um retrato em que mostra Daniel e Cecília juntos, numa viagem que fizeram para Florianópolis. Chora, não sabe o que fazer agora; com Daniel fugindo de um bandido perigoso. Armando um roubo. Quem era o homem por quem ela se apaixonou perdidamente? Quem era aquele sujeito que há mais de cinco anos roubava-lhe a oportunidade de ser feliz?
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terça-feira, 7 de agosto de 2007

Briga de Foice (10,11 e 12)

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10
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Local estava cheio. Dia de maior número de apostas. Três horas da manhã. Touro com alguns curativos no rosto aguardava seu oponente entrar no ringue. Touro era um sujeito de quase dois metros, parecia pesar algumas toneladas. Nome verdadeiro era Francisco, nascido no interior do Ceará. Tinha vinte e nove anos, dois filhos oficiais; alguma dúzia de bastardos. Está de pé, esperando o começo da terceira luta.
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Um outro homem entra em cena. Não mais forte que Touro. Seu nome era Cobra Vermelha. Esses nomes quase sempre eram batizados no momento da primeira luta. Sempre com nome de animais, ficava mais fácil a identificação no momento das apostas. Maciel pensava em tudo. Serpente, Abutre, Jacaré e Cavalo. Cobra era mais baixo que Touro, mas aquele estava descansado. Era uma vantagem. Ele entre no ringue, os aplausos são maiores para Cobra, evidentemente por causa das apostas. Ninguém se arriscaria em Touro, na sua terceira luta da noite. Era quase impossível sair vivo.
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Em casos especiais, o próprio Maciel quem fazia as apresentações. Aquela noite era especial. Se Touro ganhasse, pegaria uma enorme quantidade em dinheiro, além disso estaria para sempre no prestígio dos gladiadores modernos. Se Cobra fizesse seu papel, seria apenas obrigação: Touro estava cansado antes da luta começar. Maciel queria que Touro ganhasse, nem pensava no dinheiro que teria que pagar; mas na publicidade que a luta teria nos próximos dias.
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Cobra entra primeiro, era sempre assim. O desafiador era apresentado em primeiro lugar. Toca o hino nacional, Maciel era extremamente patriota. Alguns cantos, outros estão eufóricos demais para entender o que está acontecendo. Touro logo em seguida, o palco parece sentir o peso do lutador. Maciel sorri, está também emocionado. Por instantes esqueceu do seu desafeto mirrado: Daniel. Toninho está na tributa vendo a luta, todo enfaixado.
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A luta começa. Touro se joga violentamente contra Cobra, os dois caem no chão. O público se levanta, a briga vai ser boa. Cobra tenta acertar uma cotovelada no pescoço de Touro, ele não sente a pancada. Touro tenta quebrar o braço de Cobra, se ouve um estralo, Cobra não sente nada. Aparentemente o braço ainda estava inteiro, os dois levantam, se afastam. Touro corre em direção ao Cobra; Cobra se defende com um soco no olho; esse tipo de golpe era pouco comum. Touro sente, parece que não está enxergando do olho esquerdo, sangue escorre pelo seu rosto. Touro não se intimida, pega Cobra pela cintura, tentar quebrar suas costelas.
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Toninho se levanta. Pensa em como seria bom uma luta daquele jeito com Daniel. Deixaria seu inimigo cego. Quer coisa melhor do que deixar o inimigo cego? Ele bebe um gole de cachaça, senta novamente. As duas mulheres que fazem companhia a ele fecham os olhos. Mesmo naquele mundo caótico, era impossível achar a violência uma coisa natural.
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Cobra consegue quebrar o joelho de Touro, um golpe. Touro cai no chão. Cobra precisa terminar o serviço, Touro ainda está agonizando no chão. Cobra se aproxima, não percebe que Touro ainda tem forças, ainda está vivo. Touro pega Cobra com umas das mãos, acerta uma mordida certeira no pescoço de Cobra. Os dois caem.
