segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Mão que escolhe o crime

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Madeleine era realmente uma menina baixa, seus cabelos continuaram lisos e castanhos, quase louros. Ela deixa cair os livros que estava segurando. Um susto enorme ao ver-me sentado em seu sofá. Não é comum deixar a porta aberta, eu queria dizer; mas só consegui mesmo prestar socorro. Gritávamos, ela pelo susto e eu tentando acalmá-la. Foi inútil, ela continuou apavorada. De repente ela para de gritar, ficou em completo silêncio. Mesmo em silêncio, mantinha uma forma pálida e indefesa. Ajudo com os livros, coloco todos em cima da mesa. Seguro o braço da garota, pedindo para ela se sentar.
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“Desculpe ter entrado assim, a porta estava aberta” – Minha frase não tinha efeito algum sobre a garota.
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Ela continuava me olhando assustada, com medo do que eu poderia fazer. Minha cara não parecia de qualquer psicopata, mas com certeza dava medo. Um pouco da minha barba crescida de duas semanas, uma camisa amassada no corpo, uma velha calça e um sapato sujo. Eu era exatamente aquilo para a garota. Não estava cheirando mal, e também não é por isso que ela estava me olhando daquele jeito. Qualquer um que fosse, do jeito que estivesse; causaria a mesma impressão a Madeleine. Ela começa a voltar a si, já entendendo um pouco minhas palavras. Talvez não tivesse total compreensão das idéias, mas já era um bom começo para desculpar-me pela invasão.
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“Não vou lhe fazer mal. Desculpe, mais uma vez, por ter entrado assim em sua casa”
“Quem é você?”
“Quer um copo de água com açúcar? É só me dizer onde essas coisas ficam na cozinha que eu preparo para você” – Levando de perto da garota.
“Não saia daqui. Fique onde está” – Volto ao mesmo lugar – “Quem é você?”
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Pego minha carteira, dela tiro uma foto surrada. Tiro uma foto de uma senhora, cabelos brancos e olhar triste e cansado. Mostro para Madeleine, ela continua me olhando assustada.
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“Está vendo? É Isabelle Bresson. Já ouviu falar dela, não?”
“Tenho certeza que não”
“Tenho outra foto aqui... vai se lembrar, tenho certeza”
“Pare com isso. Só quero saber quem é você”
“Se me deixar explicar”
“Não tenho que deixar nada... você invade minha casa.... Quero saber quem é você” – Impaciente.
“Então, sou bisneto da Isabelle”
“Quero ver a foto” – Madeleine pega a foto, fica olhando por alguns segundos – “O quê significa tudo isso? Nem conheço essa Isabelle”
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Mais uma vez me esforço para começar o assunto, não é tão fácil chegar do nada e recuperar uma história que para a garota não fará menor diferença. Madeleine e eu somos os únicos sobreviventes de uma família que foi se perdendo durante os séculos, eu digo. Numa breve reflexão sobre o caso, posso dizer que somos primos de graus distantes. Não há mais nada que possa dizer sobre o caso, estaria mentindo mais ainda. Apenas confirmo nosso pequeno e distante parentesco.
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Eu continuo a história dizendo que se fosse um caso comum, ignoraria a existência de Madeleine; como se faz costumeiramente tantas famílias espalhadas neste mundo. Já imaginou se sentir sozinho? Sem uma pessoa sequer da família? Tem gente que nem liga para isso, sabem que em algum lugar do mundo existe uma pessoa com o mesmo sangue, isso é o bastante para se sentirem seguras. Mas e o meu caso? Olhar para os lados, para o passado; futuro e não encontrar absolutamente ninguém. Fico em silêncio observando a reação de Madeleine.

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Ela se levanta do sofá, ainda não entendia direito tudo aquilo estava acontecendo. Para mim era simples, no entanto, precisava ser compreensivo para que as coisas não ficassem confusas na cabeça de Madeleine. Não podia ir direto ao assunto, de onde vim e como cheguei até aquele lugar. Melhor seria acabar logo com aquilo, dizendo o interesse em encontrá-la. Não posso dizer nada disso, na verdade é uma estranha maluquice na minha cabeça. Não deveria estar ali, não deveria ter perdido tanto tempo procurando uma pessoa estranha, que possivelmente não terá os mesmos sentimentos pelo passado que eu tenho. Levanto. El hombre mediocre de José Igenieros. Não li essa história, mas o nome parecia ser perfeito para mim.
