quarta-feira, 5 de março de 2008

Roupa Suja

.
.
ROUPA SUJA
.
.
Introdução
.
.
Torres é um sujeito mal humorado. Definição incompleta, mas com certeza muito esclarecedora. Perceberão no sujeito uma crise muito comum nos dias de hoje: uma mistura de tristeza, menosprezo, falta de vontade; e uma inquietação em relação ao futuro. No meio dessa conturbada situação, ele é contratado para procurar um senhor que está desaparecido.
.
Durante a investigação ele começa a questionar diversos assuntos relativos à sua vida: o casamento que não deu certo, a mãe que está doente num hospital, sua relação afetiva e a questão profissional. Afinal, ele consegue dizer que é um sujeito realizado? O quê precisaria para responder essa pergunta com convicção? Como provar para ele mesmo ser um ótimo sujeito e um excelente profissional?
.
Na cabeça de Torres o serviço era simples, mas a pergunta intrigante: Quem ele quer encontrar? O velho ou ele mesmo?
.
.
.
Boa leitura!!
.
.
Sérgio Oliveira
.
.
.
.
.
.
.
.
(01/24)

O quarto sempre me pareceu solitário, não mudaria minha opinião agora, depois de todos os acontecimentos. Nele uma cama de casal (casal que não existe mais) e um guarda-roupa da cor mogno. Do canto esquerdo, uma janela sem cortinas. Voltando para a sala, a impressão de abandono ainda era evidente. Um sofá de três lugares e uma estante vazia. Ali se foram bibelôs de todas as espécies, retratos de família, um roomboxe de sala européia (minha esposa era filha de espanhóis) e o castiçal de cristal ganho de uma tia no último natal. Tudo bem, restou livros e a televisão. Os livros estavam bagunçados, parece que algum arruaceiro procurou alguma coisa neles, e saiu fugido com algo precioso: como fotos ou cartas; ou qualquer outra lembrança. Eu pego o livro, qualquer um deles, na sorte. Não tinha mais paciência para leitura.
.
É uma realidade eu não conseguir ler nada interessante nos últimos meses. A literatura, como qualquer outra manifestação artística, ficou sem sabor para mim. Não tenho motivação para começar a ler aquele livro, nem para qualquer outra coisa. Mesmo assim, abro e começo algumas páginas. Coloco-o novamente na estante. Não há nada de novo: Não enxergam mais nada diante do nariz. Todos tão fascinados em números, cifras e críticas. Acabam se esquecendo da melhor coisa da literatura, que é a diversão. E os filmes? Tão péssimos, tão desinteressantes, tão iguais. Desligo a televisão também. Ela estava falando sozinha há exatos quarenta minutos. Fico no sofá tentando me convencer de que tudo estava bem.
.
O calor desta noite é insuportável. A janela aberta da sala não me dá nenhuma sensação agradável. Os dias são péssimos, pelo meu estado deprimido e deprimente. Não tenho desejo de mudar as coisas, estão ótimas desse jeito. Parece que quanto mais eu tento arrumá-las, mas arregaço. Sou um sujeito de péssimo humor, como se eu precisasse falar isso para vocês. Devem ter percebido em minhas poucas palavras até agora. A vida? Ela pode caminhar desse jeito, não faço nenhuma questão de mudá-la. Basta o tempo se movimentando; alternando com a tarde, depois na madrugada. Basta uma mínima seqüência de fatos para eu perceber que estou vivo e que a vida independe de mim para continuar sobrevivendo.
.
No marasmo, parece que o destino, ainda que tardo; quer me salvar. De repente toca o telefone! Era tudo que eu precisava hoje, eu penso. Alguém com perguntas cretinas e estúpidas. Ele continua tocando. A pessoa do outro lado deve ser insistente para me convencer sobre ser um assunto importante. Toca cinco vezes, pára. O silêncio poderia ser uma coisa boa em outros momentos, agora parece deixar o apartamento mais sinistro ainda. Quem poderia ser a pessoa desesperada, mas sem perseverança? A resposta em breve, pois o telefone volta a tocar novamente.
.
“Alô?” – Eu atendo.
“Torres?” - Era uma mulher.
“Sim, é ele.”
“Estive procurando o senhor há dois dias.”
“Algum problema?”
“Sim, claro. Sim. Um grande problema.”
.
Alguém me ligar numa hora daquelas só poderia estar com problemas. E eu que odiava perguntas idiotas quase sempre acabava fazendo uma. Eu me ajeito no sofá, parecia que a conversa seria longa.
.
“Preciso falar com o senhor pessoalmente.”
“Acha que seu telefone está grampeado?”
“Não sei. Não confio em ninguém.”
“Qual o motivo de confiar em mim?”
.
Possivelmente ela não tinha uma resposta. Não deve confiar em mim como não confia em mais ninguém. No entanto, eu tinha plena convicção de quem eu era. Demonstrar segurança pode ser uma maneira de inibir nossos defeitos. Poderia ajudá-la, é claro. Mas primeiro preciso saber qual é o problema. E se ela sofre de gastrite? Não ligaria para mim, procuraria um médico. Meu estômago dói só de pensar. Coloco um comprimido na boca, mastigo suavemente. Essa cena não é nova, outros personagens mais importantes sofriam do mesmo mal.
.
“Eu não confio no senhor”
“Boa resposta. Já é um bom começo”
“Aliás, não conheço nada sobre o senhor”
“Fui escolhido pelo acaso?”
“Achei seu nome num anúncio sobre detetives particulares.”
“Mesmo assim, nem todos são confiáveis.”
“Você tem o nome do meu avô.”
.
Era o bastante.
.
(02/24)
.
