segunda-feira, 18 de novembro de 2013

FICA COMIGO ESTA NOITE (A HERANÇA)



1/24

Abro o portão do prédio. Checo a caixa de correspondência. Há tempos ninguém se lembra de mim.  As escadas naquele prédio estão escuras, o corredor também. Subo o primeiro degrau. Em passos lentos vou passando por cada obstáculo imaginário. Quase ninguém mais mora no prédio (mas ele não está abandonado). Primeiro andar passa. Segundo e terceiro. Estou ofegante, estou cansado; as pernas não me obedecem como deveriam. Ando pelo corredor até última porta do lado esquerdo. Procuro a chave no bolso. Um maço de cigarros. O troco do ônibus. A chave. Abro a porta sem qualquer dificuldade: ainda que bêbado, estava consciente.

No sofá: Bruna totalmente nua. Ela dorme um sono profundo. Não queria começar essa história com a descrição de uma mulher nua, mas é necessário. Bruna se tornará a pessoa mais importante para mim. Ela e sua pele branca, seus cabelos loiros e um sorriso enigmático. Olhos verdes? Fiquei olhando para seu sono. Realmente não me lembro: qual a cor dos seus olhos? Desde que horas ela está me esperando? Faz calor no apartamento. Sempre está quente. Até em dias de frio, aqui é quente. Tiro minha camisa (que cheira cigarro, bebida e perfume). Vou até o banheiro. Minha cabeça para de rodar. Silêncio em toda casa, silêncio fora dela. Minha vida passa por instantes no espelho: estou ficando demasiadamente velho. Mais velho que meu pai, mais velho do que eu seria se estivesse velho. Uma cadeia de informações determinando meu tempo, fazendo com que ele andasse muito depressa.

Lavo o rosto. Volto para a sala.

Sento-me no sofá, observo Bruna. Esperaria horas até que ela acordasse. Observando seu corpo. Mas não é só pelo corpo que ela me chama atenção – Hoje estou cansado e triste - Em outras épocas acordaria Bruna. Colocaria seu corpo quente na minha cama. Colocaria em seu corpo quente. Hoje, não. Só observo. Quais os motivos que a fazem ficar ali? Entrar em meu apartamento sabendo que eu estaria perdido em algum bar sujo e boêmio? Que estaria com outras mulheres? A traição, que não é uma traição; já que não temos absolutamente nada um com o outro (somos namorados?). Tudo isso parece me incomodar mais. Ela não se incomoda. Bruna não se importar com o que eu faço ou deixo de fazer, mesmo quando diz que me ama.

Cinco horas da manhã: Bruna não se move. Eu estou nu no sofá, fumando meu último cigarro. Será o último em minha vida. Não estou com sede, nem com fome. Quero apenas entender o motivo de Bruna me amar tanto. Querer tanto estar comigo. Decidir que sou o homem de sua vida – Que piegas! Ela move o seu corpo nu no meu sofá, ela parece chamar minha atenção. Seus movimentos, seus sonhos; não sei bem. Estou mais cansado ainda, meu corpo dolorido e inerte. O sol aparece no canto direito da janela.

Não consigo pensar numa solução para a proposta de Fernando.

Levanto-me antes que ela acorde. Vou para meu quarto. Tranco a porta. Ajeito-me na cama, totalmente desarrumada e fedendo - Preciso chamar a faxineira para uma limpeza geral. Bruna não entra em meu quarto sem qualquer permissão. Ela costuma arrumar meus livros, lava a louça; compra alguns mantimentos para o armário. Mas no meu quarto ela não entra (entrava). Tenho uma sensação de invasão quando isso acontece. Considero meu quarto o único lugar seguro do mundo. Isso desde meus quinze anos.

Hoje não queria que Bruna me olhasse dormindo.



2/24

Quatro horas da tarde: Levanto e Bruna não está mais na sala. Não está mais em lugar nenhum. Ligo o rádio. O disco ainda está no mesmo lugar, na mesma música que eu deixei quando saí: “But I'm Strong, I'm Strong enough to carry him”. Preparo um café forte. Lembrei: tenho um compromisso com meu irmão. Tomo um banho rápido. O tempo é de chuva, mas não parece que cairá uma grande tempestade. Uma garoa fina, um vento gelado; no máximo. Olho no espelho do elevador; lembrei que preciso fazer a barba. Lembrei que estou parecendo velho. Lembrei que ficar velho significa, muitas vezes, perder pessoas. Minha mãe está morta. Morreu infeliz e solitária. Morreu sem qualquer abraço. Sem o meu perdão.

Pego um táxi. Um sujeito com cara de mexicano. Ele pergunta se eu me incomodo com a música tocando. Digo que não. Ele canta a música no trajeto de pouco mais de dez minutos. Na verdade ele não é mexicano. Conversa alguma coisa sobre o governo, eu respondo com poucas palavras. Nenhum assunto é tão deprimente para mim quanto o governo. Impostos, queixas; corrupção. Não sabemos falar sobre política nos ausentando do subversivo mundo da bandidagem. Político bom é político morto, parafraseia o motorista.

“Dizem que vão invadir o congresso” – Ele continua.
“Duvido”.
“Você duvida do poder do povo?”.
“Duvido que alguma coisa mude”.
“O povo não aguenta mais”.
 “Não acredito em grandes transformações que não sejam íntimas”.
“Como assim?”.
“Uma hora eu te conto”.

Seria uma explicação longa e cansativa para o pouco tempo que me resta dentro do carro. Também tinha certeza que ele não entenderia nem metade da minha teoria. Também refletia o fato de eu não ter teoria nenhuma. Era melhor parar a conversa naquele ponto. No entanto, ele quis falar sobre futebol, novela e culinária. Incrivelmente ele sabe tantas coisas quanto eu; mas diferente de mim, ele tinha a grande necessidade de externar a sua ignorância.

Chegamos.

Dei o dinheiro, ele o troco. Nossa melhor parceria tinha sido aquela: a prestação de serviço. A chuva aperta, corro para dentro do prédio. A secretária do meu irmão está na porta me esperando. Ela parecia mais alta, mais magra. Nada disso importa. Não tenho nenhuma resposta, eu queria dizer. Não consegui pensar na proposta do Fernando.

“Pensei que não viesse mais” – Ela começa.
“Tenho que acabar logo com isso”.
“Ele ficará satisfeito com sua visita”.
“Não é uma visita”.
“Mesmo assim ele ficará feliz”.
“Não quero saber como ele vai se sentir”
“Você está sendo muito rude comigo”
“Desculpe”

Ela me abraça calorosamente dentro do elevador.

“Não deixe a sua relação com seu irmão atrapalhe a gente”
“Não tem como. Você é a secretária do cara, cunhada; vê como estamos distantes?”
“Eu largo tudo, se você quiser”.
“Pois é, eu não quero”.

Décimo oitavo andar.


3/24

Fernando sabe que eu odeio altura, por isso decidiu alugar um escritório no décimo oitavo andar. Tudo bem, ele não levou em consideração minha fobia para escolher aquele lugar; mas para mim parecia algo muito pessoal. Roberta abre a porta do escritório. Fernando estava visitando um cliente (foi o que ela disse), ainda não havia chegado. Ela me oferece água, café. Ficamos olhando pela janela o tempo passar. Aquela paisagem me dava uma espécie de vertigem. Voltei a olhar para o interior do escritório: tudo era de terrível gosto. Ela se senta ao meu lado. Não havia mais nada que eu quisesse falar com ela. Ela insiste numa conversa amigável, mas a verdade é que eu ainda não a perdoei. Não consigo perdoar, parece ser meu maior defeito.

“Vai assinar a papelada sem discutir seus direitos?”
“Não quero nenhum dinheiro, nada disso é meu”.
“Mas era da sua mãe”.
“Eles construíram tudo isso; não faço parte desse negócio”.
“Mesmo assim, o dinheiro que ele vai te passar não é nada mal”.
“Prefiro não saber”.
“Você ainda está naquele apartamento apertado?”.
“Ele é a única coisa que eu consegui na minha vida”.
“Acho aquele lugar uma simpatia”.
“Que horas Fernando chega, hein?”.
“Ele deve estar chegando” – Ela olha para um relógio dourando na parede – “Não demora”.
“Não tenho muito tempo”.
“Ainda está com aquela garota?”.
“Viemos aqui discutir meu relacionamento ou assinar os papéis da herança?”.
“Mais uma vez rude comigo”.

Roberta tinha os cabelos avermelhados. Depois de tanto tempo eu não sabia se era a cor natural. Nunca tive coragem de perguntar. Ela continua sensual como sempre, apesar da idade. Algumas mulheres ficam melhores com o passar dos anos, uma raridade. Ultimamente ela tem usado um batom mais vermelho, as unhas mais escuras; brincos maiores. Desde o dia em que decidimos não continuar com mais nenhum relacionamento, ela decidiu ser vista por toda sociedade. Principalmente pelos homens. Ela se levanta e se aproxima de mim. Segura minha mão:

“Aquilo que aconteceu com a gente, sabe? Foi uma história legal, né?”

Eu me levanto. Fico incomodado com Roberta perto de mim.  Pareço ver Bruna me olhando pela janela, como se ela tivesse enormes asas; que flutuasse em pleno ar. Ela teria poder de ouvir minha conversa, de saber exatamente o que estou sentido. Saio de perto da Roberta. Distante a observo em silêncio. Alguns segundos para meu coração disparar.  Ele vai se acalmando. Ainda amo Roberta, ainda a quero; ainda tanta coisa. Vou em direção à porta do escritório. Roberta continuava sentada no mesmo lugar, passiva; estática. Não havia qualquer palavra que ela pudesse dizer; qualquer movimento que ela pudesse fazer. Nada mudaria nossa história. Saio do escritório, mas antes de fechar totalmente a porta, deixo o recado:

“Quando tudo estiver resolvido passo para assinar”.