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“Desculpe mesmo ter entrado em sua casa”
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Madeleine continua me olhando, mas a cara agora já não é mais de medo. Está assustada? Um pouco, não é bem essa a sensação que ela transmite. Está confusa, muito confusa. Isso é tudo. Quer continuar me perguntado sobre os motivos de ter invadido sua casa, minhas desculpas parecem responder tudo. Estou na porta da sala, indo embora. Ela continua sentada no sofá, olhando meus movimentos. Pensa agora que eu não estou ali para fazer algum mal. Volto, pego a foto de Isabelle que está em suas mãos, coloco novamente no bolso. Vou embora sem qualquer explicação. A outra foto ficou na mesa da sala.
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Perto dali: Longe. Vou embora, volto. São passos que tento ao saber que o trem está chegando. Mil motivos me prendem ao chão, outros tantos me fazem caminhar para perto do abismo e me atirar. Na minha conta confusa e abstrata, não consigo saber o que está valendo mais para minha vida. Paro na dúvida, na incerteza de como as coisas são. Ninguém tem certeza de absolutamente nada nessa vida. Nem se vale a pena continuar ou não. Não tenho essa certeza e espero nunca saber. Volto para meu lugar, longe dos trilhos. O trem passa, vagão por vagão. Um movimento intenso de pessoas entrando e outras tantas saindo. Eu continuo parado. Poucos minutos depois estou no vazio novamente.
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Conto exatamente dez minutos. No próximo eu vou entrar. Há um motivo para isso. Histórias com mistérios são interessantes, com pessoas neuróticas o sucesso é garantido. O trem chega. Conto dois vagões; do começo para o fim. Entro. Duas senhoras sentadas do meu lado esquerdo. Do lado direito um senhor lendo o jornal. Uma criança com sua mãe. A criança parecia doente e sua mãe lhe fazia carinho no rosto. Senti saudade da minha mãe, que me abandonou quando eu era muito novo. Vou caminhando como quem procura um lugar melhor para sentar. Não existe lugar melhor, todos são iguais quando o vagão está vazio. Todos os sentimentos podem nos preencher quando não sentimos nada. Até o ódio ou talvez a vingança.

Passei os últimos três anos procurando por Madeleine e quando consigo me aproximar, vejo que não tenho coragem de continuar meu plano. O tempo vai passando, lembro que esqueci uma foto com Madeleine, era tarde para ir buscá-la. Saio do vagão, tudo está muito silencioso. Quase meia-noite, as pessoas já estão seguras em suas casas. Ando dois quarteirões e chego à pensão. Não tem ninguém na sala, apenas a televisão ligada. Subo as escadas, entro no meu quarto. Estava cansado, decepcionado comigo mesmo. Queria poder dormir e não acordar jamais.
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Percebi que algumas pessoas são muito parecidas. Quase sempre é pela dor que se unem, pelo medo de ficarem sozinhas ou pela raiva que se enfrentam. Eu precisava de algumas dessas coisas: achar quem estava na mesma situação que eu, sofrendo pela solidão. Quem sabe achar alguém com medo de ficar sozinho. Muito pior seria encontrar alguém por quem me vingar.
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Tiro meu sapato, deito na cama. Meu quarto era o menor de todos na pensão. Eu nunca precisei de muito espaço. Não demoro muito para pegar no sono. Acordo com um falatório vindo da cozinha.
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Levanto, ponho a calça. Dou uma olhada rápida no espelho. Continuo envelhecendo sem aproveitar absolutamente nada da vida. Olho para a roupa, hoje ela não pode estar amassada. Pego minha toalha, minha escola de dente, o perfume. No banheiro uma pequena fila. Como sabem, em algumas pensões temos lavatórios coletivos. São duas pessoas na minha frente. Demorarão cinco minutos; ainda tenho tempo. Minha cara é péssima, faço o bochecho; arrumo o cabelo. Na luz a roupa parecia um pouco mais amassada, não tenho outra. Desço correndo, todos os lugares da mesa estão ocupados. Como pão, leite com café e um pouco de manteiga. Não tenho outros direitos naquele lugar, mas é melhor do que de onde eu vim.