Desligo o telefone. Estava marcado um encontro para o outro dia, logo pela manhã. Eu que estava pensando na aposentadoria, decidi pegar mais esse trabalho. Era preciso, não tinha dinheiro suficiente para meu sonho: comprar um sítio, ter uma criação de animais e uma horta. Já estava imaginando como seria eu cuidando das plantas, jogando água logo pela manhã, quando o sol não está forte. Pegando legumes e verduras, preparando um prato saudável. Eu tinha me esquecido desse sonho quando estava morando com Simone, mas agora que ela foi embora tudo ficou mais fácil. Algumas mulheres se prestam ao papel de fardo; agora estava livre. Precisava apenas do dinheiro.
.
No outro dia, chego no horário combinado. Quer dizer, chego alguns minutos antes. No primeiro encontro com um cliente eu acostumava me apresentar melhor, usando terno escuro e gravata vermelha. Não estava com saco para combinar peças, em me arrumar e me apresentar melhor do que eu era. Coloquei uma calça jeans e uma camisa clara. Era assim que eu andava no dia-a-dia. Cheguei mais cedo, pois gostava de analisar o local, ver as pessoas; saber se existia alguma coisa suspeita. Uma vez fui vítima de uma tocaia de um marido, que não gostou nada de ser investigado, e quis me matar. Por sorte consegui escapar, e desde então, sempre tomo algumas medidas de segurança. Sento, uma garota do outro lado do balcão me olha curiosa. Comia arroz com feijão e um bife com cebola. Esquece, ela não é importante para o caso.
.
Poucos minutos depois do horário combinado, Lílian entra no bar. Ela vai até o sujeito que está atrás do balcão. A mulher que comia arroz com feijão presta atenção na conversa. Percebe ser desinteressante, volta a se concentrar apenas no prato. O sujeito do balcão aponta para o lado de onde estou sentado, Lílian vem em minha direção. Ela se aproxima, ela é mais bonita longe; seus cabelos e olhos parecem brilhar mais. Tem cabelos castanhos, um sorriso simpático. Deve ter uns vinte e poucos anos. Ela puxa a cadeira, senta-se. Põe a bolsa numa cadeira vazia, prende o cabelo fazendo um rabo de cavalo:
.
“Está muito calor hoje.”
“Sim”
“Trouxe alguns documentos” – Pega a pasta e coloca na mesa – “Está calor hoje” – Repete o mesmo comentário.
“Muito calor” – Eu pego a pasta, olho os documentos – “Quer beber alguma coisa?”
“O que você está bebendo?”
“Conhaque.”
“Não é a melhor coisa para um dia quente como hoje.”
.
Queria dizer que era a única bebida que não me fazia brochar. Fiquei quieto. Olho para as fotos, recibos e documentos pessoais de um sujeito, um velho. Não sabia qual era o trabalho ainda.
.
“Quer um suco?”
“Sim.”
.
Aceno para o garçom, que logo em seguida atende a moça.
.
“Muito obrigado por ter vindo” – Lilian diz.
“Vou ser sincero, estou precisando de dinheiro.”
“Não é problema.”
“Então estamos entendidos. Diga qual é o caso?”
.
O garçom chega com mais um conhaque e mais um suco de laranja. Ela se mantém em silêncio, estava esperando que o garçom se afastasse.
.
“Esse é meu pai.” – Ela segurando uma das fotos.
“Sim” – Pego uma outra foto que está na mesa. Olho bem para a cara do sujeito.
“Ele está desaparecido desde janeiro.”
“Desaparecido como?”
“Desaparecido, oras. Não temos notícias desde janeiro. Ele sumiu do mapa”
.
Continuo analisando os documentos sob olhares carentes e esperançosos de Lílian.
.

(03)
.
Caso de desaparecimento é muito pior do que caso de adultério, esse eu estava acostumado a tratar. O traidor, marido ou esposa, quase sempre é vulnerável a falhas grotescas e pistas importantes: um restaurante, um encontro qualquer e uma trepada perto do escritório são suficientes para acharmos os culpados sem que haja qualquer dúvida. Desaparecimento é uma situação delicada, que pode envolver o desejo do próprio desaparecido em não querer mais ser visto por ninguém (esses casos são mais comuns do que vocês pensam) como um rapto, um acerto de contas ou um assalto seguido de espancamento, esquartejamento e eliminação das provas. Não digo isso para Lílian, ela parecia já sofre o suficiente. Continuo olhando para a foto do pai de Lílian, sem ter idéia do que poderia ter acontecido:
.
“Seu pai tinha amante?”
“Como pode me fazer uma pergunta dessas?”
“Preciso conhecê-lo. Entender todas as possibilidades”
“Meu pai era um sujeito honrado”
“Posso fazer uma lista de pessoas honradas que tiveram amantes”
“Isso não vem ao caso”
“Ele pode ter fugido com uma amante, sumido com medo de contar a verdade para a família” – Tomo um gole de conhaque.
.
Lílian fica quieta, não sabe o que me dizer. Pega um outro papel que estava na mesa, um recibo de uma pizzaria que ele freqüentava todas as sextas-feiras. Eu continuo esperando uma informação mais valiosa que aquele monte de papéis e fotografias.
.
“Acho que ele foi raptado.” – Lílian acaba revelando o que tanto a angustiava.
“Por que diz isso?”
“Ele estava recebendo uns telefonemas estranhos”
“Estranhos? Poderia me dizer o que define por estranhos?”
“Ele pegava o telefone, conversava baixinho. Corria para a biblioteca.”
“Sim”
“Desligava e saia”
“Para onde?”
“Pegava o carro e saia. Não sabíamos para onde” – Ela baixa a cabeça, como quem pretende chorar – “Acho que estavam ameaçando meu pai.”
“Ele chegou a procurar a polícia?”
“Se procurou, não disse nada para nós.”
.
Garçom traz outro conhaque e uma porção de mandioca frita.
.
“Acho que meu pai está morto”
“Não estou sendo contratado para procurar um cadáver?”