4/24

A chuva está mais forte. Saio andando pela calçada até uma padaria que ficava ali perto. Era quase sete da noite, estava com fome. Pensei em falar com a Bruna, mas Roberta não saia da minha cabeça. Roberta, secretária do meu irmão; um dos meus maiores inimigos. Quer dizer, ele não é meu inimigo, pois não tenho qualquer sentimento por ele. Ela, que traiu minha confiança, ela que fez coisas que não devia. Ela que ainda não sai da minha cabeça. Ela que decidiu me esquecer no momento que eu mais precisava não ser esquecido. Ela que fez parte dos meus maiores sonhos, meus desejos mais incontroláveis; da minha pequena e inútil história.

Quero comer sozinho, ficar sozinho. Pensar na minha vida, sozinho.

Devo confessar que tenho medo das pessoas. Essa é a principal frase da minha vida, invariavelmente. Ela representa exatamente o que sou hoje. Diz também sobre meus sonhos. Quero uma casa no meio do mato, com uma plantação no quintal para o sustento. Uma casa com dois quartos e uma varanda. Não sei bem o que faria com a varanda, mas ela existira em minha casa. Um dos quartos ficaria vazio. Eu criaria pássaros, que dependeriam de mim, para alimentá-los, e algumas vezes trocaria a merda impregnada nas gaiolas. Prefiro a merda dos pássaros aos humanos. Esse é meu pensamento tão desordenado.

No entanto, vivo no meio das pessoas. Preciso delas. Mesmo que as odiando na maioria das vezes. Odeio pessoas velhas e pessoas novas. Odeio as crianças e suas perguntas quase sempre irritantes. Tenho certo apresso por mulheres mais novas, bonitas e delicadas. Mas o convívio com esse tipo de gente nunca ultrapassa dois dias. A partir disso somos obrigados a romper qualquer tipo de compromisso. Gosto também de alguns escritores, que entendem o que eu passo. Mas com eles o convívio é fictício, pois nos conhecemos apenas indiretamente e unilateralmente. Gosto de alguns amigos e amigas, mas percebo que eles não são tão essenciais assim: cada vez mais raros. Roberta foi a melhor pessoa em meu convívio, Bruna tem sido ótima.

Podem me chamar de qualquer coisa, mas nunca de uma pessoa má. Tenho um coração enorme, bondoso; mas muito angustiado. Acham que há exagero no que estou dizendo? Algum engano? As pessoas se odeiam e, em algumas situações, se admiram. Mas a admiração é perecível. A convivência é uma regra de sobrevivência, não por gosto. É necessário trocar meia dúzia de palavras com o vizinho dentro do elevador, bater um papo no boteco com um conhecido de muitos anos e dizer o quê está sentido para o médico. Todavia, agradecer o cobrador de ônibus, elogiar a secretária do seu chefe ou enaltecer a beleza de alguma garota, são atos desprezíveis e hipócritas; quase inúteis. Na maioria das vezes atos desnecessários.

(Estou amargurado, não ouçam tanto minhas palavras, há uma dosagem extrema de incredibilidade em tudo que eu digo).

Roberta olha pela janela enquanto eu saio do prédio. Se eu estivesse ao seu lado a abraçaria enquanto ela tentava segurar as lágrimas. Se eu estivesse presente, teria evitado tantas coisas. Mas não estou; não quero estar. Em mim agora apenas uma fome desaparecendo a cada mordida no sanduíche de queijo e presunto. Uma tentativa de esquartejar Roberta mentalmente, em cada volta do ponteiro do relógio; esquecendo sua existência mesquinha. Meu único pensamento no momento, pensamento jogado no ar para ninguém ouvir: Quero esquecer Roberta de uma vez por todas!


5/24

Nessa minha vida já me chamaram de tudo. Ranzinza é a palavra que eu mais ouço. Ranheta, apesar do mesmo significado, fica em segundo lugar. E várias outras palavras que prefiro deixar no local do esquecimento voluntário, perto de alguma área do cérebro onde são guardadas informações de mágoa, ansiedade e saudade. E, com sinceridade, não fico chateado com essas reclamações, pois as considero autenticas e verdadeiras. Sou mesmo um teimoso, mal-humorado, impertinente, rabugento e embirrento. Mas não podem me chamar de salafrário, picareta; mau-caráter. Não podem me chamar de corrupto, ladrão; contraventor. Não me podem chamar de larápio; espoliador.

Bandido, nunca.

É claro que não criarão nenhuma simpatia por mim, por todos os atributos que eu confirmo ter. Pior se eu chegasse aqui e dissesse, de forma enganosa e sedutora, que eu era uma pessoa fácil de lidar, que gostava dos barulhos dos pássaros. Que levava café da manhã na cama para namorada e que pensava em sexo como uma singela parte infinitamente menor do amor (ou maior, sei lá como querem encarar o sexo). Que eu falasse de mim como um ser romântico, querendo encontrar a alma gêmea (Talvez eu me tornasse um assassino se minha alma gêmea existisse e fosse idêntica a mim). Alguns querem de mim o final feliz que eu sei não ser possível. Mesmo assim, acho minha vida uma neurótica coincidência de fatos felizes.

E resumo: odeio as pessoas. Pelo que representam para mim, em suas mais diversas formas. Mais ainda, pelo que as pessoas em mim representam: o vacilo, a solidão, o descompasso, o abandono e a incompatibilidade. Foi num desses dias, de total desilusão, que eu encontrei e conheci Bruna. Dia em que estava muito irritado, depressivo e vencido; completamente derrotado. Um dia que, para qualquer pessoa normal pareceria absurdo; mas que para mim era algo muito natural, comum; cotidiano.

* * *

Era um dia terrivelmente barulhento. Mas era preciso enfrentar o vai e vem das pessoas, se esbarrando sem qualquer arrependimento. Bebo um gole de café e um pão com manteiga. Não costumo sentir fome na parte da manhã. Na verdade eu costumo me alimentar apenas uma vez por dia, lá pelas três horas da tarde. Não gasto energias, portanto, não preciso repô-las com tanta necessidade. Pois bem, tomo um banho rápido. Desço as escadas. O dia ainda estava escuro, tanto pelo horário como pelas nuvens de chuva que estavam se formando desde a noite passada. Chego ao ponto onde ônibus. Duas pessoas também aguardam. Um homem de cabelo branco e anéis de ouro e uma menina com roupa de ginástica.

O mundo faz barulho, descentralizado. Os sons saem de várias partes, podendo ser de carros, caminhões, bichos e pessoas conversando. Apesar de parecer um dia deserto, os barulhos dão dimensão de um planeta habitado. Passa um ônibus, não servia para nós. Vem outro, entramos. Sento-me no primeiro banco vazio que encontro, na verdade eram vários lugares. A menina com roupa de ginástica se senta ao meu lado, abre a bolsa e pega um livro pesadíssimo; gigante. Não tenho paciência para histórias longas. Eu olho fixamente pela janela, vendo a cidade passar em flashes. Viver sem vontade é um dos piores tormentos do ser humano. Eu não sentia nenhuma vontade.

“Você é meu vizinho?” – Ela começa.


6/24

Sábado e domingo mornos. Alguns filmes; terminei de ler um livro que tinha começado há meses. Bruna tinha ido visitar os pais, nos encontraríamos apenas na terça-feira. Ela já estava morando comigo há várias semanas. Estava calor; e, diferente dos dias anteriores, o Sol apareceu na minha sala (morrendo na janela da cozinha). Um resto de pizza na geladeira, pão velho; mas ainda macio. Leite tinha acabado. Misturei achocolatado com água e bastante açúcar. A insônia era terrível, mas não chegava a me torturar. Tudo passou lentamente. Dois dias sem fumar, dois dias sem beber. Alguma coisa em mim parecia mudado. Estava curado?

Bruna disse que minha morte era certa se continuasse vivendo como vivia antes de conhecê-la.

Segunda-feira. Nove horas da amanhã. Roberta em pé na minha frente. Três dias depois de nosso último encontro, ela me procura no único lugar que eu não queria que ela me achasse: meu apartamento. Ela entra. Está carregando uma pasta. Diz que meu irmão queria estar ali, mas ela insistiu para que ele ficasse no escritório. Assim é melhor, pensei. Ela fica no sofá do canto, onde Bruna costuma ficar nua. Bruna não está; eu disse. Está viajando.

“Os papéis, como você pediu”.

Espalho os documentos na mesa. São alguns contratos e algumas cifras, tantos e tantos números. Assino todos os papéis, sem notar quais os valores e o que estava escrito. Folha por folha. Não confiava em nenhum deles, nem no meu irmão. Também não confiava na Adriana e sua irmã, a Roberta. Mas não me interessava mais nada daquilo. Nunca me interessou. Nenhum dinheiro que eu pudesse perder ou ganhar. Devolvo os papéis nas mãos de Roberta. Não tinha pensando na hipótese de ficar com o dinheiro, mas alguma coisa me fazia pensar que precisaria dele num futuro não muito distante.

“Tem certeza que não vai ler o que está escrito?”
“Confio em vocês”.
“Tem certeza que não quer me ouvir?”.
“Tenho certeza”.
“Penso em você todos os dias”.
“Estou namorando agora, você sabe”.
“Ela é um passatempo, eu sei que é um passatempo”.
“Não é um passatempo”.
“Você confia em sua namorada?”.
“Ela tem mais motivos de não confiar em mim”.

Eu rumo até a porta, Roberta me segue. Vai embora com os documentos devidamente preenchidos. Minha relação com todo aquele pessoal parecia cancelado, encerrado; os papéis decretavam minha completa e irrestrita ruptura com aquele tipo de gente. Pelo menos eu pensava isso.