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Desço correndo a ladeira, o que me sobrava de tempo parece ter acabado com a demora para engolir aquele pedaço de pão amanhecido. Viro a esquerda, depois direita. Estou em frente ao prédio que na manhã de ontem exibia uma enorme placa procurando auxiliar contábil. Subo as escadas, vejo uma pequena fila se formando. Parece ser um dia de sorte. Tento recuperar na memória tudo que aprendi quando trabalhava com contabilidade, é fundamental saber exatamente como, quando e porquê eu fazia determinadas coisas. Era simples para mim, contava que não fosse para todos que estavam ali. Há essa carnificina natural das pessoas que estão procurando emprego. Continuo pacientemente esperando minha vez.

Por quê o emprego? Eu poderia mudar de idéia em relação a Madeleine.
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Uma senhora não muito simpática me atende. É direta, entrega os formulários e pede que eu responda o mais rápido possível. Fico espremido aos outros candidatos, numa única mesa que fica bem no meio do escritório. Enquanto vou respondendo as questões que, no meu ponto de vista, são absurdas, dou uma olhada para as pessoas trabalhando. Numa mesa atrás da gorda que me atendeu, uma outra gorda. Ela tem olhar triste. Deve morar sozinha, passa as manhãs de domingo limpando a casa e dando comida para os gatos. Um outro sujeito com um bigode fino lê o jornal. Ele não agüenta a esposa, mas não tem capacidade intelectual ou financeira para arrumar uma amante. Mulheres podem até suportar um sujeito pobre, mas burro elas não admitem.
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Entrego a papelada, outros tinham sido mais rápidos; mas pouco caprichosos. A velha continua me olhando com indiferença, decerto achando que sou velho para o trabalho. Pega minha ficha, coloca dentro de uma caixa entre outras centenas. Sou o mais velho entre eles.

Procuro algum dinheiro no bolso, é tudo que eu tenho. Umas moedas e algumas notas amassadas. Pensei em procurar um velho amigo, para quem trabalhei outras vezes fazendo um serviço temporário, esqueço. Entro num bar, já era hora do almoço. Numa placa horrivelmente escrita com giz, o cardápio do dia. Meu dinheiro pagaria esse almoço, eu me orgulho. Simples minha vida: sem dinheiro e sem emprego. Eram tempos complicados, mas que precisavam de alguns dias para ajustes. Era certo que passaria fome por um pequeno espaço de tempo, que teria que arrumar desculpas para a velha da pensão. Quase todas são incompreensíveis ao nosso estado econômico. Mas era tudo passageiro, já vivi inúmera vezes a mesma situação. Peço o prato, aguardo em silêncio para não perder forças.
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Um balcão enorme, com aquelas cadeiras giratórias. Um total de vinte cadeiras. Do meu lado direito um rapaz cheirando suor. Comia rápido, pensando nas coisas óbvias. Do meu lado esquerdo um velho pensativo, mastigava com dificuldade. Quem sou eu? Um velho sem futuro ou o jovem sem esperança? O velho botou uma colher de arroz na boca, mexeu lentamente o queixo. Podia-se notar a dor que sentia. Por causa da afta, da dentadura ou pelo gosto que ele não sentia da comida. O rapaz engolia tudo, e mesmo que no meio do arroz branco, com gosto forte de gordura de porco, houvesse uma barata; ela seria triturada pelos molares impiedosos da fome. Chega minha comida e repentinamente perco a vontade de comer.