“Tenho esperanças” – Um breve silêncio. “Tenho que ir. Minha mãe não sabe que estou aqui”
“Ela também acha que seu pai não tinha amante”
“Tenho certeza que meu pai estava sendo ameaçado”
.
Eu me levanto. Coloco o dinheiro na mesa. Digo que mandarei notícias. Pego as fotos do sujeito, a pasta. Saio andando. Beber me dá uma vontade imensa de fumar, mas a gastrite me impede. Coloco mais um comprimido na boca. Mastigo. Lembro do meu amigo Rubem, que quase morreu por causa de uma úlcera. Nunca ouvi dizer que alguém tivesse morrido por causa de uma úlcera, mesmo assim sempre me lembrava do caso. Vou para meu apartamento.
.
Ele estava uma bagunça. Mentalmente xinguei minha empregada durante várias horas, não conseguia encontrar nada naquela casa. Lembrei que Dona Iracema não trabalhava mais comigo, portanto era injustificável toda minha indignação. Vou chutando tudo pelo caminho, roupas sujas e sapatos velhos; vou abrindo caminho até o meu escritório. Um pequeno quarto no final do corredor. Era o único lugar onde me sentia seguro. Ali não sentia a falta de Simone, não sentia dores de estômago. Entro. Coloco a pasta na escrivaninha. Ligo o rádio: um sargento foi morto na porta de casa com vários tiros na cabeça. O mundo estava cada dia mais cruel. Faço algumas anotações até conseguir dormir.
.
Outro dia tinha um compromisso muito mais sério e desinteressante.
.
(04)
.
Quase seis meses e a velha continuava olhando para o teto, sem ter muito o quê dizer. Ela não podia falar, mal conseguia piscar os olhos. Algumas vezes parecia estar olhando para algum ponto ao longe. A enfermeira a colocava voltada para a janela, e seus olhares iam mais além do que podíamos imaginar. Pensei uma vez tê-la visto sorrindo, mas foi alguma coisa de reflexo, de um sistema nervoso debilitado mais ainda ativo. Não tenho esperança que melhore. Olho-a com angústia. No braço algumas marcas; uma mancha preta: soros, remédios e outras coisas eram medicados várias vezes ao dia. Eu me aproximo mais ainda. Ela cheira bem, acabara de tomar banho. Era um sufoco limpar a mulher, era preciso várias enfermeiras e enfermeiros. Colocavam-na numa cadeira de alumínio, amarravam suas pernas e coluna, deixavam-na no chuveiro por exatos dez minutos. Os banhos aconteciam em dias intercalados.
.
“Ela parece melhor, mas os médicos perderam a esperança” – Uma enfermeira entra.
.
Uma enfermeira negra, muito grande. Olhos claros, quase verdes. Num primeiro momento pensei serem lentes, mas não quis fazer uma pergunta tão idiota e sem sentido. Vestia-se como enfermeira, evidente. Muito diferente do que eu estava acostumado a ver nos filmes americanos ou no imaginário masculino de revistas e filmes eróticos. Mesmo assim, ela chamava atenção de qualquer homem. Uma mulata maravilhosa, charmosa. Ela segura a cabeça da minha mãe, inclina-se para jogar um remédio gosmento na boca da velha. Fico admirado com a enfermeira. Acompanho todos seus movimentos, mas pouco me interessava seus cuidados. Pernas são grossas, peitos não muito grandes.
.
“É uma pena. Ela parece ser uma pessoa fantástica.” – Ela puxando novamente conversa comigo.
“Sim. Ela é uma pessoa fantástica.”
“Não lembro de você. É da família?” – Ela tira as luvas, lava as mãos.
“Sou filho”
“Engraçado. Nunca tinha visto você aqui”
“Não gosto muito de hospital”
“Espero que eu tenha mudado sua opinião sobre a gente”
“Minha opinião está mudando lentamente, não preciso muito para me convencer por completo.”
“Estamos fazendo tudo por sua mãe”
“Que dias você está aqui?”
“Segunda e quarta de manhã. Finais de semana de madrugada.” – Ela sai sorrindo.
.
Muitas vezes apenas um sorriso feminino pode ser melhor do que qualquer cantada masculina.
.
Volto para minha mãe e seu olhar distante. Será que algum dia ela conversará comigo? Eu seguro sua mão, penso em algumas coisas de quando eu era pequeno, dos cuidados que ele tinha comigo e de como as coisas foram mudando. Tudo por causa do meu pai. É uma história longa e demorada. Prefiro, por enquanto, não comentar mais nada sobre o caso. Levanto, passo pelo corredor. Vários outros velhos abandonados. Chegará meu dia, eu penso. Prefiro morrer a me sentir abandonado. As pessoas sempre nos abandonam, amigos e inimigos. O tempo vai passando e vamos sendo esquecidos, esse é o único retrato que eu consigo imaginar para meu futuro.
.
Passo pela recepção, a enfermeira está falando com uma outra mulher. Eu aceno. Seu nome é Gracyneide, posso ver no crachá.
.
* * *
.
O calor continua insuportável. Lembro do trabalho, de procurar o pai da garota. Por onde começar? Parecia que nunca havia feito esse trabalho. Estava realmente cansado daquilo, queria achar o mais rápido possível o senhor Alberto. Era esse o nome do sujeito. Empresário falido. Deixou mulher e filha. Sessenta e dois anos, sem problemas de saúde, inclusive psicológico. É importante essa informação. Conforme a filha, não tinha amante. Um empresário que perde dinheiro e fica pobre? Os finais são quase os mesmos, mas não nesse caso. Acho que ele tem uma amante.
.
Estava cansado, precisava relaxar um pouco. O calor me deixa indisposto. Meu trabalho ficou pior ainda depois que Rubem foi embora. Ele estava velho, e mais cansado do que eu. Chegou uma vez no escritório e disse que não agüentava mais trabalhar, ir ao banco, trazer lanche e cuidar das minhas bebedeiras. “Sabe, Torres, considero você um filho; mas não dá mais”. Saiu pela porta, nunca mais tive notícias.