* * *

Bruna e eu no ônibus em nosso primeiro encontro:

“Outro dia eu escutei uma música vindo do seu apartamento”.

Eu não gosto de incomodar ninguém com meu barulho, por isso prezo ser um cara totalmente invisível. Surpreendeu-me a noticia daquela garota, de que tinha escutado uma música saindo do meu apartamento.

“Música? Bom, eu escuto música com volume muito baixinho”.
“Sim”.
“Talvez esteja me confundindo com outra pessoa”.
“Era você mesmo”.
“Ficou incomodada com a música? Posso abaixar o volume”.
“Qualquer dia nós escutamos músicas juntos”.

Ela sorri e desce do ônibus.



7/24

Os dias são solitários sem a Bruna. Querendo ou não, é a única pessoa no mundo que eu converso mais do que seis palavras. Toda tarde inerte no sofá. De repente da janela vejo um homem olhando em minha direção. Quem seria? Talvez um acaso. Ele olha insistentemente. Atravessa a rua em vem na direção do prédio. Só pode ser comigo. Um pouco mais de dois minutos o sujeito bate em minha porta. Abro sem qualquer receio. Não tinha medo de nada e de ninguém, exatamente por não possuir nada. Eu tinha apenas minhas lembranças.

“Posso entrar?”.
“Bom, na verdade eu nem te conheço”.
“Mas eu te conheço bem. Você é irmão do Fernando”.
“O que aquele cara aprontou dessa vez?”.

O sujeito puxa a carteira do bolso, era um policial.

Entramos.

“Preciso fazer algumas perguntas”.
“Estou à disposição”.
“Fernando foi encontrado morto esta manhã”.

O silêncio no meu apartamento. Por mais que eu não concordasse com uma porção de coisas em Fernando, ainda assim era meu irmão. Tudo bem, uma espécie de hipocrisia se apodera de mim, principalmente por ter imaginado que minha maior felicidade era vê-lo morto. Mas morto mesmo, de verdade? Aí era outra história. De relance lembrei quando brincávamos numa bacia de água, quando nossa mãe ficava desesperada com medo de ficarmos resfriados. Quando brincávamos de policia e bandido, e seu instinto já o levava a ser o personagem que no futuro tomou forma e cor. Minha mãe morta, agora Fernando. Minha vida tinha tudo para ser mais feliz.

“Como isso aconteceu?”.
“Ele foi encontrado dentro do escritório”.
“Tem algum suspeito?”.
“Aparentemente suicídio”.
“Suicídio?! Não, não pode ser”.
“Eu disse aparentemente. Sabe que seu irmão é um sujeito muito perigoso”.
“Não sei muito sobre ele”.
“Mesmo assim, tem alguma informação que possa nos ajudar?”
“Ele é muito ganancioso, é a única coisa que eu sei”.
“Ele encontrou com você? Pediu algum favor?”.
“Impossível”.
“Seu irmão tem muitos inimigos”.

Contei a história da herança e da visita de Roberta no dia anterior.

“Você sabe quais os itens do contrato?”
“Não li”.
“Não leu e mesmo assim assinou os documentos?”.
“Provavelmente uma ciência minha de que ele poderia ficar com tudo”.
“Seu irmão deu um golpe na organização criminosa criada por ele e pela sua mãe”.
“Já disse que sei pouco sobre meu irmão”.
“Suspeitamos que ele mandou dinheiro para paraísos fiscais. Essa coisa é um tanto complicada, sabe?”
“Não tenho nada com isso”.
“Ele  usou pessoas confiáveis para fazer isso”.
“Não sou confiável”.
“Mas foi inocente ao assinar os documentos”.
“Não tenho qualquer coisa com ele”.
“Roberta também desapareceu”.

Não passava por minha cabeça o quê poderia ter acontecido.

“Estamos vasculhando o apartamento da secretária do seu irmão”.
“Ele pode ter sido assassinado?”.
“Não excluo essa hipótese”.
“Ela pode ter alguma coisa isso?”.
“Não sabemos ainda. Mas achamos que ela pode ter deixado várias pistas”.
 “Não posso ajudar em nada”.
“Uma coisa eu tenho certeza: seu irmão não se matou”.




8/24

Bruna chega. Estou no sofá, a televisão desligada; tudo apagado. Andei pensando no meu irmão, em tudo que ele fez comigo; tudo que ele representava. Não estava comendo direito, nem dormindo. A Bruna na minha frente era como um anjo para me salvar; ou quem sabe um anjo para me levar para outro lugar. O disco no rádio tinha tocado a última música, mas estava com um problema sério: o braço não voltava automaticamente. A conversa com Bruna aconteceu com o acompanhamento chato e insistente do braço tentando se reerguer para posição normal. Eu estava tentando me reerguer, mas as notícias sucessivas me deixavam cada vez mais desanimado.

“Fiquei sabendo do seu irmão. Vim assim que pude”.
“O mundo não perdeu nada”.
“Não é possível que seja tão insensível”.
“Não adianta agora eu querer mudar a história”.
“Tente perdoá-lo, sabe que ele precisa de paz agora”.
“Não preciso perdoar ninguém, não acredito nisso”.
“É seu irmão”.
“Meu irmão morreu quando decidiu por esse caminho”.

Bruna me levanta do sofá, eu estava visivelmente mais magro do que da última vez que estivemos juntos.

“Você precisa de um banho”.
“Preciso de você aqui”.

Ela me leva até o chuveiro, me ajeita na mesa da cozinha; prepara uma sopa. Odeio sopa, mas confesso que tive prazer em cada colherada. A imagem do meu irmão na minha cabeça, quando brincávamos de guerra de legumes na mesa. Depois pensei na Roberta, me levando para o banho, esfregando meu peito. Bruna era linda, mas não tínhamos muito em comum, principalmente o sexo. Era uma coisa um pouco mecânica, sem sabor; mas ainda assim era bom. Sexo com uma garota como Bruna sempre será bom.

“O enterro será amanhã”.
“Não quero ir”.
“Sabe que é importante”.
“Não quero encontrar ninguém”.
“Que birra é essa?”.
“A família do meu irmão era a sua máfia.”
“Ele não tem mais ninguém agora, só você.”
“Fico triste por ele.”

Meu pai não foi ao enterro, por motivos óbvios ele estava distante do meu irmão e da minha mãe.

* * *

Roberta está em alta velocidade numa estrada de terra. Ninguém sabe como ela foi parar naquele lugar. Pelo rosto cansado parece estar dirigindo há vários dias. Ela está assustada, terrivelmente assustada. Fugindo? Existe algum motivo para ela estar fugindo daquele jeito? O carro passa por um buraco, ela tenta desviar de um bicho que apareceu de repente no meio da estrada.

Quase morrem.


9/24

Segundo encontro com Bruna. Ela tinha um olhar meigo, simples e inofensivo. Eu tinha acabado de terminar meu namoro conturbado com Roberta. Estava subindo as escadas em direção ao meu apartamento. Sempre a escuridão. Uma voz ao longe, uma voz suave; eu olho para trás e Bruna aparece.

“Debussy?”

Meus olhos brilharam. Depois de tantas decepções alguma pessoa conseguia entender o que estava acontecendo comigo. Uma pessoa que eu nem conhecia gritando o nome do meu compositor favorito. Foi um dos instantes que eu deixei de lado o quadro da minha vida para notar o rosto, a feição de quem estava vindo em minha direção.

“Conhece Debyssy?”
“Um pouco. Não é meu forte ainda. Prefiro Dvorak”
“Como pode comparar Debussy com Dvorak?!”
“Eu não estou comparando, só estou dizendo que prefiro Dvorak”

Eu fiquei pensando no que ela disse. Como alguém pode gostar mais de Dvorak do que Debussy? Bobagem. São personagens distintos, que pretendem a música de forma diferente. Eu o chamo de um eslavo clássico, como se fôssemos íntimos. Waldesruhe nos ouvidos tem uma coloração incrível, cheia de vida e otimismo. Tem uma excelente melodia, quase assustadora. Quem falaria mal de Dvorak? Bom. Ela deve saber mesmo o que disse quando faz sua opção. Mas eu continuo gostando do outro.

Se ela gostasse de Brahms eu criaria caso com a garota? Talvez não. Talvez aceitasse o convite para sentarmos em algum lugar, tomarmos conhaque e discutir música. Que ideia interessante essa de me apresentar como não sou. Eu que desisti da música, agora querendo discuti-la tomando alguma bebida. Dane-se a garota, não preciso dela.

Qual o seu nome? Bruna. Ela respondeu antes de entrar em seu apartamento.

* * *

Hoje estamos aqui, olhando o caixão do meu irmão sendo baixado lentamente. É a última vez que verei seu rosto. É a última impressão em minha memória. Tudo acabado: as brigas, as traições; o ciúme e o sofrimento. Uma das pessoas que eu mais amava e mais confiava, indo para um lugar desconhecido, que eu nem sei se existe; que eu não quero acreditar. Bruna segura minha mão, meus olhos vermelhos. Ela passou a ser a única coisa que me importava, mas eu sabia que seria por pouco tempo. Num canto isolado o delegado acompanhava tudo.

“Ainda não entendo como tudo aconteceu”.
“Parece ser um grande mistério”.
“Não estou satisfeito com minhas investigações. Acho que logo terei que tirá-lo daí”.
“Já não tem os resultados periciais?”
“Não sei, não sei. Tem coisa estranha nisso. É o meu faro”.
“Boa sorte com as investigações. Da minha parte tudo morre aqui”.

Jogo uma foto minha e do meu irmão, ambos no colo pelo meu pai.