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Saio do bar. Perto dali uma praça suja e abandonada. As coisas são assim mesmo nos dias de hoje, quase tudo perdeu o valor. Antigamente podíamos ver crianças brincando, mães discutindo as últimas traquinagens dos filhos, velhos jogando dominó. Hoje só o mato crescendo, ratos e outros bichos num local seguro. Almas continuam perdidas. Não sou tão velho, mas tenho saudade do passado. A solidão muitas vezes faz surgir uma nostalgia. Sento num banco. Madeleine surge na minha cabeça, surge também uma história que eu não podia estar contando. Parecia que naquele momento a única coisa que me mantinha vivo era uma pessoa que eu não conhecia e sentimentos que eu abominava.
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Tinha medo de tudo isso virar uma estranha obsessão, resolvi esquecer novamente o assunto. Vou tentar arrumar dinheiro, vou pensar que as coisas podem melhorar. Quero muito o emprego. Quero nada, uma ova que quero trabalhar naquele lugar com aquela gorda e aquele sujeito com bigode. É preciso, mas não quero. Levanto, preciso fazer alguma coisa. Fazer exatamente o quê? Paro no meio do caminho, não tinha nenhum plano para minha vida sem Madeleine. Nunca fiz um plano sequer para minha vida. As coisas iam acontecendo e, sem eu perceber, estava mais uma vez ficando velho. Exatamente quarenta e sete anos desse mistério: estar vivo. Alguém poderia me ver, ao longe, sentado naquele banco da praça e pensar: esse sujeito não vai dar certo. Continuo andando, sem ter para onde ir. Continuo não dando certo, nem decidindo o certo.
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Sem perceber estava novamente na porta de Madeleine. Estranhamente todos os caminhos da praça me levavam para longe dali. Talvez, inconscientemente, minhas pernas buscaram um lugar seguro para ficar. O velho não está do outro lado da rua, eu também não tenho vontade nenhuma de entrar na casa sem autorização. Sento na calçada, depois de apertar a campainha algumas vezes. Foi bom ela não estar em casa. Posso pensar melhor no que fazer, e se devo fazer. Diferente da outra vez, não tinha nenhuma perspectiva em relação ao encontro. Meu coração estava mais leve, esperando apenas um perdão que não chegaria.
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Madeleine aparece no final da rua, ainda não percebeu que estou esperando. Ela é bonita, não tinha reparado nisso da outra vez. Depois de alguns passos ela levanta a cabeça, já consegue me ver. Não acredita, mas sabe que estou ali. O velho aparece na janela, o mesmo que me deu informação da outra vez. Ele apenas olha sem dizer nada, de repente sua esposa aparece na janela também, ambos ficam olhando nosso encontro. Madeleine se aproxima, não parece estar surpresa.
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“Sabia que voltaria”
“Sabia?”
“Esqueceu a foto de sua bisavó comigo. Como é mesmo o nome dela?”
“Isabelle”
“Isso, Isabelle”
“Queria me desculpar por tudo”
“Sinceramente ainda não sei o que aconteceu. Pensei em avisar polícia, caso você voltasse”
“Não fez isso, fez?”
“Não. Não fiz. Mas não foi por sua causa, é que eu percebi que você não queria me fazer nenhum mal”
“Não quero”
“Só um minuto, vou pegar a foto”
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Madeleine pega a chave, abre a enorme porta de madeira. Eu continuo esperando do lado de fora. Ele demora alguns minutos, volta com a foto na mão. Eu seguro com firmeza, ponho na carteira. Ela sorri, diz que o susto serviu para não mais esquecesse de trancar a porta. Ficamos olhando um para o outro, sem muito o quê dizer.
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“Quer entrar?” – a pergunta surge do nada, de forma inesperada. Não sei bem se ela queria mesmo perguntar aquilo, apenas perguntou.
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Eu fico olhando para Madeleine, ela tinha realmente olhos tristes. Como são os olhos de quase todos da família. Olhos caídos como quem está sofrendo pela eternidade. Digo que não quero entrar, ela diz que ficou curiosa pelo modo como eu apareci em sua vida. Como não agi de forma errada da outra vez, acabou confiando em mim. Entro, sento no mesmo lugar. Sentia-me seguro desse jeito, fazendo as mesmas coisas. Ela pergunta se eu queria beber alguma coisa, pega uma taça vinho. Começamos a beber, ela conta que está trabalhando numa pesquisa para a escola, sobre um escritor francês que está fazendo um grande sucesso. Não me interesso pela questão.