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De repente a luta pára. Cobra deitado sobre Touro. Os dois não se mexem. Um sangue escorre por debaixo de Touro, escorre pela sua bochecha, lambuzando a mordida. Touro não larga pescoço de Cobra, continuam imóveis. Um silêncio enorme, todos estão esperando o final da luta. Maciel abre a cela, ele vai dizer se está encerrado. Se aproxima dos dois lutadores, olha bem para ambos. Pergunta se alguém está vivo. Um som baixo sai daquele amontoado de carne, ossos e sangue.
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“Na minha terra matamos cobra e mostramos o pau!!”
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Todos gritam! Touro vence a luta. Perdem dinheiro com as apostas, mesmo assim ficam eufóricos. Nascia naquele momento um novo herói para Maciel. Um novo símbolo para o Local.
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11
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Daniel acorda assustado, sente um calafrio. Vê Luiza deitada no sofá. São cinco horas da manhã. A proposta de Camargo não sai de sua cabeça. Teria coragem de roubar Maciel? Era impossível, conhecia bem como tudo funcionava. Sim! Tinha falhas, todos os sistemas de segurança possuem falhas. Onde? Levanta-se, precisava pensar nas falhas. Não, mil vezes não. Era perfeito. Maciel preparou tudo, duas pessoas sabiam os códigos, de onde saia o dinheiro. Duas pessoas: Alvarenga e Camilo. Camilo filho adotivo de Maciel, possivelmente quem tomaria conta dos negócios quando o pai morresse.
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Senta na cadeira da sala, ascende a luz que fica no centro da mesa, bem no alto. Não queria acordar Luiza. Pega papel, lápis, faz desenhos, cálculos, cronômetro na mão. Luiza se mexe no sofá, mas não acorda. O sol aparece, são seis e meia. O relógio da parede da sala continua parado, meio dia e doze. Podia ser meia noite e doze. Tudo é relativo, a segurança; é relativa. Que bobagem ele está pensando? Relativo? Nada de relativo. Todos os processos bem pensados por Maciel. Não há falhas! Impossível não haver um erro sequer. Precisa pensar, precisa se livrar de Henrique.
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Luiza acorda, se embrulha no cobertor. Ainda está frio aqueles dias. Ela se aproxima de Daniel, não quer perguntar nada, sabe que ele não vai responder uma pergunta sequer. Ela abraça Daniel, diz que ainda está com sono. Vai para o quarto. Ele concorda, diz que precisa pensar numa coisa, tinha perdido o sono. Luiza se sentia só quando estava ao lado de Daniel, mesmo assim o amava. Daniel gostava de Cecília, apesar de não ter tempo para o que ele chamava de futilidade.
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Daniel percebe uma coisa, um ponto mínimo no sistema de segurança de Maciel. Podia colocar aquilo no papel, mostrar para Camargo. Ele relaxa, consegue perceber que o plano pode dar certo. Vai para o quarto, Luiza dorme. Ele prepara suas coisas, duas malas. Não vai embora agora, mas quer deixar suas coisas prontas. Ele deita ao lado de Luiza, abraça. Dormem.
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Camargo se encontra com Camilo, o filho adotivo de Maciel. Os dois estão no bar, bebendo. Soraia também está no bar, mas ausente no momento que eles conversam. Um lugar sujo, cheio de mulheres horríveis. Cerveja quente, não tinha comida. Camilo dispensa uma garota que se aproxima, ele não estava querendo farra nenhuma, apenas conversar sobre negócios. Camargo bebe um copo de pinga, precisa de coragem. Aquela conversa era essencial para que seu plano fosse um sucesso.
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“Pensou no que eu disse?” – Camargo pergunta.
“Sim” – Camilo coça a cabeça. Parece ainda ter dúvidas.
“Eu disse para você perceber as coisas. Não quero o seu mal”
“Estou confuso”
“Está na cara que seu irmão vai te fuder!”