.
Desde então, trabalho sozinho.
.
(05)
.
Segunda-feira é um dia horrível, ainda mais quando se pretende ir a uma delegacia. Infelizmente era o único dia que eu poderia falar com um conhecido: Doutor Ferreira. Ele era delegado, estudou comigo no colégio. Tínhamos trabalhado junto em outros casos. Eu entro na delegacia: duas mulheres discutindo. Ambas sem razão, com certeza. Estavam falando sobre o tal de Francisco, desaparecido. O investigador pergunta de quem o Francisco era marido. As duas mulheres afirmam com a mesma resposta. Francisco era casado com as duas. “Porra! Assim fica difícil”, o investigador angustiado. Ele passou os dois finais de semana trabalhando no lugar de um amigo, que estava em lua-de-mel. “Filha da puta numa boa e eu me fudendo com essas duas vagabundas!”. Pensa.
.
“Doutor Ferreira? Onde posso encontrá-lo?” – Eu me aproximo ao investigador.
“Jornal?”
“Não”
“Não quer falar sobre o caso Chimbica?”
“Não, não conheço nenhum Chimbica. Sou amigo do Ferreira”
“Terceira porta no final desse corredor”
.
As mulheres continuam discutindo sob olhar atento do policial. Ele tenta decifrar, entre choros, reclamações e xingos o que elas estão querendo. Eu continuo andando em direção a sala do doutor Ferreira. Chego ao local indicado. Bato duas vezes na porta. Uma batida seca, mas alta. Ninguém responde. Tento mais uma vez. “Entra!”
.
Não conheço muitas delegacias, mas com certeza a sala do Ferreira era uma das piores coisas da vida. Ele está atrás de uma mesa com vários papéis e livros. Duvido que ele tenha lido metade deles. Código para isso, código para aquilo; processos. Puxo uma cadeira, sem mesmo ele me insinuar que podia. Parecia não me reconhecer, pôs a mão na cintura, segurando a arma. Nesses tempos de violência, qualquer atentado contra um policial, mesmo dentro da delegacia, parecia ser uma coisa normal.
.
“Lembra de mim? Estudamos juntos? Eduardo Torres Jasmim”
“Jasmim? Já sei.... Jasmim. Caralho! Está mais gordo!!”
“Sim. Um pouco mais gordo.”
“O que manda?” – Ele tira a mão da cintura.
“Preciso de um favor.”
.
Ele levanta, pega um cigarro que estava na mesa. Pergunta se eu me importo dele fumar, digo que não. Ele abre a janela, põe a cara para fora. Dá uma tragada, volta:
.
“Estamos em tempos complicados. Agora mesmo estava lendo sobre o desvio de dinheiro daquele desgraçado. Já imaginou roubar tantas velhinhas daquele jeito? Dinheiro público, meu chapa”
“Dá previdência?”
“Pior que os desgraçados só sabem falar da polícia. Nesse país só os policiais são corruptos? Cambada de corvos”
“Corvos?”
“Sim. Corvos. Aquela avezinha preta filha duma puta!!”
“Então. Preciso de um favor”
“Não fazemos favores na polícia, sabe bem”
“Pago”
“Pagar? Ninguém está falando em pagar. Estamos falando em fazer justiça”
“Compreendo”
“Acha mesmo que eu vou colocar alguns policias à sua disposição sem cobrar nada? Tantos crimes que estão ocorrendo nesse momento. A população está desprotegida.”
“Entendo perfeitamente”
“Então. Não posso colocar dois, três policias para trabalhar para você sem cobrar nada”
“Digo que pago”
“É só um auxílio, não entenda mal minhas palavras.”
“Não estou entendendo mal”
“Os caras têm família, tem filhos... ninguém vê isso”
.
Saio.
.
(06)
.
Tudo acertado com o delegado Ferreira. Ele disse que iria verificar nos registros algumas coisas sobre o velho que eu estava procurando. Qualquer coisa podia me ajudar, qualquer queixa. Delegado Ferreira me liga depois de duas horas dizendo que não havia encontrado nada sobre o sujeito. Ele diz que está a minha disposição, caso queira entrar em alguma boate, boca de fumo ou falar com algum traficante. Eu agradeço, digo que talvez não seja o caso. Na verdade não confio em policiais. Ele diz que pode pegar uns caras. Fazer campana. “Marcão faz sujeito confessar que matou Getúlio Vargas, meu chapa!”. Agradeço mais uma vez, mas recuso a oferta.
.
Ligo para Simone.
.
“Queria saber como você está”
“Bem”
“Desculpe ligar essa hora, sei que está muito ocupada”
“Estou”
“Qualquer coisa me ligue, ok?”
“Sim”
.
Às vezes demoramos a perceber certas coisas. Ligar para Simone dois dias depois de termos terminado foi a coisa mais imbecil da minha vida. Ponho o telefone no gancho, mas na minha cabeça, a conversa imaginária continua:
.
“Sabe que aquela mulher não significa nada para mim”
“Sei. Homens são superficiais”
“Mas você, eu amo mesmo. De verdade!”
“Sempre soube disso”
“Mesmo assim não quer me perdoar”
“Estava fazendo charme. Para você sentir saudade”
“Podemos nos encontrar?”
“Estou em casa. A porta está aberta. Estarei no banho”
“Você me perdoa?”
.
Não consigo imaginar uma resposta tão mentirosa de Simone.
.
Amanhã é sábado. Lembrei da enfermeira negra do hospital. Eu preciso vê-la. Deito no sofá, confabulando uma maneira interessante de chamá-la para jantar. Não deve haver lugar para se sair de madrugada quando se tem apenas alguns minutos de folga. Vou convidá-la para um café, um café bem forte. Qual a desculpa? Falar sobre minha mãe? Não. Não quero saber disso. Vou falar sobre minha saúde, que ando com insônia. Ela vai ficar preocupada comigo. Quase todas as enfermeiras parecem tão humanitárias. Coloco a cabeça no travesseiro, preciso dormir um pouco. Nunca tive problemas para dormir.