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“Mas me diga: como veio parar aqui?”
“É uma história longa, queria dizer tudo naquele primeiro encontro, mas fiquei sem saber como começar”
“Não foi um encontro, foi uma invasão”
“Sim, aquela invasão”
“Você me mostrou uma foto, perguntou se eu conhecia aquela senhora. De repente saiu correndo, desapareceu. Eu estava assustada, ninguém nunca invadiu minha casa antes”
“Foi uma maluquice a minha, ir entrando assim. Não tem medo de ficar aqui sozinha?”
“Vai contar o que veio fazer aqui ou não?”
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Puxo novamente a foto do bolso. Digo que aquela mulher na foto chama-se Isabelle, até ai nenhuma novidade para ninguém. Digo que ela é um parente distante, mas que, diferente do que Madeleine sabia, também era sua parente. Madeleine fica surpresa, sempre soube ter sido adotada, e nunca quis saber dos pais verdadeiros. Pega a foto da minha mão.
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“Quer dizer... da minha mãe ou meu pai?”
“Seu pai verdadeiro”
“Como posso ficar dando ouvidos a qualquer maluco que chega na minha casa”
“Seus pais adotivos eram muito próximos aos seus pais verdadeiros. Sua mãe morreu e eles resolveram cuidar de você”
“Está bem, vou acreditar em tudo isso”
“Não estou brincando”
“Um sujeito que mal conheço chega em minha casa dizendo que meus pais verdadeiros não me abandonaram, que minha bisavó verdadeira..... alguma coisa não está indo bem” – É evidente a mudança de humor da garota.
“Eu sei que é difícil”
“Difícil. Difícil? Vivi de casa em casa sem saber qual era minha história. Quando eu começo a esquecer qual é a importância de quem eu realmente sou, você aparece com essa história. Você precisa ir embora”
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Madeleine levanta do sofá, parece estar mais transtornada do que da primeira vez que estive aqui. O fato principal que a incomodou: os pais adotivos também terem a abandonado. Ela ficou sozinha naquela casa, sem sabe direito o que fazer; comer ou como ir para escola. Foi se virando com ajuda dos vizinhos, meio largada; jogada. Foi levando a vida, sem querer saber certos detalhes, que naquele momento não iriam fazer menor diferença. Ela abre a porta, diz que eu preciso ir embora pois ela está atrasada para a escola.
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“Desculpe se disse alguma coisa que não devia”
“Não disse nada que eu precisava saber” – Ela fecha a porta na minha cara.
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Sabia que tinha que preparar melhor toda a história. Como eu posso chegar, de repente, e querer mudar tudo isso? Continuo andando, procurando algum lugar para dormir. Estava sem dinheiro, lembrei nesse momento. Sem dinheiro, sem esperança; lembrei mais uma vez. Madeleine com quem eu poderia contar, a única em quem eu confiava. Precisava corrigir as coisas, não era certo chegar assim: primeiro sendo um estúpido, invadindo a casa daquele jeito. Depois contar uma história que era mesmo muito estranha. Preciso voltar. Esperar Madeleine acordar, tentar ajudá-la a entender tudo que tinha acontecido. Minha cabeça estava confusa novamente.
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Sento novamente na calçada, não havia ninguém passeando pelas ruas. Pudera, estamos no meio da semana de uma cidade que está crescendo sempre, onde pessoas trabalham sem parar. Por sorte não fazia frio naquela noite, é um verão quente. Fico al, imaginando como poderia me aproximar novamente de Madeleine, não cometer as mesmas bobagens dos últimos dois encontros. Precisava pensar também na questão do emprego, como bem lembrado, estava sem dinheiro sequer para comer. O Sol aparece fraco entre as casas, timidamente as janelas vão se abrindo.