10/24

O sol aparece timidamente. Eu que pensei que ficaria enclausurado dentro do apartamento o dia todo. Lembrei-me que tinha que trabalhar. Corro até a sala de aula, mesmo não estando atrasado. Assim evitaria contato com as pessoas no pátio ou nas lanchonetes. São duas horas de longas questões se formando em minha cabeça. Eu não aguentava mais aquilo, mas ainda era preciso, eu precisava de dinheiro. Intervalo: na praça eu como um lanche e um suco de laranja. A imagem de Bruna aparece na minha frente. Pela primeira vez, depois de vários dias; Roberta desaparece - Na verdade ela não tinha saído da minha cabeça, estava impregnada em algum lugar; como um fantasma na minha frente, roupão de banho; cabelos molhados.

Volto para casa. Vodca não é minha bebida preferida, mas era a única coisa que eu tinha. Encho o copo, olho fixamente para a bebida cristalina. Jogo na pia. Também estava cansado de vinhos importados. Os nacionais são péssimos, mesmo quando alguém tenta me provar o contrário. Tiro a garrafa do congelador, boto no copo. Tudo no ralo. Começo o preparo do almoço. Não tenho muitas coisas na geladeira, nem nos armários. Culinária mesmo é saber se virar com os ingredientes disponíveis. Vou experimentar certas fusões inimagináveis. Por mim tudo bem, já que serei o único que poderei adorar e odiar a comida. Nesse instante não existe música, nem pessoas em minha volta; nem bebida; só abstinência.

A comida estava boa, muito mais pela fome e pelo excesso de tempero. Lavo toda louça (que não era muita) e vou para sala. Eu estava começando a ler outro livro, mas naquele dia estava com preguiça. Além disso, eu já sabia o que iria acontecer com o personagem principal, pois tudo naquele autor era previsível. As coisas previsíveis me enchem de encanto em determinados momentos, em outros me causam tédio. Apesar de gostar de uma vida conservadora e monótona, não gostava de presenciar essa situação na ficção. Da mesmice já me basta a realidade.

Durmo na sala.

Bruna chega. O seu perfume é encantador. A noite estava bonita, brilhante. Não havia nuvens negras como na noite anterior. Bruna estava com uma saia preta e uma blusa azul marinho. Ela entra, nós nos abraçamos. Ela sabe que eu tenho algumas coisas me incomodando. Peço apenas para que me abrace; nós nos beijamos. Adoro sua contemplação, sua maneira de aceitar a minha condição infiel e desajeitada. Ajudando-me a tirar Roberta da cabeça, fazendo certa assepsia do meu coração. Bruna sabia que não existia mais ninguém na minha história; mas sabia que eu ainda amava Roberta.

Dvorak tem cerca de nove sinfonias. Particularmente prefiro a dois e a sete. Tem algo genial para piado e violino. Talvez Bruna gostasse da um e a nove. Não concordaríamos nisso, tenho certeza. Bruna sai do chuveiro. Está mais cheirosa ainda. Eu preparo alguma coisa para ela comer.  Quis falar sobre a herança, qual foi a minha decisão; mas achei melhor não tocar no assunto.

“Eu procurei alguma coisa de Debyssy”.
“Procurou?”.
“Você me fez pensar nisso”.
“Geralmente não perdemos tempo com as coisas que gostamos”.

A noite se alongou com um filme de terror e uma séria de inquestionáveis sonhos de nossa já habitual parceria.


11/24

Batem na porta. Eu saio da cama, ajeito Bruna delicadamente sem acordá-la. Vou em direção à sala. Continuam batendo. Do outro lado o delegado, mas dessa vez ele estava acompanhado de dois policiais. Peço para eles entrarem. Delegado Ademar diz que a conversa seria rápida. Ele diz que não conseguiu localizar qualquer publicação do contrato que eu havia assinado, onde supostamente havia renunciado toda e qualquer herança que teria direito por causa da morte da minha mãe. Sem localizar esses documentos assinados seria impossível descobrir a verdadeira razão de sua existência.

O caixão caindo, a foto do meu irmão: A única herança agora é minha paz.

“Descobrimos que tudo foi transferido para Roberta”.
“A herança?”
“Todo o dinheiro limpo das empresas, também o dinheiro sujo dos negócios”.
“Talvez o teor do contrato tenha sido a renúncia da herança”.
“É possível”
 “Roberta passou a movimentar todo dinheiro que era da sua mãe”.
“Tudo está resolvido: ela matou meu irmão para fugir com o dinheiro.”
“Não confirmo essa informação, pois acho que o seu irmão não está morto”.
“Mas responde a questão do homicídio, não?”
“Iremos reavaliar o corpo em três dias. Esse negócio é muito burocrático”.
“Supondo que dentro do caixão tenha outro sujeito?”
“Roberta e Fernando deram um golpe em todos vocês, herdeiros legítimos.”
“Meu pai também?”
“Sim”.
“Ele deve ter assinado os papéis”.
“Pior que o golpe em vocês é o golpe que eles deram na organização”.
“Para me dar um golpe não era necessário minha assinatura, certo?”.
“Com certeza. Mas o documento pode ter outra serventia”.
“Qual seria?”.
“Provar sua inocência”.
 “Como assim?”
“Pense: os bandidos estão eufóricos para acabar com todos os envolvidos no golpe.”
“Os papéis que eu assinei podem me ajudar?”
“Exatamente. Se você não quis qualquer dinheiro, não há motivo algum para te perseguirem”.
“Não pensei nisso!”
“Fernando e Roberta, se estão juntos nisso, quiseram ajuda-lo”.
“Meu Deus!”
“Mas me diga uma coisa: Qual a sua relação com Roberta?”.

Tinha medo de uma pergunta assim. Por incrível que possa parecer, poucos sabiam que éramos namorados. Sabiam menos ainda sobre nossa separação. Roberta era uma situação no passado, que eu insistia em querer estrangular; deformar e sufocar. Como um quadro colorido, que recebe um jato de tinta preta; misturada com acetona e álcool. Um quadro deformado e inútil. Um quadro indefinido, rasgado; como um quadro que caiu da mudança e foi abandonado perto de um bueiro, cheio de ratos e esgoto ao céu aberto. Roberta não era a questão que eu queria responder naquele momento.

“Fomos namorados”
“E o que aconteceu?”
“É necessário mesmo responder esse tipo de pergunta?”
“Tudo pode ajudar”.

Bruna aparece na sala. Apenas cumprimenta todos os presentes e vai direto para a cozinha. Pergunta se alguém quer um café. Respondem negativamente. Então ela volta para o quarto. Um detalhe impressiona: Ela está totalmente nua. Bruna sofria de sonambulismo? Podem pensar isso - Mas não é isso - Não é nada de anormal com ela; nada que eu possa explicar. Talvez ela não tenha notado a presença dos policiais, talvez ainda estivesse dormindo. Talvez eu não saiba os motivos.

“Melhor termos esse tipo de conversa em outro lugar” – Diz o delegado.
“Eu gostaria, acho mais apropriado”.
“Assim que o corpo for analisado, eu mando notícias”.

* * *

Roberta chega até o hotel. Alguém aguarda sua chegada.


12/24

Volto para o quarto. Bruna estava sonolenta na cama. Lembrei quando Roberta insistia em dormir no meu apartamento. Ela acordava mais bonita ainda. Seus olhos brilhavam. Não entendo o motivo de ter feito aquilo comigo, mas já disse que é passado. Bruna cheirava algo doce, puro e delicado. Meus braços esticados, eu agarro o seu corpo ainda na cama. Ela queria um pouco mais de mim. Teria. Naquele momento ela teria de mim o que há de inteiro, de correto; verdadeiro e físico. Teria mais: teria minhas sensações. Minha vibração; meu coração pulsando. Minhas mãos frenéticas e incansáveis. A pior forma de traição era aquela: o corpo entregue e a mente viajando pelo cosmos, procurando o verdadeiro amor.

Onde estará Roberta?

“Você gosta só de música clássica?” – Bruna me acorda com alguns beijos esparramados pelo corpo.
“Bom, ficaria surpresa se eu dissesse que sim?”
“Meu pai, quando era vivo, adorava música.”
“Gosto de vários tipos de música”.
“Eu trouxe Caetano”.

Não queria discutir com Bruna a questão da música. Estávamos vivendo muito bem todo esse tempo. Mesmo assim, por tudo que ela tem feito por mim, decidi fazer sua vontade. Não era tão difícil assim, apesar de parecer impossível em outras épocas. Nunca pensei que uma música como aquela pudesse tocar em meu apartamento. Também não perguntei mais nada sobre o pai de Bruna, pois assuntos familiares são comprometedores; remete-nos a uma intimidade da qual não estava preparado.

“Seu pai gostava de música? Que bom. Deve ter aprendido muito com ele.”
“Muito mesmo. Ele não gostava apenas de música clássica, gostava de compositores brasileiros da música popular brasileira, chorinho; até de rock ele gostava.”
“Fico surpreso. Quando educamos nossos ouvidos não conseguimos mais presenciar tamanho despautério que comentem com a música em geral.”
“Você fala assim, mas eu tenho quase certeza que nunca parou para ouvir música brasileira.”

Separo Rossini. La Cenerentola. Não é a mais conhecida ópera, mas é a que mais me excita hoje em dia. Talvez os menos avisados conheçam a Il barbiere di Siviglia, conhecido O Barbeiro de Sevilha. Começa a tocar. Bruna encosta no meu ombro, escutamos a música até o final. Manhã bem cedo. Acordo e saio sem acordar Bruna. A aula foi calma e não me deixou deprimido - Não sei qual o motivo de sonhar tanto com as aulas de quando eu era mais jovem – Durante o exercício eu fico pensando no meu irmão, na Roberta; mas apenas Bruna me dá a força necessária para continuar sobrevivendo. Esse era o problema: Bruna não vai durar para sempre. Ainda não tenho tanta certeza sobre o amor que estamos vivendo: posso amar Bruna?