.
* * *
.
.
.
Da primeira vez que procurei emprego tive uma experiência horrível. Era uma sala não muito grande, com doze pessoas. Uma mulher bonita entra na sala, senta-se bem na nossa frente. Eu tinha apenas dezoito anos, sem muita coisa na cabeça. Ainda não tenho muitas idéias hoje, mas já consigo me orgulhar. Ela pergunta umas coisas, coloca grupos em uma mesa e pede para recortarmos uns jornais. Eu me levanto, seria ridículo me contratarem por causa de uns recortes. Dizem que é para saber como funciona nossa cabeça: dane-se minha cabeça!! Para qualquer dúvida, bastaria uma redação.
.
.
.
.
* * *
.
Acordo de madrugada no meio desse sonho. Estava calor ainda. Pego um copo de leite na geladeira. Não consigo dormir novamente, isso sempre acontece quando acordo de madrugada. Vou para sala, ver televisão. Um filme de terror que estava na metade. Outro canal vendendo produtos para limpar lente de contato. Inúmeros canais com cultos. Vou cochilando no escuro, no silêncio e na melancolia. Quase de manhã estou de pé. Tomo um banho e saio para me encontrar novamente com Lílian.
.
(07)
.
Num restaurante.
.
No mesmo lugar onde encontrei com Lílian da outra vez. O calor continuava infernal (Inferno deve ser quente). As pessoas não conseguem andar direito, era sufocante. Mesmo assim resolvo sair a pé. Duas quadras de onde eu morava. Ambulantes vendem gelo, suco, frutas e sucos. Caminho rápido. Tiro o paletó enquanto ando. Meu pescoço está molhado, sinto a roupa grudar na pele. Chego. Lílian ainda não havia chegado. Peço um suco de limão e um conhaque. Realmente conhaque não combina com verão. Troco por cerveja. Volto para o conhaque, lembro das últimas experiências sexuais depois de beber cerveja.
.
Cerca de dez minutos depois, Lílian chega. Ela está com um vestido azul claro, marcando o corpo. Era um corpo bonito, perfeito. Ela chega perto da mesa, tira os óculos escuros. O perfume não é o mesmo, mas mesmo assim atraente. Cumprimentamos-nos, ela está sem sutiã. Garotas novas odeiam sutiã. Ela senta, pede um suco de laranja. Seus cabelos novamente presos. Usa um batom rosa claro. Pela primeira vez me senti atraído por ela. Mesmo com olhar triste, ela parece simpática. Eu suportaria morar com Lílian por alguns meses, só para saber se o problema com Simone era mesmo minha culpa. Simone disse que eu era egoísta antes dela ir embora, me disse algumas coisas que eu não concordo.
.
“Alguma novidade?” – Lílian começa.
“Seu pai não deu queixa à polícia”
“Isso é novidade?”
“Nos hospitais também não apareceu”
“Isso tudo quer dizer que não encontrou meu pai ainda?”
“Tenho uma linha de pensamento, a polícia e os hospitais me fizeram tomar um outro caminho.”
“Qual caminho? De que ele tem uma amante? Insiste nesse negócio?”
“Tenho que pensar em tudo. Toda hipótese.”
“Meu pai não tem amante, e mesmo que tivesse, estaria pobre. Acha que qualquer vagabunda ficaria com meu pai pobre?”
.
Lílian espera eu continuar meu raciocínio, todavia ele era incompleto.
.
“Está muito calor hoje”
“Estou achando que você realmente não é a pessoa mais indicada para o trabalho”
“Não precisa me pagar pelo que eu já fiz até agora. Eu desisto e pronto!”
“Dinheiro não é o problema, eu disse. Só quero respostas”
“Elas chegarão. Só não posso dizer que serão breves, preciso pensar em possibilidades que não passaram pela sua cabeça. Talvez se me deixar fazer o serviço da maneira que eu sei, possa conseguir uma resposta melhor do que a que dei até agora.”
“Desculpe, estou nervosa.”
.
Lílian pega um lenço na bolsa, começa um discreto choro.
.
“Vai sair hoje à noite?” – Eu continuo depois de vê-la recuperada.
“Não. Quer dizer, vou. Mas eu desmarco. É algo importante?”
“Queria levá-la a um lugar”
“Como assim?”
“Pode ir ou não?”
“Sim. Tem alguma coisa em relação ao meu pai?”
“Não tem relação nenhuma”
.
Lílian pega a bolsa. Não estava entendendo nada do que estava acontecendo. Eu também não estava entendendo, nem mesmo sei o motivo de tê-la convidado para sair. Não importa. Chego, o apartamento continua solitário. Tomo um banho. Eu estava fedendo, transpirando. Cozinha, quarto, sala, banheiro; todos os lugares me incomodavam. Minha existência cansada incomodava. Deito no sofá. Preciso pensar em alguma coisa: preciso de respostas! Nunca havia saído com uma cliente. Estou abandonando tudo em minha vida, não parecia o momento mais correto para me envolver com alguém. Daqui a pouco vou estar cansado para tudo, desistindo mesmo das coisas, da vida. Afinal, meu trabalho era achar o pai da garota, devia me concentrar nisso!
.