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Poderia conversar com Patrick, ele sempre me ajudou. Estava mesmo precisando fazer qualquer coisa, precisava comer, dormir. As roupas ainda durariam alguns anos. No entanto, não podia ficar doente. Uma febre me colocaria entre os indigentes, um tombo qualquer me faria virar um pedaço qualquer de carne na calçada. Sexo? Nem pensar. Iria procurar por ele. A movimentação dos carros começa, tenho certeza que é dia. O sol ardia, as pessoas começavam a sair de suas casas. Sinto fome, saudade do pão duro da pensão. Levando, espalho a poeira do corpo com as mãos, arrumo os cabelos. Na casa escuto barulho de gente. Ela abre a porta:
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“Você aqui ainda?”
“Não tinha para onde ir”
“Isso não é problema meu. O quê quer dessa vez?”
“Queria me desculpar”
“De novo?”
“Sim, eu sei que é difícil para você”
“Se soubesse não comentaria nada”
“Você viveu todo esse tempo pensando uma coisa, de repente chega um estranho, dizendo que sua vida não é como imaginava”
“Minha vida é exatamente como imagino: está vendo? Vou comprar pão, tenho que arrumar minha pesquisa, depois darei aula. Isso é a única coisa que sei”
“Não pode ficar tão ofendida por seus pais estarem mortos”
“Não estou ofendida por causa disso”
“Por causa do abandono dos seus pais adotivos?”
“Também não. Estou ofendida pela mentira. Mas isso passa, eu passei tantas coisas na vida que isso é apenas mais uma bobagem que vou tentar esquecer”
“Duvido ter passado pelas mesmas coisas que passei”
“Você acha que eu vou fazer alguma coisa em relação a isso?”
“Poderia ficar em sua casa”
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Paramos para atravessar a rua. Madeleine fica pensativa. Com absoluta certeza essa pergunta era a última que ela esperaria escutar. Não há menor sentido naquilo que estou dizendo. Como não há sentido em nada que está acontecendo conosco. O que ela poderia responder? O que eu espero ouvir? Quem é esse cara, ela deve estar pensando. Quem é esse cara para invadir minha casa, falar sobre minha família e ainda querendo dormir na minha casa? Tudo isso estava passando pela sua cabeça naquele momento.
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Madeleine fica no meio da calçada, tentando entender minha pergunta. Na minha cabeça era uma coisa muito simples: estou desempregado, sem dinheiro; logo serei mandando embora da pensão. Parece simples que uma pessoa me ajudasse. Ela não deve imaginar que me deve pelo menos um lugar para morar. O farol fecha, os carros param. Ela começa atravessar a rua, eu fico parado. Minhas pernas não obedecem meus comandos, quero gritar o nome de Madeleine, mas o som não sai. É uma loucura tudo que estou vivendo. Ela continua andando, nem percebe que fiquei parado. Afinal ela se importaria comigo por qual motivo? Pela minha idade? Meus cabelos brancos? Estou com fome e meu raciocínio começa a ficar lento. Sinto ódio novamente e as dores no corpo começam a ficar mais fortes. Lembrei de como minha vida poderia estar diferente agora.
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Volto andando para a pensão, não ficava longe dali. Minhas esperanças iam se perdendo com o passar dos dias, esperanças em abandonar o plano também vão sumindo. Subo as escadas, andei pouco menos de uma hora. Abro a porta do meu quarto. Todas as coisas continuam no mesmo lugar. Era um lugar pequeno, sem espaço para móveis ou qualquer outra ambição. Uma cama que ficava abaixo da janela. Do lado esquerdo de quem entra um pequeno guarda-roupa. Uma mesa e uma cadeira do lado direito, perto da janela. Entro. O movimento é simples para mim, para outras pessoas seria um sacrifício executá-lo: Abre-se a porta, projeta-se o corpo para dentro, para o lado esquerdo. Fecha-se a porta. Pronto. Um único vão no quarto onde se pode andar com facilidade: entre a porta e o pé da cama. Eu deito, estou cansado. Qual foi o dia que me encontrei com Madeleine pela última vez?