Estava sem fome, portanto não precisaria ir até a cozinha preparar uma comida cheia de tempero, despistando o paladar confuso das misturas. A campainha toca, eu me levanto do chão. Curiosamente gosto de escutar ópera deitado no tapete, com a cabeça abaixo do lustre pesadíssimo. Torcendo em alguns momentos para que ele caísse em minha cabeça bem no meio de uma apresentação. Bruna não estava no apartamento.

13/24

Quando Bruna está longe eu não consigo deixar de pensar na Roberta. Estava realmente preocupado com tudo que estava acontecendo. Será que ela matou meu irmão para ficar com todo o dinheiro? Será ela vai entrar por aquela porta, pedindo desculpas; perdão; se jogará no chão pedindo que eu fuja com ela? Tenho delírios quando não bebo e quando não fumo. Mais de duas semanas sem cigarros. Onde escondi o meu último maço? Bate o desespero. Estou com saudade; sinto Roberta tocando em meu corpo, me levando até o chão, tapete macio. A música para. Para qualquer tipo de saudade ainda não inventaram remédio.

Depois de duas horas Bruna chega. Ela parece sentir o perfume de Roberta, mesmo assim não diz absolutamente nada. Bom, ela não sabe como é o perfume da Roberta. Ela nem conhece a Roberta. Diz que está com fome, procura alguma coisa na cozinha. Eu saio do tapete, vou para o sofá. Pego o livro que havia começado há uma semana. Acho que é mais fácil conversar comigo quando chega à noite. Fico mal humorado de dia.

 “Você jantou?” – Ela me pergunta.
“Estou sem fome.”
“Trouxe Chico”.
“Chico Buarque? “Banda”? Muito chato”.
“Trouxe algumas coisa do Djavan”.
“Quer escutar agora?!”.
“Eu vou mostrar composições interessantíssimas”
“Como alguém pode gostar de Dvorak e Chico Buarque?!?!”

Sobrou desse nosso desencontro
Um conto de amor

Ficamos juntos, ouvindo a música. A ansiedade dos primeiros encontros, que geralmente acontecem com casais apaixonados, foi diluída de uma maneira natural. De repente estávamos nos beijando, como se já nos conhecêssemos há muito tempo. Ouvindo uma música que eu não gostava. Beber vinho nacional que eu odiava (ela pegou a garrafa em seu apartamento pouco tempo antes)?. Em breves momentos nossos corpos unidos, em movimentos impensados, cansativos e repetitivos. Os copos ficaram cheios em cima da mesa, não bebemos nada, como eu havia prometido.

As óperas são famosas pela dramaticidade. Para leigos, quase sempre ela representa o sofrimento de algum personagem. Um drama, eu diria, nem sempre é coisa alegre. Mas também não podemos dizer que óperas são coisas tristes, para pessoas infelizes. Bruna está junto comigo na cama, dormimos juntos. É questão de tempo ela se enojar do meu temperamento, ir embora para sempre. Tantas pessoas que fizeram isso, que não será nenhuma novidade esse acontecimento. Com o tempo apreendemos a lidar melhor com as perdas. 

Eu sei que pareço um velho chato, geralmente as pessoas dormem quando eu começo a falar. Todavia, deveriam se manter acordadas, evitando um pesadelo desnecessário. Comprovadamente existem mensagens subliminares em qualquer tagarelice do cotidiano, por isso quase sempre ficamos sonolentos com pessoas chatas.

(É como se elas nos dissessem, insistentemente: “Durma! Nem eu aguento esse papo!”).

Bruna acorda.

14/24

Roberta sobe as escadas do hotel. Estava com um papel na mão, indicando o endereço e o quarto do encontro. Ninguém na recepção, por sorte ou azar. Ela bate duas vezes na porta, espera alguns minutos. Um sujeito abre a porta, ela entra. O outro sujeito está no banho. Ele deixou a porta do banheiro aberta. Roberta coloca uma pasta na mesa, puxa alguns papéis. Fernando aparece depois de alguns minutos com uma toalha enrolada no corpo.

“Trouxe o que eu pedi?”
“Tudo aqui, conforme suas instruções”.
“Alguém suspeitou de alguma coisa? Viu alguém te seguindo?”
“Não, ninguém, nada”.
“Meu irmão? Como ele está? Suspeitou de alguma coisa?”
“Que nada, nem olhou para o caixão”.
“Ele não reconheceria o cadáver”.
“O pagamento em dinheiro para aquele médico, tudo está perfeito”.
“E sobre você?”.
“A polícia esta me procurando”.
“O que eles acham?”
“Que eu dei um golpe em você, coisa do gênero. A hipótese do suicídio já era. Um absurdo!”.
“Deixou as pistas como indiquei?”.
“Sim”
“Eles correm riscos?”
“A polícia já descartou o envolvimento do seu irmão em sua morte”.
“Meu medo não é a polícia”.
“Demo Duarte também já sabe que seu irmão e seu pai não receberam nenhum dinheiro”.

Dois tiros derrubam Roberta no chão.

* * *

Queria contar a verdade para Bruna, que ainda estava apaixonado por Roberta. Queria contar que estava tudo muito estranho em relação à morte do meu irmão; que existia uma suspeita dele estar vivo. Queria contar a verdade sobre o suposto suicídio. Queria contar sobre minha mãe, sobre meu pai. Queria trazer Bruna para mais perto de mim, que ela me ouvisse, que saíssemos nas ruas de mãos dadas. Queria levá-la para jantar, depois assistir um filme no cinema. Qual a relação que eu queria agora com a Bruna? Será que ela suporta saber da minha paixão? Será que é preciso? Sinto uma dor no peito, sinto uma angústia; sinto que a mentira me faz um mal que eu não consigo compreender. Queria poder amar Bruna, queria que ela viesse morar comigo para sempre (meus dias estavam tão solitários). Queria que Bruna respondesse minhas perguntas, tão filosoficamente elaboradas para não serem compreendidas. Queria ser uma pessoa diferente para Bruna.

Bruna merece um sujeito como eu, mas estou longe de ser o sujeito ideal.

* * *

Fernando e seu capanga pegam os documentos na mesa e colocam dentro de um envelope. Partem em direção ao carro. Roberta no chão, sangrando como uma galinha decapitada, um bicho qualquer. Descobririam Roberta depois de alguns dias, quando o cheiro insuportável começou a incomodar alguns hóspedes. Por ironia, ela foi descoberta por um casal que estava ali passando a lua-de-mel. Eles nunca quiseram ter filhos.

Outra pessoa surge novamente no meio disso tudo: Adriana, esposa do Fernanda e irmã de Roberta. Ela sabia de todo o plano, e com seu aval ele estava sendo colocado em prática com maestria e frieza. O pensamento deles era fugir para outro país, assim por diante, até conseguirem a paz.

Pelo menos Fernando pensava que o plano era esse.



























15/24

Queria perguntar sobre Bach, Saint Saens, Bach, Beethoven, Rossini,Brahms, Berlioz, Handel, Villa Lobos, Vivaldi , Haydin, Lizt, , Tchaikovsky ou Mozart. Mas a conversa seria impertinente para naquela hora da manhã. Pergunto se ele quer um café forte, estava com cara de ressaca. Café forte é um ótimo remédio. Ela apenas sorri, vira-se e dorme novamente.

Eu estava cansado de tudo: um cansaço extremo. Cansado de pensar nas coisas. Cansado de conversar sobre música. Cansado de pensar na música como a única coisa que poderia me fazer feliz um dia. Cansado do meu trabalho. Cansado das pessoas me perguntando coisas. Lembro-me das aulas, quando eu era aluno. Hoje eu sou professor. Arredio e exigente; características que as pessoas de hoje não mais toleram. Admito que também ser mais intolerante; e que acabo odiando a humanidade por causa disso.

Em momentos eu sei que a humanidade não é responsável pela minha felicidade.

 “Estou com sono, mas preciso ir” – Ela diz.
“Mais alguns minutos”.
“Não sei se foi certo ficar aqui tantos dias”.
“Não pense nisso agora”.
“Acha que fizemos alguma coisa errada?”
“Precisamos de um café forte, um pão quente; só isso”.

Levantei.

A padaria fica a poucos metros. Comprei o necessário. Preparei um café da manhã confortante, mas não luxuoso. Comemos. Não trocamos mais nenhuma palavra. Absolutamente nada. Estamos distantes, numa distância natural. Não nos conhecemos, afinal. “Qualquer dia desses nos vemos” – Ela poderia ter dito no meio da refeição. Não disse. Bruna estava gostando de mim, e cada aproximação minha, ela ficava com mais medo. Isso parecia uma coisa normal para um casal tão diferente, antagônico e por vezes esquizofrênico.

“Well I don't go to church on Sunday
Don't get on my knees to pray
Don't memorize the books of the Bible
Got my own special way
I know Jesus loves me”

Bruna, eu não gosto apenas de música clássica; cansei de repetir.

* * *

Fernando, Adriana e o capanga em alta velocidade. Ninguém suspeita que eles estejam carregando dados que são chaves para uma fortuna; tanto dinheiro num pequeno envelope pardo e cheio de números.

* * *

A suspeita do Delegado Ademar se confirma: Eu não tenho nenhuma relação com o lado criminoso de Fernando, nem mesmo com Roberta; com quem tive um relacionamento amoroso. De algum modo, a cópia do contrato localizado no apartamento, em que eu dizia não querer nada da minha mãe não tinha o menor sentido de existir. Exceto nas investigações: meu nome, a partir dali, seria esquecido para sempre. O delegado pegou todo documento das investigações realizadas sobre mim e colocou dentro de um envelope todo rabiscado. Pediu para o assistente arquivar, dizendo logo em seguida:

“Esse sujeito não tem onde cair morto”.
“Pode um homem renunciar uma herança ilegal?” – Um policial novato pergunta ao delegado.
“Talvez a renúncia não sirva para nossa justiça comum, mas para a justiça deles; os criminosos”.