“Toninho nunca gostou de mim”
“Todo mundo sabe, só o Maciel não quer acreditar”
“Toninho não me mataria”
“Porra! Aquele cara é louco. Quando seu pai não estiver mais conosco, e Deus me perdoe falar uma coisa dessas, seu irmão vai acabar com você”
“Eu trabalho duro naquele lugar!”
“Eu sei. É o cara preparado!”
“Meu pai está doente, sabe disso!”
“Sei, sei... por isso acho que devemos agir primeiro”
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Soraia se aproxima. Camargo apresenta como uma amiga. Ela senta ao lado de Camilo. Soraia está com uma calça apertadíssima, sem sutiã; um perfume bom. Seu corpo permite esse atrevimento. Camilo fica interessado na garota. Amor é coisa excepcional na vida de um homem. Camargo arruma uma desculpa qualquer, sai da mesa. Os dois continuam conversam.
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12
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Luiza acorda Daniel, ela tinha horário marcado com Henrique, fariam uma viagem ao Rio de Janeiro. Eles levantam, tomam banho juntos. No banheiro Luiza diz que Henrique não quis receber o valor parcial, queria todo dinheiro daqui dez dias. Para Daniel era tempo suficiente. Luiza diz que escondeu o pacote no guarda-roupa. Ela sai do banho, ele continua debaixo do chuveiro. Ela pega um táxi direto para o aeroporto, Henrique estava comendo alguma coisa na lanchonete.
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Daniel pega o pacote de dinheiro. Coloca dentro de uma sacola, o dinheiro estava bem embrulhado. Pega um ônibus, leva a sacola. Depois dos acontecimentos com Toninho nunca mais quis andar de moto. Chega numa casa antiga, duas crianças brincam no jardim. Era o primeiro dia de Sol forte naquele inverno. Uma menina loirinha, um menino moreno; olhos verdes e cabelos encaracolados. Ele bate palmas, as crianças correm para dentro da casa. Ele grita o nome de Amanda, ninguém atende. Tenta mais uma vez. Aparece uma mulher, vestido simples; devia estar fazendo alguma coisa na cozinha, ela está com um avental sujo.
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“Queria saber como estavam as coisas” – Daniel começa.
“Estão bem. Lucas perguntou de você”
“Eu vi que ele estava brincando na grama”
“Ele não te reconhece, não é mesmo?”
“Não”
“Está bem. Começou na escola ontem. Ficou bonito de uniforme”
“Eu trouxe um dinheiro”
“Não precisamos de dinheiro”
“Para comprar alguma coisa para ele. Um presente bem bonito”
“Não sabe o que seu filho gosta?”
“Desculpe”
“Deve se desculpar com ele”
“Pretendo um dia fazer isso”
“Vai se arrepender de ter abandonado tudo. Não por mim, sei que nunca me amou de verdade. Mas por ele”
“Quem é a outra menina?”
“Filha de uma vizinha. Os dois dizem que estão namorando”
“Ele só tem quatro anos!”
“Mulherengo. Puxou você”
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Daniel entrega o pacote para Amanda. Ela, mesmo contrariada, pega o embrulho e coloca embaixo do braço. Ela sorri, diz que não pode chamá-lo para um café, pois ele não gosta. Diz que está terminando o bolo de aniversário do filho. Com aquele dinheiro compraria roupas e alguns brinquedos para Lucas. Ele fica satisfeito, pensa ter feito todas obrigações de pai. Lucas olha pela fresta da porta, está com vergonha. Daniel vai embora, sentido uma tristeza enorme. Um sentimento de culpa que não é ignorado nem por uma criança.
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Camilo e Soraia se beijam. Ele sente uma terrível sensação de bem. Sente mais do que isso, atração. Eles levantam da mesa, Camilo carrega Soraia para longe daquele lugar. Camargo já tinha ido embora. Eles vão para casa de Camilo, ele não morava com Maciel. Uma casa enorme, piscina, salão de jogos e seguranças por todos os lados. Entram no quarto, Camilo deita na cama. Soraia fica completamente nua na sua frente.