Senhor Alberto adorava jogar sinuca. Pelo menos era o que dizia os documentos que Lílian deixou comigo. Na cidade eu perderia a conta de quantos lugares ele poderia ir para jogar, mas com certeza poderia colocar nos dedos os lugares que ele escolheria. Era um sujeito que tinha dinheiro, portanto escolheria os melhores lugares. Assim, dois lugares seriam ideais. No primeiro ninguém tinha visto o sujeito, mostrei a foto e deixei contato. O segundo era menos requintado, mesmo assim um dos mais caros. Rico, às vezes, quer pagar caro alguma coisa, só porque pode. Mostrei a foto para um dos donos, ele estava preocupado pensando que eu fosse policial ou coisa do gênero. Ele me disse que tinha visto senhor Alberto umas duas vezes, mas não deu outras informações. Mas de tudo que disse, uma coisa foi fundamental:
.
“Esteve aqui no último domingo!”
.
.
(08)
.
Fui ao encontro. Já era noite quando Lílian apareceu na porta do hospital onde minha mãe estava internada. Entramos. Passamos pela recepção, queria que Gracy me notasse chegando com uma mulher. Às vezes isso dá certo: mulheres adoram uma conquista complicada, um relacionamento confuso; uma coisa meio proibida. Eu estar acompanhado poderia ser uma isca muito eficiente. Além disso, quase todas adoram estar certas em relação ao homem, quando dizem que todos são vulgares, que traem e que são vulneráveis. Sair com um homem casado, ou compromissado; é a mesma coisa que dizer “está vendo! Eu não disse que todos são cafajestes?”. Peixe morre pela boca e o homem pelo sexo. Gracy sabia disso.
.
Apenas acenei para Gracy, ela me olhou com indiferença. Entramos no quarto, eu e Lílian.
.
A velha me olhava como se muitas coisas pudessem estar acontecendo em sua volta. A verdade era que não havia nada de especial nesse dia, como não houve nada especial ontem; nem haverá amanhã. Os dias são iguais. Eu queria dizer isso para a senhora moribunda, mas isso não tinha cabimento para uma pessoa que está quase um ano numa cama de hospital; sorrindo pela janela, para os pombos. Naquele momento ela estava dormindo, mas podia estar acordada que o efeito em mim seria o mesmo.
.
“Ela é sua mãe?” – Lílian me pergunta.
“Sim”
“Por que me trouxe aqui?”
“Queria que soubesse como é minha família”
“Coitada. O que ela tem?”
“Velhice. Sabe? Órgãos vão se deteriorando. Eles se cansam.”
.
Gracy entra no quarto. Elas se cumprimentam.
.
“Sua mãe acordou durante alguns minutos.”
“Isso é bom?”
“Possivelmente sim. Os reflexos estão voltando”
“Sabia que teria boas notícias”
“Ela fechou os olhos novamente, sem dizer nada”
“.....” – Eu não tinha comentário nenhum.
“Eu disse que você viria. Só não sabia que iria trazer alguém com você”
.
Lílian não presta atenção em minha conversa com Gracy. Ela estava atarefada olhando para minha mãe, procurando motivos para eu tê-la trazido para esse lugar. Aproveito a distração de Lílian, pego a enfermeira pelo braço e saio. Lílian está quase chorando, segurando o braço da minha mãe. Lílian, apesar de rica, parece ser bem sentimental. Saímos da sala.
.
“Queria ver você” – Eu sem rodeios.
“Mesmo assim trouxe a esposa”
“Ela não é minha esposa, é minha noiva” – Não fiquei vermelho com a mentira que estava inventando.
“Sei”
“Estamos num momento difícil. Até desmarcamos o casamento.”
“Ela parece ser bem mais nova que você”
“Um pouco”
“Estamos quase terminando, mas com toda confusão com minha mãe, deixei a situação de lado.”
“Podemos sair amanhã, se quiser”
“Ótimo, não tenho nada para amanhã.”
“E sua noiva? Vai ficar bem?”
“Vai. Ela é forte.”
“Tenho pena de sua noiva”
“Podemos ir onde? Restaurante, cinema?”
“Não somos mais crianças”
.
Entro no quarto, pego Lílian e saio do hospital.
.
(09)
.
A informação que consegui sobre o paradeiro de Alberto era preciosa. Cada vez mais minha certeza sobre ele ainda estar vivo se fortalecida com as evidências. Preferi não dizer isso para Lílian. Criaria uma expectativa que poderia ser frustrante. Pego uns documentos, faço um esboço de tudo que tem acontecido. Desde as ligações que deixaram Alberto incomodado, até seu aparecimento naquele bar onde jogava bilhar. É possível que eu encontre o velho antes do prazo marcado com Lílian. Estava pensando novamente na aposentadoria. Durmo pensando como seria bom poder terminar um serviço, pegar o dinheiro e realizar meu sonho.
.
Acordo cedo. Hoje iria me encontrar com Gracy. Nos últimos anos poucos foram meus encontros. Meu relacionamento com Simone acabou me tirando ótimas oportunidades. Tomo banho, novamente sinto uma vontade incrível de fumar. Não posso, não devo e não quero. Sento no sofá, apenas com a toalha enrolada no corpo. Preciso estar disposto, mas meu corpo está cansado. Não sei quanto tempo vou agüentar tudo que tem acontecido. Não sou um sujeito velho, vou fazer quarenta e sete anos daqui duas semanas. Não tenho motivo ainda para comemorar. Ligo a televisão. Precisava me sentir revigorado. Durmo um pouco. Ponho a roupa, saio.
.
No elevador encontro um velho amigo: Diego. Ele está gordo, com pouco cabelo. Não é mais aquela figura simpática e sorridente dos tempos do colégio. Ele entra, aperta o mesmo botão que eu havia apertado quando entrei. Ficamos nos olhando, em silêncio. Ele estava casado, com dois filhos. Estamos morando no mesmo prédio há dez anos, e mesmo assim conversamos pouquíssimas vezes. Em sua figura esgotada eu acabo percebendo como eu estou velho também, afinal somos quase da mesma época. Um assunto com ele ficou mal resolvido, não consigo olhá-lo sem lembrar disso. Sinto vergonha? Pode ser. Pode não ser.
.