A insistência para que eu assinasse os papéis era um pretexto usado por Fernando para poder me encontrar? Ou ele nem soubesse disso, e que aquela exigência toda era apenas uma forma de Roberta se aproximar? Delegado Ademar confidenciou a policiais que esse pequeno deslize de Fernando (ou de Roberta), forjando um documento tão inutilmente infantil, poderia levantar ainda mais suspeitas sobre mim. No entanto, em relação ao meu nome, o caso estava encerrado completamente encerrado. Pelo menos naquela delegacia.




16/24

Estou andando pela rua, sem destino. Queria olhar o mundo e as coisas em sua volta. As ruas de domingo não ficam tão abarrotadas. Não encontro com  ambulantes, nem tantos assaltantes. Paro na praça, tento reorganizar minha vida. Não é uma fase muito fácil, mas eu sei que existe uma saída. O resumo principal dessa minha tristeza não é apenas a questão amorosa com Roberta; mas a questão existencial com meu irmão morto; principalmente com minha mãe.

Continuo andando, e de repente estava a quase duas horas distante do apartamento. Bruna ainda estaria dormindo? Penso na Bruna como uma amiga, uma companheira; alguém com quem eu possa conversar; jogar papo fora; e discutir todos esses assuntos que tanto me incomodam. Eu pensei em levar a vida com menos sofreguidão, ser mais hedonista, encontrar mais prazer nas coisas. Nas mínimas coisas. Acho que isso só acontece quando sofremos um choque, uma perda; uma ruptura brutal com nosso antigo eu.

Preciso da morte, da ruptura; renascer agora mesmo.

Ando me desviando de assuntos sérios, parece. Bruna seria um objeto da minha nova existência. Vejamos o seu exemplo: namorando um cara mais velho, que não é bonito (mas também não é feio), que não tem muito dinheiro; e que vive reclamando.  Meu corpo não é atlético, não falo outras línguas; conheço poucos lugares no mundo. As mulheres odeiam homens reclamando, pois não suportam conviver com homens fracos. Bruna me ama, pois, possivelmente tenho alguma coisa interessante.

* * *

Eles param para colocar gasolina. Fernando estava no banco de trás com Adriana, resolvem revezar a direção. Ganhariam mais disposição, e consequentemente mais tempo. Pretendiam chegar à fronteira na tarde do dia seguinte. Eles comem alguma coisa, Fernando checa alguma coisa no celular. O envelope com as senhas está no porta-malas, junto com algumas roupas e armas. O capanga não sabe qual será o seu fim, no entanto acompanha o casal. Em sua cabeça surgia à imagem de uma traição: Fernando iria se livrar dele assim que pudesse.

Quais as garantias de que Fernando não o mataria também, assim como fez com Roberta? Pode confiar na Adriana? Uma mulher que planeja a morte da própria irmã é capaz de qualquer coisa. Eles saem do posto de gasolina. Fernando agora está no volante, Adriana no banco da frente e o capanga dormindo no banco de trás. Seus sonhos eram pesadelos, pensando num tiro que poderia acontecer de uma hora para outra, vindo de alguma arma do Fernando ou da Adriana.

Felizmente o crime comporta uma ética discutível e injusta.

“Só não entendi o motivo de querer ajudar seu irmão”.
“Com tudo que passamos, ele ainda é meu irmão”.
“É uma besta”.
“Não fale assim dele”.
“Vai me bater por causa disso?”.
“Apenas quero que o respeite”.
“Não entendo esse seu joguinho”.
“Não precisa entender”.

Nunca quis o dinheiro do crime, mesmo quando preciso utilizá-lo.  


17/24

Delegado Ademar chega em sua casa. Sua mulher grávida de alguns meses está esperando no portão. Ele guarda o carro. Discute com a mulher sobre ela ficar ali esperando, em épocas de violência e crimes. Pediu que ela ficasse dentro de casa, trancada; principalmente quando o movimento da rua começasse a diminuir, facilitando os pequenos criminosos, ladrões de televisão e rádios; dinheiro para drogas e bebidas.

Diante dele passa a imagem de Fernando e a história de um verdadeiro criminoso. Alguma coisa estava confusa em tudo aquilo. Desde a morte, do corpo; e de tudo que envolveu o inquérito. Não confiava nas pessoas envolvidas; nem no médico; nem em qualquer pessoa que tivesse participado diretamente ou indiretamente daquele suicídio. E se foi um homicídio? Dúvidas em sua cabeça não o deixavam dormir. Levantou-se e cobriu sua esposa. A temperatura tinha caído drasticamente naquela noite.

Duas horas da manhã ele recebe um telefonema de um amigo: Roberta foi encontrada morta. Outra informação mudaria todo o rumo das investigações: Fernando não estava morto, no seu lugar um indigente qualquer. Delegado pula da escrivaninha, quase acorda a esposa que estava sonhando. Fernando fugiu com todo dinheiro, usou Roberta e depois a matou. Essa era a hipótese mais provável. Ele quis me ligar no mesmo instante, mas estava demasiadamente cansado. A esposa também se contorcia na cama, logo precisaria correr para a maternidade.

Mais sensato era aguardar até que todos estivessem acordados.

Fernando era um cara poderoso. Sua organização criminosa tinha negócios com grandes empresas; desde transportadoras até indústria da pirataria. Roupas, remédios; comida; e jogos. Fernando conhecido como Polegar. Chefe de uma organização que começou com sua mãe, Dona Sônia ou Tia Sônia. A morte da matriarca causou um reboliço enorme entre os líderes. Alguns diziam que o Polegar deveria ser o sucessor, algo natural. Outros acreditavam que Demo Duarte era o cara que colocaria a empresa no rumo certo. A organização havia perdido espaço em vários setores, principalmente a ligação com os políticos.

Na cabeça de Fernando tudo estava resolvido: Se ficasse no lugar de sua mãe ele seria assassinado. Resolveu armar um golpe, tirar o dinheiro da organização; fugir dos caras. Para isso ele pediu ajuda de um sujeito misterioso, um tanto enigmático; mas que tinha conhecimento e poder no submundo do crime organizado. Com o pacto feito começaram a ação. O plano era minucioso e Roberta era a figura principal. Fernando só não contava com a traição de Roberta e o acordo que ela fez com o seu principal inimigo.

* * *

Do outro lado da cidade Bruna dormia em meu colo. Ela estava triste, pois estava decidida a fazer uns exames médicos. Estava incomodada com uma porção de coisas que estavam acontecendo: mal-estar repentino, dor de cabeça; estômago embrulhado. Ela não estava grávida, me garantiu. Eu alisava seus cabelos longos e macios. Enrijecia-me o corpo, sensibilizando todas as áreas nobres que ela por ventura tocasse. Seria um ótimo sexo, se ela não estivesse tão triste. Eu tento umas palavras de conforto, mas inutilmente ela continua cabisbaixa.

De repente o delírio: Roberta entra na sala com os papéis que eu devo assinar.

Eu a acordo delicadamente. Ela vai para meu quarto. Eu pego uma roupa e decido sair. Não estava com sono, e se ficasse naquele lugar eu ficaria maluco. Pego uma cerveja na geladeira. Não bebo cerveja, e acho que os efeitos que ela poderia me causar são demorados. Saio do apartamento, pego o elevador. O porteiro me olha com estranheza, não sou um sujeito que tem hábitos noturnos. Ele abre o portão. Ali eu percebo que já são mais de onze horas da noite. Pego o caminho inverso daquele que eu costumo andar, eu precisava encontrar uma pessoa. Jogo a latinha de cerveja no primeiro lixo que encontro: não bebi nenhum gole

Pouco mais de vinte minutos eu entro numa rua sem saída. A casa que estou procurando é a última do lado direito, com paredes esverdeadas e janelas antigas. Bato palma. Uma luz acende. Da pequena portinhola da janela um sujeito aparece: cabelos brancos, olhos cansados; um sorriso amarelo. Meu pai me atende, entramos:

“Está precisando de dinheiro?”
“Acha que eu venho aqui só para pedir dinheiro?”
“Quase sempre” – Ele sorri e me abraça.
“Dessa vez o senhor está enganado”


18/24

Os olhos do meu pai brilham. Preciso contar os últimos acontecimentos, mas tenho medo da reação dele. A verdade ainda é o melhor remédio, ele me diria, se ele pudesse ler os meus pensamentos. A relação não era nada agradável entre meu pai, minha mãe e Fernando. Conto que o seu filho está morto, mas prefiro não entrar em detalhes. Ele se levanta com dificuldade, caminha pela sala de forma lenta. Eu apenas observo, sem muito dizer.

“Espero que ele encontre finalmente a paz”.
“Eu rezo por isso, meu pai; mas não posso dizer que confio”.
“Deus olha a todos os filhos da mesma forma, pois ele é um pai sereno”.
“Fernando nunca foi uma boa pessoa”.
“Aos olhos de Deus tudo é possível”.

Ele caminha até a estante onde uma Bíblia enorme está aberta em Salmos. Ele olha fixamente para as páginas enigmáticas, faz o sinal da cruz e volta tranquilamente para o sofá onde estava agora pouco. Eu seguro sua mão, eu sei que ele está sofrendo; mas ao mesmo tempo sei que sua fé, sua confiança; sua esperança; sempre o ajudaram em momentos tão dolorosos.

“Queria que você acreditasse apenas um pouco”.
“Sabe que isso é impossível, não é?”.
“Queria poder ajudá-lo com esse coração tão angustiado”.
“Não pode me ajudar; mas entenda que não é culpa sua”.
“Eu te olhava, ainda criança, aqueles seus olhos de esperança; sempre acreditei que você seria um homem melhor do que é hoje”.
“Eu não faço mal a ninguém, você me ensinou isso”.
“Mas não te ensinei a não fazer mal para você mesmo”.