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“Gosta de tatuagens?” – Camilo pergunta ao ver uma enorme serpente nas costas de Soraia.
“Gosto de pinto!” – Responde mais uma vez sem pudores.
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Os seguranças se divertem com as cenas, câmeras cobriam toda casa, inclusive o quarto de Camilo. Camilo estava embriagado, esqueceu de dizer para os comandados que queria privacidade. As lentes nunca foram fechadas naquela casa, mesmo quando era uma ordem dele.
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quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Briga de Foice (7,8 e 9)

7
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Alvarenga entra na sala de Maciel, senta-se no sofá preto de couro. Maciel se levanta, se aproxima de Alvarenga. Os dois conversam sobre o estado de Toninho. Ele está melhor, vai conseguir respirar normal dentro de algumas semanas. Maciel diz que não consegue perdoar Daniel, Alvarenga faz um carinho na cabeça dele dizendo para pensar melhor antes de cometer alguma injustiça.
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“Você também está defendendo aquele rapazola?”
“Não é isso. É que ele estava fazendo o trabalho dele”
“Uma ova!”
“Já pensou se Toninho acerta um tiro no Paes? Que merda ia ser?!”
“Foda-se o Paes!”
“Precisa pensar melhor no dinheiro. Hoje a casa está cheia porquê aqui nunca houve confusão”
“Pode ser”
“Ainda pensa em acabar com Daniel?”
“Não. Por enquanto, não”
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* * *
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Cecília acorda cedo. Sabe que Daniel não está brincando quando mandou que ela saísse de casa. Ela arruma as coisas, duas sacolas cheias de roupas. Sai sem que Daniel perceba. Ela odiava despedidas, sabia que Daniel também mudaria de idéia e a convenceria a ficar. Daniel acorda, percebe que Cecília não está na cama. Não sente também o cheiro do café. Tentou dormir novamente, mas não conseguia. Sentiu um aperto no coração, um vazio. Estava sozinho naquela casa. Quis chorar, mas seu orgulho impedia que essa vergonha acontecesse. Pensou melhor, era impossível mantê-la naquele lugar, Maciel poderia mudar querer matá-lo, isso era perigoso.
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Daniel pega o pacote de dentro do guarda-roupa. Conta mais uma vez o dinheiro, tem certeza que está faltando mil e trezentos. Pega o telefone, liga para Camargo. Não fala do dinheiro, de ter sido roubado por Maciel. Diz para Camargo que precisa de dinheiro, estava sendo pressionado. Camargo acorda assustado quando o telefone toca, Daniel diz claramente que precisa de três mil o mais rápido possível. Camargo sorri, um sorriso triste, sabe que Daniel deve dinheiro ao Henrique. Combinam um encontro, Camargo tem um serviço que vai render muito dinheiro.
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Luiza bate na porta assim que Daniel desliga o telefone. Luiza entra. Eles se beijam, Luiza diz que está com saudade. Daniel mantém-se calado. Luiza diz que a visita foi a mando do Henrique, ela diz que não consegue mais arrumar desculpas pela falta do dinheiro. Os dois se sentam no sofá. Daniel pega um copo de água gelada, diz que está com medo de morrer.
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“Precisa dizer para ele que surgiu um novo trabalho. Com o Camargo” – Daniel começa.
“Ele já fez muito por você. Não sei se vai conseguir acreditar que pagará a dívida”
“Eu sei. Eu sei, andei enrolado esses dias. Tenho um dinheiro comigo, pode levar para ele”
“Ele quer os três mil!”