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O sono chega rápido apesar do calor insuportável daquele lugar. É verão, já disse. Três horas da tarde, nada acontece de novo. Apenas uma briga no corredor, logo tudo é resolvido com a chegada de Yves. Ela é uma senhora alta e gorda. Tem braços fortes. Não deixa nada acontecer de ruim naquele lugar. Pega os arruaceiros pelo colarinho e expulsa todos daquele lugar. A briga pára, escuto os seus passos vindo em minha direção. Uma batida na porta. Queria não atender. Era impossível, ela não perderia tempo esperando minha resposta, colocaria a porta no chão. Não era bem no chão que a porta iria cair caso ela resolvesse usar violência, talvez acertasse minhas pernas e parte das costas. Grito que estou indo, não abro a porta, conversamos pela fresta. Primeiro que estava com medo, segundo por estar apenas de cueca.
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“Estamos em fevereiro”
“Eu sei, Dona Yves. Prometo que vou acertar tudo na próxima semana”
“Não fico com pessoas no quarto devendo mensalidade”
“Quantas vezes eu lhe dei trabalho para o pagamento?”
“Nunca ninguém me deu trabalho. Jogo as malas do sujeito pela janela”
“Não vai fazer isso comigo, vai?”
“Não deveria?”
“Eu não sou igual a esses outros que ficam brigando no corredor. Não trago mulheres, não fumo e não bebo. Tenho certeza que nunca me viu embriagado. E sabe que se não estou pagando é porque a situação está muito complicada mesmo. Saio daqui na segunda-feira se não conseguir pagar minha dívida“
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Dona Yves se move com dificuldade, mesmo assim anda muito rápido. Em poucos minutos já estava na sala lendo mais um romance idiota. Com certeza tinha conseguindo um prazo para pagar minha dívida. Como vou conseguir dinheiro até segunda-feira? Deito na cama esperando o milagre acontecer. Preciso de idéias. Preciso lembrar de pessoas para quem trabalhei. Preciso fazer alguma coisa. Vou pensando, pensando, bolando um plano na cabeça. Fico orgulhoso de poder pensar tantas coisas brilhantes mesmo quando as coisas não estão bem. Outras pessoas entrariam em pânico, ficariam confusas e desesperadas. Eu apenas penso que a solução está muito perto, que é só uma questão de tempo.
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Meu corpo está cansado, deito. Madeleine e o ódio voltam a me incomodar novamente.
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Não deu dez minutos da conversa com Yves, alguém bate na porta do meu quarto. Para minha surpresa a batida era leve, sutil. Nada comparado ao nervosismo de Yves. Levanto da cama, são dez horas da noite. Mais uma vez abro somente uma fresta, dessa vez não tive medo, mas continuava de cueca. Uma figura simpática está na frente do meu quarto, um vestido vermelho e uma blusa de lã azul escuro. A noite esfriava quase sempre. Seus cabelos estão presos, e agora parecem mais escuros do que da primeira vez que eu os vi. O perfume era indiscutivelmente bom, não deixava menor dúvida qual a pessoa que poderia estar usando. Tento abrir mais um pouco a porta, é inútil. Preciso me afastar e fazer todos aqueles movimentos sincronizados.
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“Como me descobriu aqui?”
“Tem o endereço no verso da foto”
“Espere um minuto, preciso trocar de roupa”
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Coloco a calça que estava jogada na cama. Arrumo o cabelo.
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“Nunca esperei que viesse me devolver a foto”
“Não vim por isso”
“Não?”
“Queria fazer umas perguntas”
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Saio do quarto. Descemos as escadas. Yves odiava que qualquer pessoa ficasse conversando pelos corredores. Saímos da pensão, continuamos andando sem destino. Madeleine parecia mais alta e mais bonita do que das últimas vezes. Talvez estivesse me acostumando com seu jeito, com seu rosto e maneira de agir. Continuamos andando.
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“Poderia me dizer como me achou?” – Madeleine ainda tentando entender toda história que eu contei no dia anterior.
“Dois anos pesquisando em cartórios, hotéis, conversando com pessoas. Não foi um trabalho fácil” – Eu tinha motivos para mentir sobre isso.
“Por que me procurou?”
“Você é a única da minha família”
“Eu sempre vivi sozinha. Não moveria uma palha para procurar uma pessoa que eu não conhecia”
“Temos visões diferentes sobre a família”
“Conte mais um pouco minha história” – Sentamos num banco de concreto numa praça ali perto.