“Como tem andando?” – Eu começo.
“Bem”
“Não tenho te visto esses dias” – Não o via há muito tempo.
“A família toma muito nosso tempo”
“Sei bem”
“E você? Casou?” – Eu sabia que ele era casado com Jennifer.
“Casei. Tenho dois filhos.”
“Como as coisas acontecem sem percebermos”
.
Chegamos.
.
* * *
.
.
.
Fiquei olhando horas e horas para o bicho perturbado no chão do quintal. Era o único lugar que não havia terra. Eu era pequeno, tinha uns cinco anos. Eu queria saber como aquele pequeno animalzinho conseguiria se salvar do Sol forte, da ausência completa do seu habitat natural. Eu poderia ajudá-lo, dando um empurrão para que ele voltasse para a terra úmida, escondido na brenha de onde não deveria ter saído. Mas não, fiquei observando o animal morrendo aos poucos. Eu não estava feliz com aquilo, mas com certeza era uma experiência que eu precisava passar para saber como determinados seres lutam por sua vida, pela sobrevivência...
.
Ele continuou se mexendo, não entendendo bem para onde ir. Ele sabia apenas que deveria sair daquele lugar, que se continuasse ali morreria queimado. Contorceu-se, moveu-se sem uma direção certa. De repente, parou. Era o fim de sua luta inconsciente pela vida.
.
Algumas pessoas querem a felicidade, mas não sabem como encontrá-la.
.
.
.
* * *
.
Meu amigo me fez lembrar dessa pequena história. Realmente era um comentário muito valioso, de como as coisas acontecem sem percebermos. Eu estava velho, me debatendo sem saber para onde ir.
.
.
(10)
.
Chego ao local combinado com Gracy. Ela estava me esperando. Ela parecia mais baixa agora. Não estava mais com a roupa de enfermeira (Perdeu um pouco a graça, mesmo assim continuava bonita). Muitas vezes as mulheres querem se arrumar demais e acabam cometendo excessos. Não sei bem dizer o quê havia mudado, mas não estava tão bom como era. Ela beijou meu rosto, seu perfume impregnou no meu corpo. Saímos andando sem direção. Eu perguntei se ela estava com fome, ela sorriu. Entramos no primeiro restaurante que encontramos. Na verdade era um boteco. Sentamos, bebemos e comemos.
.
“Você parecia mais brincalhão ontem. Algum problema?” – Ela começa.
“Hoje não é o melhor dia para nos encontrarmos”
.
Lembrei do encontro com Diego e como isso me fazia ter péssimas lembranças.
.
“É uma pena. Estava imaginando muitas coisas com você” – Ela continua.
“Alguma coisa especial?”
“Desde ontem, imaginando como seria estar com você.”
“Uma coisa está na minha cabeça. Não consigo dormir direito.”
“Sua mãe?”
“Não. Não é minha mãe”.
.
Pedimos mais bebida. De repente fiquei sem vontade de estar com Gracy. Aquela coisa estranha que eu estava sentindo quando recebi o primeiro telefonema de Lílian, voltara acontecer. Sentia um vazio, um negócio louco; como se não houvesse som, nem perfume; nem nada.
.
A conversa no elevador me deixou desanimado, era verdade. Eu realmente estava esperando o tempo passar sem fazer nada com ele, sem aproveitar as melhores coisas da vida, sem procurar a minha felicidade. Eu estava me sentindo como aquela minhoca, na época da minha infância, que se contorceu por vários minutos até morrer seca e sem entender os motivos da morte. Estou ficando velho e sem motivação.
.
“Será que estou na crise dos quarenta?”
“Tanto homem querendo transar comigo e eu escolho um cara cheio de problemas”
“Não tenho problemas, só estou preocupado.”
“Vamos, esquece. Precisa se divertir um pouco.”
.
Gracy põe a mão na minha perna, sobe lentamente. Sua boca está bem vermelha, seus olhos brilham.
.
“Vamos para seu apartamento?” – Ela insiste.
“Está um lixo meu apartamento. Mandei minha empregada embora.”
“Podemos ir para o meu. Ele está arrumado.”
“Não quero transar” – Fui direto.
“Podemos ficar assistindo um filme de sacanagem, quem sabe você se anima.”
.
Saímos do bar.
.
Gracy morava há três quadras dali. Fomos rápido, ela parecia ter pressa. Subimos alguns degraus, pude ver todo o contorno de suas pernas enquanto subíamos as escadas. Ela estava com uma saia não muito curta, mas o suficiente. Entramos no apartamento. Ela perguntou se eu queria beber alguma coisa. Eu estava ansioso, parecia que era a primeira vez que eu estava saindo com uma mulher. Nem na primeira vez me senti tão incompetente. Estou incapaz, não é possível. Gracy dança na minha frente, vai tirando a roupa. De repente puxa a minha camisa. Ainda estou desanimado. Ela põe a mão dentro da minha calça: um pedaço inanimado de músculo. Músculo, nervo, carne; sei lá que coisa é um pênis. Ela tira a mão, assustada com minha inoperância. Eu sei que ela não irá insistir por muito tempo. Penso na Simone, da primeira vez que transamos.
.
“Você tem que relaxar. Quer beber algo?”
“Já disse que não estou num bom dia”
“Tenho um filme ótimo. Umas branquelas. Por quê queria sair comigo se gostava mesmo de umas branquinhas?”
“Não é isso. Que bobagem!”
“Não queria estar comigo?”
.
Ela me agarra novamente. Transamos.
.
* * *
.
Do outro lado da cidade, Alberto está deitado na cama, assistindo novela. Ele está com uma cerveja na mão. Aos seus pés uma garota dorme. Ambos estão esgotados por aquela noite. Não havia mais nada para aprender nem para ensinar.
.
.
(11)
.