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Daniel levanta do sofá, vai até quarto e pega o pacote de dentro do guarda-roupa. Entrega o pacote na mão de Luiza. Ela pergunta quanto tem naquele pacote. Mil e duzentos. Ela ri, joga o pacote na mesa, diz que não vai passar vergonha na frente de Henrique, não levará o pagamento. Daniel abraça Luiza. Os dois se olham, se beijam. Luiza pode conseguir mais um dia, nem ela sabe o poder que tem sobre Henrique. Daniel está vivo pois Henrique não quer ver Luiza distante. Daniel e Luiza transam.
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“Você está com gosto ruim na boca” – Luiza diz depois de tudo.
“Gosto ruim?”
“E um perfume horrível”
“Perfume?”
“De enfermeira vadia”
“Ela já foi embora”
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8
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Luiza se levanta do sofá, seu corpo nu desfila pela casa. Seu corpo é perfeito. Costuma fazer exercícios todos os dias, não come carne nem bebe refrigerante. Sua arma para conseguir tudo na vida é o corpo, quer sempre mantê-lo maravilhoso. Cabelos longos, pretos; lábios sempre bem pintados, grossos; uma voz suave que não diz um só palavrão. Mulheres têm dificuldade da elegância nos dias de hoje, ela não. Levanta-se, pega um copo de água; se aproxima de Daniel, se beijam. Ela se afasta, pega a roupa que está jogada no chão, veste-se. Camisa branca, mini-saia preta. Ela não usa meias para corrigir os defeitos naturais da perna, ela não tinha defeitos. Tira da bolsa um pequeno vidro de perfume: borrifa no peito, no pescoço e nas pernas. Pega o pacote de dinheiro que está na mesa, diz para Daniel que vai tentar convencer Henrique.
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Daniel toma banho, está atrasado para o encontro com Camargo. Veste-se apressadamente, coloca a arma na cintura. E a mesma arma que roubou de Toninho no dia da briga. Dessa vez ele não sai de moto, prefere não se arriscar. Ônibus cheio de gente é o local perfeito para não ser alvo de Maciel. Entra no ônibus, curiosamente não está cheio, apesar do horário. Olha em volta, não percebe nenhuma ameaça. Senta-se ao lado de um velho, o homem está fedendo. Ele não se importa, já ficou do lado de coisa pior nessa vida. O velho abre o jornal, está lendo sobre futebol. Depois para a política. Daniel continua quieto, pensando o que será do seu futuro.
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“Qual o seu candidato predileto?” – O velho fechando o jornal, dirigindo-se ao Daniel.
“Não tenho candidato”
“Você está nervoso?”
“Não, meu senhor. Não estou nervoso”
“Por quê carrega uma arma, então?” – Daniel percebe que o revolver está aparecendo na altura do umbigo.
“Policiais andam armados sempre” – Daniel ajeitando a arma.
“Você tem mais cara de bandido”
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Daniel continua olhando pela janela, o velho se desinteressou por ele. A paisagem sempre é a mesma, mas algumas pessoas novas vão aparecendo pelo caminho. Quanto tempo levaria para chegar ao centro da cidade? Camargo não é sujeito que gosta de esperar, logo fica bravo e vai embora. Pior para Daniel, ele quem mais precisa desse encontro, pelo menos é o que ele pensa.
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“Para quem você vai torcer?” – O velho novamente.
“Já disse que não gosto de política”
“Estou falando de futebol. Que time você torce?”
“Não gosto de futebol”
“E de mulher? Você gosta?”
“Que pergunta”
“Quando eu era catador de papelão eu tinha várias mulheres”
“......”