Ficamos ali assistindo um filme em preto e branco. Ele me contou sobre a visita de Roberta, trazendo alguns papéis relacionados à morte da minha mãe. Assim como aconteceu comigo, ele também não suspeitava de absolutamente nada. Alguns minutos foram suficientes para ele dormir. Eu ajeito suas pernas no sofá, jogo um cobertor em suas pernas cansadas. Saio sem que ele perceba.

“Quando sair, não é necessário apagar a luz” – Ele me disse tantas outras vezes em que a mesma cena se repetia.

* * *

Delegado Ademar chega até a delegacia. Todos estão eufóricos com a reabertura do caso. Afinal de contas, Fernando era um sujeito conhecido; e isso era sucesso garantido até para os crimes mais óbvios. Polegar reconhecido como criminoso, chefe de uma organização poderosa. Como estaria a disputa pelo poder? Não era problema dele. Naquele momento ele queria mesmo era resolver o caso.

“É notório que estamos numa situação intrigante” – Ele começa a falar com os policiais.
“Já falou com o juiz?”
“Está tudo certo”.
“Vamos caçar o sujeito!”

* * *

Demo Duarte fica na frente do meu apartamento durante algumas horas. Olhou para os outros dois bandidos que o acompanhavam. Passou por sua cabeça invadir meu apartamento e me dar dois tiros. Depois pensou em atirar dali mesmo, onde estava. Seria muito mais prático. Mas a verdade é que ele não tinha nada contra mim, muito menos contra Bruna. Da janela ele via os vultos de um lado para outro. Segura a arma com uma das mãos, pensa num tiro certeiro; mas logo em seguida desiste.

“O cara não viveria nessa espelunca”.
“Lugar horrível”.
“Acho que ele não recebeu absolutamente nada”.
“Quem enviou aquela papelada para nosso escritório?”.
“Que importa isso agora?”.
“Polegar se preocuparia em inocentar o irmão?”

Não me mataram.

19/24

Bruna continua dormindo. Estou sem sono. Na sala procuro alguns discos, coisas que não tenho ouvido ultimamente. Villa-Lobos? Número 4. Brahms? Sim. Não estou querendo escutar ópera. Segunda sinfonia. Deito no chão, olhos apertos e atentos nas figuras imaginárias no teto branco e descascado. O sono não chega facilmente, eu estava me sentido muito estranho por causa da ausência do cigarro e da bebida. Um vulto passa por mim, vai até a cozinha. Bruna nua e sua pele branca; seus olhos claros e seus cabelos soltos. Ela não está mais triste, aparentemente. Pensei em chamá-la, ela ficaria comigo na sala; mas desisti. Ela estava cansada, iria fazer exames médicos logo pela manhã. Bruna, vinte e nove anos; alta e feliz; dormindo suavemente enquanto andava pela minha casa. Estou satisfeito com tudo aquilo.

Ma mi ha insegnato a non fare del male a me stesso – Meu pai olhando fixamente para o crucifixo na parede. Nunca soube o que ele queria dizer com aquilo.

Carmina Burana, Orff. Não é a melhor coisa; mas é tão conhecida. Sucesso nas carreiras mais deselegantes; nos momentos mais depravados; homens derrotados. Trilha sonora de incrédulo, maldito e podres coitados. Alguns conhecem apenas uma parte da cantata. Para quem não sabe, cantata é diferente de sonata, exatamente por valorizar mais o canto que os instrumentos. Oh! Fortuna! Parece que pela fortuna tudo andou acontecendo na minha vida: eu me desviando inutilmente dos apelos sinceros do dinheiro. “O fortuna, Velut luna, Statu variabilis, Semper crescis, Aut decrescis; Vita detestabilis, Nunc obdurat Et tunc curat”.

Bruna me acorda, ela tinha feito café e o pão estava na mesa.

“Vai me desejar sorte?”.
“Você tem toda sorte do mundo”.
“Não quis dormir comigo? Meus pés estavam gelados”.
“Estive com meu pai, falei sobre Fernando”.
“Qual foi a reação dele?”.
“Rezou”.
“Pediu para ele rezar por mim também?”.
“Pedi, claro que pedi” – Estava mentindo para Bruna. Nem lembrava o exame.
“Acho que os anjos estão comigo”.

Bruna sai.

* * *

O capanga estava cansado, exatamente por isso ele não conseguiu ficar vigilante todo o tempo que Fernando dirigia. Ele pega no sono. Eles já estão há duas horas do encontro com o sujeito que conseguiu toda documentação para a saída do país. Daqui a duas semanas estarão na Alemanha, Itália e Bélgica. Adriana e o sonho de se casar em um desses países.

“Quem afinal é a Bruna?”.
“É a namorada do meu irmão”.
“Você passou a grana para uma pessoa que nem conhece?”.
“Se ela mora com meu irmão, deve ser confiável”.
“Não tem medo que descubram alguma coisa?”.
“Só descobrirão se eles mesmos contarem”.
“Eu fico me remoendo por causa disso. Era um bom dinheiro e você jogou no lixo!”.
“Meu irmão, já disse”.

Não haverá casamento em nenhuma parte do mundo, mas talvez exista uma grande festa.



20/24

Minha cabeça não estava funcionando direito. Estava confuso e cansado. A aula acaba. Último dia de aula do semestre. Terei tempo para reorganizar minha vida, pensar em Bruna. Bruna estaria doente? Resolvo encontra-la na porta do laboratório onde ela faria o exame. Nem tudo ocorre como quero. Uma reunião de professores me prende por mais tempo que eu esperava. Cintia falava horas sem parar, mas nunca chega a lugar nenhum. Era praxe reclamações, bocejos e tempo perdido em suas palestras. Litros de café. Dor de estômago em ouvir tanta petulância. Enfim, era uma pessoa tão desagradável quanto eu.

No apartamento preparo alguma coisa para comer. Bruna chega cansada. Ainda tem a cara triste. Provavelmente os resultados dos exames não foram boas notícias. Quando estava se arrumando, antes de sair de manhã, tinha uma cara confiante; a sensação de que tudo iria dar certo. Bruna descansa no sofá da sala, olhar apático e uma voz distante; parecia não ser a Bruna que eu conhecia. Falei sobre o almoço, perguntei algumas bobagens sobre o dia; mas não tive coragem de perguntar sobre sua saúde. Era notório que tudo estava muito ruim.

Naquele mesmo instante o delegado me liga dizendo que tinha informações importantes sobre as falcatruas de Fernando. Eu não estava interessado se acusariam meu irmão, morto e enterrado. Minha única questão a ser resolvida era sobre Bruna. Mas ele continuou o assunto: Depois do processo burocrático eles iriam tirar Fernando do caixão. Com certeza ainda estaria inteiro, sorriso largo e todos os dentes na boca. Fernando que não parecia ser mais o meu irmão, pois tudo indicava que, naquele momento, ela já não era. Estava arriscando minha vida com completos desconhecidos? Um morto exumado, uma garota sem vida?

Preciso de um cigarro.

* * *

O capanga morto foi descoberto por um grupo de índios. Eles se preparavam para uma batalha com a polícia por causa da invasão de suas terras. O capanga estava com o rosto esfolado, um tiro no meio da testa. Fora empurrado por Adriana enquanto o carro estava em alta velocidade. Os policiais trocaram tiros com os índios, achavam que assim vingariam a morte de mais um homem branco.

Os índios foram considerados culpados pela morte do capanga, naquele tribunal aberto onde todos pareciam ter razões para que a batalha não acabasse.

* * *

Bruna dorme na minha cama. Ela estava doente, precisaria de cuidados médicos; um tratamento intenso e sofrível. A pior notícia possível. Além disso: um tratamento demasiadamente caro. Pensei em chorar, pensei em rezar; pensei em mais uma vez procurar meu pai. Pensei em tudo isso, mas não fiz absolutamente nada. Pensei no dinheiro que eu deixei de lado, pensei nos papéis que assinei. O dinheiro imundo de Fernando poderia me ajudar a salvar Bruna. Uma sinuca; uma bravata interna; meus egos se digladiando. Meu mundo correto desabando pela doença incorreta de Bruna. Tudo parecia acontecer na hora errada.

O fim justifica o meio: livrar-me da herança maldita pode ter sido a pior decisão em minha vida; poderá ser essencial para a morte prematura de Bruna.





21/24

A morte de Roberta me chocou. Na verdade fiquei mais chocado pelo modo como fui avisado. Poderia saber tudo pelos jornais, que não cansaram de falar sobre as desgraças sucessivas com o Grupo Feero. Primeiro a investigação sobre sonegação. Depois a morte trágica de um dos sócios, Fernando; que foi encontrado pendurado na porta do escritório. Fernando que poderia não ser o Fernando. Depois tudo que falaram sobre a falência; a demência de Dona Sônia; minha mãe. E por último esse acidente com Roberta, secretária do meu irmão. Havia algo no ar me dizendo que era extremamente perigoso ficar perto desse pessoal. Então, poderia a manchete me falar sobre Roberta; mas foi o próprio delegado quem me ligou. Ele sabia muito mais do que imaginavam os jornalistas, e queria alguma espécie de informação que julgava que eu soubesse. Lembro-me de Fernando colando numa prova de física, lá no colégio onde estudamos; mas de resto não posso dizer mais nada sobre ele. Era um sujeito estranho para mim.

A verdade é que eu não sabia que Fernando era pior do que eu imaginava.