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Não é nada tão surpreendente, eu digo. A verdade é que Madeleine foi adotada por um casal depois da morte da mãe verdadeira. O pai era um alcoólatra desgraçado, fugiu quando soube da gravidez. Um casal muito próximo aos pais verdadeiros de Madeleine resolveu criá-la. Quando ela completou dez anos de idade outra catástrofe acontece: o pai adotivo fica muito doente, um tumor maligno que o mata em dois meses. Mais um ano depois da morte do pai adotivo, a mãe também morre de uma doença rara. Madeleine ficou órfã aos onze anos.
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“Nunca ninguém me contou essa história. Deve estar brincando comigo”
“Não estou”
“E meu pai?” – Fico em silêncio.
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Os vizinhos dos seus pais adotivos resolveram colocá-la num lugar onde pudesse estudar. Ela aprendeu outras línguas, se aperfeiçoou. Hoje dá aulas numa escola e continua estudando. Morou com várias famílias durante esse período, sempre trabalhando para conseguir comer, fazendo serviços de casa entre outras coisas. Foi quando veio morar na casa dos seus pais adotivos, uma herança que foi mantida em ordem pelos amigos e vizinhos.
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Madeleine segura minha mão. Pela primeira vez tivemos um contato tão próximo. Eu seguro seu rosto, como se quisesse que nenhuma outra situação interferisse naquele momento. Um beijo suave. Não senti prazer, nem dor; nem excitação. O beijo não significou nada para mim, também não significou repugnância. Ela afasta meu rosto, diz que não sabe o que está acontecendo. Ficamos confusos com paixões. Eu me afasto, reconhecendo que aquilo não era certo. Não devia estar pensando em me aproximar daquele jeito, mas manter apenas a amizade a e a confiança.
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"Procurei você porque preciso de um favor"
"Favor?"
"Quero que você escreva minha história"
"Escrever? Como assim, escrever?”
"Um livro"
"Quer publicar um livro com sua história?"
"Não quero publicar, quero apenas que escreva"
"Não tem sentido uma história que ninguém vai ler"
"Você vai ler. Eu vou ler”
"Não estou entendendo"
"Você pode guardar a história com você. Mostrar para os filhos. Vai ter filhos, não?"
"Vou escrever uma história para guardar na gaveta?"
"Acha que todos os escritores publicam seus textos? Dostoiévski deve ter jogado uma porção de textos no lixo. Verne? Um monte"
"Vou escrever sua história, mas não é para mostrar para ninguém?"
"Você faça o que quiser com a história. Se achar que divertirá alguém, publique”
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Não sei qual o motivo de querer escrever minha história, talvez para criar coragem e argumentos para continuar meu plano. Ela se levanta do banco, não sabe se deve aceitar meu pedido. Volta para o banco, ensaia algumas palavras. Escrever uma história sobre um sujeito que ela não conhece, por motivos que ela não entende. Eu também fico em silêncio, escrever qualquer coisa estava muito longe dos meus desejos, os que me trouxeram para perto de Madeleine.
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"Sua história é diferente das pessoas?"
"Não. Sou tão comum como qualquer outro"
"Se eu conseguisse dinheiro para publicar sua história, as pessoas se interessariam por ela?"
"Não sei. Ainda não pensei nisso. Se Goethe ficasse preocupado com a opinião das pessoas, teria feito alguma obra?"
"Você fala de autores como se os conhecesse"
"Não os conheço, nem suas obras"
"É estranho"
"Quer escrever? Escrever por escrever? Ver o tempo passar?”
"Escrever por escrever?"
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Madeleine levanta mais uma vez do banco, ela parece ainda não assimilar tudo que está acontecendo com ela nos últimos dias. Ficar sabendo que a mãe verdadeira morreu quando pensava ter sido abandonada. Saber sobre os pais adotivos. De repente receber uma proposta de escrever uma história, sobre um personagem desinteressante; sem propriamente uma história. Qual o motivo? Como chegou até ali? Com certeza não fazia menor diferença para mim, terminar o livro ou não. Queria mesmo era me manter o mais próximo possível de Madeleine.
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(Continua)