“Agora que sou faxineiro, vivo sozinho”
“Vai aparecer alguém para você, tenha certeza”
“Eu moro numa pensão na Sé”
“Desço aqui”
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Daniel continuou andando, entrou na padaria conforme combinado com Camargo. Sentou-se na terceira mesa do lado esquerdo de quem entra. Um cinzeiro, uma cerveja e um copo. Camargo está aqui, ele pensa. Deve ter ido ao banheiro. Não se pode largar copo cheio na mesa, é perigoso para golpes. Sentou-se, garçom lhe trouxe um copo. Duas mulheres ao seu lado estão almoçando, era tarde para almoço. Dois homens conversam no outro canto, estão bebendo. O cheiro de comida está enjoando Daniel, ele fica incomodado aguardando Camargo. O plano podia ser em relação ao Henrique, Camargo também deve dinheiro ao bicheiro. Poucos policiais não fizeram dívidas com Henrique. Camargo chega, põe cerveja no copo. Pede uma porção de fritas ao garçom.
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“Você bebe um copo?”
“Não. Já bebi demais esses dias. Me chamou aqui para o trabalho no colégio Franco Aguiar?”
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9
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Camargo se ajeita na cadeira, estava eufórico para contar o plano ao Daniel. Sim, queria acabar com os malandros da Franco Aguiar, mas não era para isso que tinha marcado aquele encontro.. Matar aqueles bandidos era serviço humanitário, ele pensou. Camargo diz que é um plano novo, Daniel é peça chave; valia muito dinheiro. A porção de fritas chega, Daniel fica mais enjoado ainda. Camargo espalha catchup no prato, come uma batata. Joga mais sal. Bebe um gole da cerveja.
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“Não é sobre os vagabundos que quero falar”
“Pensei que queria matar aqueles sujeitos”
“Não tenho pressa. É pior acabar com eles agora”
“Delegado Freitas está de olho em você?”
“Sim. Está querendo me pegar, mas não vai conseguir”
“Que pretende?”
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Ele se curva na cadeira, como querendo falar com Daniel em segredo. Se aproxima do ouvido do amigo.
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“Quero armar um esquema no Local”
“Porra! Ficou doido?”
“Calma, vou explicar”
“Nem quero saber”
“Calma, já disse. Está armado, tem um pessoal com a gente”
“Não sei”
“Vou contar, se quiser pode vir conosco, se não quiser pode cair fora”
“Conte”
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Uma das moças que estava almoçando se aproxima de Daniel e Camargo. Ela senta na cadeira, o garçom bota um copo na mesa. Camargo enche o copo da garota de cerveja. Camargo apresenta a moça como Soraia. Os três começam a conversar sobre o plano. Camargo se levanta, diz que está apertado. Daniel e Soraia continuam conversando.
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“O que achou do esquema?”
“Bom. Mas é loucura fazer isso com Maciel”
“Você pensa pequeno, já me disseram. Tem medo”
“Onde conheceu Camargo?” – Daniel coloca mais bebida no copo da garota.
“Na noite. Não dá para saber direito. Só sei que nos tornamos amigos, na cama”
“São namorados?”
“Tenho cara de namorar?”
“Não”
“Gosto mesmo é de pica!” – Solta uma risada histérica.
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Camargo chega. Ele está trazendo uma outra cerveja. Diz para Daniel pensar bem no caso, sabia que precisava de dinheiro. O plano realmente era arriscado, roubariam o Local. A noite já tinha chegado quando Daniel saiu da padaria. Estava pensando no caso, se aceitava ou não a proposta. Não disse nada ao Camargo. Chega em casa, deita-se no sofá. A casa está escura, prefere que continue assim. Luiza chega, abre a porta, entra sem fazer barulho. Percebe que Daniel está dormindo, cobre Daniel. Vai até a cozinha, prepara alguma coisa para comer. Deita-se no outro sofá, dorme,
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Touro entra no rinque. Ele decide por mais uma luta. Era a terceira que faria naquela noite. Nunca um lutador conseguiu passar da segunda luta numa noite. O prêmio estava depositado na sua conta, o segundo na conta de sua mãe. O terceiro cheque estava em poder de um dos seus irmãos, era a garantia caso ele morresse. Maciel mesmo quem preencheu o cheque. Disse pessoalmente que Touro era um homem de coragem. A luta começa.
(Continua.....)
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