Encontrei como delegado num boteco sujo no centro da cidade. Eu disse que ele precisava ser breve, pois estava com uma pessoa doente em casa. Ele me contou tudo que tinham descoberto nessas últimas semanas de investigação. A única coisa que ele ainda não sabia era sobre o capanga de Fernando, cujo registro como empregado ou qualquer informação pessoal nunca existiram de fato.

“Descobrimos que seu irmão está vivo”.
“Como assim? Vi o sujeito morto, enterrado”.
“Não era seu irmão”.
“Impossível”.
“Sabemos que ele fez tudo isso para fugir com a esposa, Adriana”.
“Não pode ser, ele estava no caixão, todos viram. E os médicos? E os documentos do falecimento?”
“Tudo forjado”
“Não acredito”
“Porcamente forjado eu diria. Na verdade ele queria ganhar tempo”.
“Onde ele pode estar agora?”
“É isso que queremos saber. Você tem alguma ideia?”
“Não tenho ideia”.
“Estamos procurando o sujeito por todo Estado”.
“Torço por vocês”.

Admito uma lágrima, admito ter sentido algo estranho: uma mistura de felicidade, por ele ainda estar vivo e ódio, por ele ser um criminoso.

“Descobrimos tudo por causa da carta da Roberta”
“Como assim?”
“Ela sabia que poderia ser morta pela irmã e pelo cunhado, deixou um documento descrevendo tudo que estava acontecendo”.
“Assim que descobriram o golpe?”.
“Isso nos ajudou”.

Roberta disse tudo sobre a organização. Detalhadamente o plano de Fernando e o tal traficante que o ajudaria na fuga. Roberta só não contou que houve um pedido importante: Fernando achou que a única maneira de despistar a organização em relação a mim e meu para era preparar uma série de provas determinando minha inocência. Mas havia uma informação que ela não tinha deixado: Fernando pediu que fosse feito uma transferência em dinheiro para conta de Bruna. Assim, a polícia não investigou esse dinheiro, Demo Duarte também não.

Eu e Bruna nunca suspeitamos de sua existência.


22/24

Uma música suave. Bruna imóvel na minha cama. Ela não tinha forças para sair daquela posição, nem vontade. Um médico se aproxima, ele diz que precisa leva-la para o hospital para a remoção de tudo que estava contaminado.  A operação estava marcada para os próximos dias. O médico, meu pai e mais duas senhoras: Eles impõem as mãos voltadas para o peito de Bruna, fazem uma oração. O ritual deveria ser feito mais umas três vezes, para melhores resultados; conforme a informação do próprio médico. Eles diziam palavras incompreensíveis, principalmente para mim que estava em certa distância. Bruna parecia entrar numa espécie de transe, algo que eu não sei precisar. A verdade é que tudo parecia mudado, em mim também algo mudava. Saiam sem pedir absolutamente nada, exceto um copo de água gelada.

Uma doença raríssima, enigmática; mortal.

Estranhamente o corpo de Bruna passava por uma transformação que eu não saberia e nem queria explicar. Uma onda de felicidade, mesmo com as dificuldades que ela provavelmente passaria dali em diante. O seu corpo nu não era mais o mesmo que andava perambulando pelo apartamento, ou que se encostava sutilmente no sofá da sala. O seu corpo, aquele que eu não podia nem queria ver, tinha a amputação do membro corroído, a costura imaginária da fenda aberta; o tumor desaparecendo por completo. Ali eu percebi que estava amando um pouco mais a Bruna, mesmo sabendo que não a teria por muito tempo.

A operação estava marcada.


* * *

Fernando está cansado. Por alguns momentos a sua vida passa como num desses filmes de terror. Destruição, morte; sofrimento. Ele acorda do sono impossível quando desvia de um carro que estava vindo em sua direção. Adriana também estava dormindo, mas o peso de tudo que estava acontecendo com eles parecia ser menor. Fernando não era um sujeito que merecesse qualquer respeito, mas a sua vida piorou depois do casamento e desse amor tão nefasto que tinha por Adriana.

Curiosamente nunca tive esse sentimento de repulsa por minha mãe.

* * *

Bruna está na maca. Seus olhos ainda cheios de esperança. Meu pai decidiu me acompanhar em todo aquele processo. Ainda que ele estivesse tão cansado em sua própria condição física, ele tinha uma vitalidade incomum para uma pessoa de sua idade. Entrei com a Bruna até onde eu pude. Dali em diante era uma coisa que nem eu, nem o médico; nem Bruna poderia controlar. O controle da vida e da morte nas mãos de Deus.

E eu falando sobre Deus sem conhecê-lo direito.

A operação tinha ocorrido da melhor forma possível, mas era quase impossível continuarmos com o tratamento. Os remédios eram caros, os resultados improváveis; tudo muito complicado. Meu pai segurou minha mão, depois se retirou calmamente do quarto. Naquele momento: eu olhando pela janela e Bruna totalmente desacordada na cama. Tubos, fios e um rosto muito magro e desfigurado. Levanto as minhas mãos para o céu, e rezo como quando ainda era criança. Inocente da minha descrença e confiante que Deus escolheria o melhor para nós.




23/24

Fernando para o carro perto de um posto de gasolina. Ali seria o seu encontro. Eles ficam dentro do carro, Adriana segura sua mão; ela também está apreensiva com o quê pode acontecer com os dois. O caminho até ali tinha sido fácil, elaborar o plano de fuga também. Mas ter que encontrar com Val não estava em seus planos. De repente batem no vidro. Um sujeito alto, vestido de preto; terrivelmente sinistro. Adriana abre a janela, ele pede que saiam do carro. Fernando encostado no carro, Adriana longe fuma um cigarro; Val continua imóvel desde o momento em que chegou.

“Trouxe o dinheiro?”
“O valor combinado”
“Não admito traição”
“Está no porta-malas”

Andam depressa.

“Um envelope?”.
“O dinheiro está depositado”.
“Não foi isso que combinamos”.
“Achei mais seguro”.
“Você não tinha que achar nada”.
“O dinheiro está lá, pode consultar. Os dados aqui no envelope, a senha”.
“Eu disse que queria o dinheiro”.

O cigarro de Adriana apaga.

“Alguém poderia nos assaltar no meio do caminho”.
“Não estou aqui para discutir sobre isso”.
“Tente entender o meu lado”.
“Não estou aqui por causa do seu lado”.

Fernando se agacha. Seus olhos voltados para o chão. A figura sinistra segura Fernando pelo pescoço. De repente as mãos de Fernando procuram algo na terra, como quem quer se esconder em algum buraco; cavando sua própria cova. Tudo estava perdido, ele pensa. Olha para Adriana e sente uma dor ainda maior: Ela ao longe com olhar brilhante, sorriso largo. Então ele leva as mãos ao céu desconfiando de sua crença incerta, pois ali teve certeza de que, apenas na inocência dos seus dias de criança, cruelmente não matou Deus.

Fernando estava morto por sua escolha naquele momento.


* * *

Delegado Ademar descobre que Fernando e Adriana fugiram com a ajuda de outro traficante. Curiosamente não sabiam nada sobre ele, nem qual a relação do sujeito com o crime organizado no mundo. O delegado só tinha uma certeza:  Todo o dinheiro sujo estava depositado em diversas contas de diversas agências; vaporizados na burocratização e no sigilo de negócios que envolviam muitas pessoas poderosas. Sua única certeza era não precisar os vitoriosos, nem ao menos se Fernando e Adriana estariam vivos.

Esse seria o mistério que carregaria por toda sua vida.



24/FIM

Tudo que Fernando conseguiu em sua vida agora estava no limbo da história.  A polícia continuaria a investigação, querendo saber sobre o dinheiro roubado do Grupo Feero e da morte da Roberta. O destino de tanto dinheiro era indeterminado, pelo menos era isso que o Delegado Ademar disse para as autoridades e jornalistas. Também não tinham notícias sobre Fernando e Adriana, mas as buscam continuaram até que uma ordem surgiu para que tudo permanecesse como estava, ou seja, sem resolução.

“Jura que não leu nenhum parágrafo?”
“Não queria saber de nada do meu irmão”.
“E se encontrarmos seu irmão e a sua cunhada?”
“Não quero saber deles”.
“Se estiverem mortos?”.
“Ainda assim não preciso saber”.
“Quer saber como sua mãe morreu?”.

Minha mãe atacada por uma doença mental morreu sufocada pelo próprio vômito em um hospital público.

“Quer mais um café?” – Ademar sugere.
“Ficamos por aqui”.
“Até breve”.
“Até nunca mais”.

* * *

Abro o portão do prédio. Checo a caixa de correspondência. Há tempos não espero nada de ninguém.  As escadas  e o corredor continuam escuros Estou ofegante, estou cansado; as pernas não me obedecem como deveriam. Cada dia pior. Ando pelo corredor até última porta do lado esquerdo. Procuro a chave no bolso. Não há mais cigarros, apenas o troco do ônibus.

No sofá: Bruna totalmente nua. Ela dorme um sono profundo. Não queria acabar essa história com a descrição de uma mulher nua e doente. Bruna e sua pele branca, seus cabelos loiros e um sorriso enigmático. Até que horas ela ficará me esperando? Vou até o banheiro. Silêncio em toda casa, silêncio fora dela. Minha vida passa por instantes no espelho: estou ficando demasiadamente velho. Lavo o rosto. Volto para a sala. Bruna continua me esperando, me olhando apaixonadamente. Ainda não sei o motivo de me amar tanto.

 “Não estou me sentindo bem hoje”.
“Fique tranquila, isso logo passa”.
“Promete que não vai me deixar sozinha?”.
“Estarei sempre ao seu lado”.
“Fica comigo só esta noite?”.
“Estarei sempre ao seu lado”.

E o coração de quem ama fica faltando um pedaço
Que nem a lua minguando, que nem o meu nos seus braços.

Eu estava feliz daquele jeito e isso passou a ser minha única riqueza.

 

FIM