Na sala dois homens conversam. Um loiro alto, de aproximadamente trinta anos. Um outro mais baixo, moreno. Eles estão na mesma casa onde Alberto está com a garota. O mais alto pega uma cerveja na geladeira, senta-se ao lado do mais baixo. Eles se abraçam. Não parecem estar bêbados. Ligam a televisão, mas não prestam atenção nas cenas da novela.
.
“Não foi boa idéia trazer o velho para cá” – Loiro.
“Queria fazer o quê?” – Moreno.
“Mal conhecemos o sujeito”
“Ele estava pagando a cerveja”
“Isso é motivo de querer ajudar um bêbado?”
“Ele não é bêbado, não parece ser”
“Além do mais trouxe essa vadia para dentro de casa”
“Coitada da menina”
“Acho que vai dar merda esse troço!”
“Daqui a pouco eles vão embora, eles prometeram que queriam apenas um lugar para dormir”
.
Os dois rapazes se abraçam novamente. Dormem juntos no sofá da sala.
.
* * *
.
Acordo cedo. Não queria ser visto saindo do apartamento de Gracy. Tomo um banho rápido. Ela está na cama, seu corpo descoberto. Completamente nua. Gracy era uma mulher maravilhosa, mas com certeza não perderia tempo comigo. Era uma coisa passageira, uma coisa de curiosidade. Mulheres são curiosas em relação ao sexo, assim como os homens. Somos todos curiosos. Os homens querem experimentar o novo, mulheres o que lhes chama atenção. Por algum motivo eu chamei sua atenção. Mas agora está acabado. Vou embora sem me despedir, não queria acordá-la.
.
* * *
.
Uma nova pista sobre a localização de Alberto.
.
“Vimos seu homem numa boate gay”
“Boate gay?”
“Não é propriamente gay”
“Estava com alguém?”
“Meu ajudante disse que ele estava com uma mulher, uma garota de aproximadamente vinte anos. Acompanhadas de dois homens mais velhos.”
“Sei”
“Eles beberam e dançaram”
“E depois?”
“Meu ajudante teve que atender uma ocorrência.”
.
Na manhã seguinte, sai da casa de Gracy e fui ao local indicado por Ferreira. Na boate um sujeito me atendeu dizendo que realmente um homem mais velho, uma garota e dois rapazes estiveram bebendo até duas horas da manhã. Os quatro beberam e o Alberto pagou a conta. Não usou cartão, nem cheque. Tudo com dinheiro. Eles carregaram o sujeito para fora. Não deu para saber para onde eles foram. Outra coisa era certa: um cara falido não pagaria nada para alguém desse jeito, principalmente sem conhecer. Outra coisa: a garota era amante de Alberto.
.
“Tem certeza? É esse cara da foto?”
“Sim. Um pouco mais velho”
“Ele bebeu o quê?”
“É complicado saber, foi de tudo para aquela mesa.”
“Cerveja?”
“Cerveja? Acho que pouco. Beberam mais uísque.”
“A garota que estava junto com eles? Faz serviços?”
“Como assim?”
“Ela é puta?”
“Nunca vi por aqui”
“Usaram drogas?”
“Não senhor”
“Esse sujeito beijou a garota?”
“Se beijaram sim. Os outros dois rapazes também se beijaram”
“Todos beijaram a garota?”
“Não os dois rapazes eram namorados”
.
Eu me complico quando tento entender os relacionamentos amorosos de hoje.
.

(12)
.
A casa continuava do mesmo jeito desde o dia em que fui apresentado para a família de Simone. Parei o carro um pouco distante, mas ao mesmo tempo com visão para todos os movimentos da casa. Era noite. Simone estava na sala, assistindo televisão. Toca o telefone, ela corre para atender. Eu poderia escutar a conversa, mas não era para isso que eu estava ali espionando. Na verdade não sabia a razão de estar ali, apenas estava. Ela corre para o banheiro. Vai para o quarto. Sai de lá arrumada. Depois de uma hora chega um carro, um sujeito sai do carro, entra na casa. Fecham a cortina.
.
Ninguém pode negar o influxo que um amor tem em nossa vida. Pior ainda é essa influência quando o amor não é correspondido. Eu devia ter ficado mais tempo observando o novo romance de Simone, mas resolvi ir embora para casa. Já era o bastante para meu coração aflito, era realmente o final do romance com Simone.
.
No apartamento:
.
Não havia comida na geladeira, nem bebida. Sinceramente me importava mais pela falta do segundo item. Estava sem fome. No armário achei o pacote de cigarro, de quando eu fumava. Havia escondido, pensando que esqueceria o local quando a vontade chegasse. A vontade chegou. Pego o primeiro cigarro, ele me parece úmido. Seguro com as mãos um único cigarro, coloco o pacote no mesmo lugar que havia escondido anteriormente. Passo entre os dedos. O cheiro me faz bem. Coloco o cigarro perto do nariz, o aroma é melhor ainda. Ao mesmo tempo lembro dos problemas de estômago. Sinto uma dor terrível, de repente deixo o cigarro cair no chão. Nunca é um bom presságio cigarro no chão.
.
Sento no sofá com uma terrível e urgente vontade de chorar. Mas apenas durmo. Meu estômago não me incomodou naquela noite.
.
* * *
.
.
.
.
Na minha cabeça, mais um inserto:
.
Dois homens saem da mesma casa num mesmo instante. Um deles está com uma roupa clara e com o cabelo molhado. O outro está com o cabelo molhado e veste roupas claras. Saem, abrem o portão. A rua os ignora. Sobe um ódio, uma raiva qualquer. Ser ignorado é a pior coisa, eles pensam. Amor transformado em ódio: a sensação do abandono causa transtornos em certas pessoas. Ambos continuam andando, com o mesmo destino incerto.
.
Chegam à mesma esquina. Escutam um barulho, parece ser alguém andando. Está vindo na direção deles. É um mistério. Eles param. Pensam no vazio que estavam vivendo agora, continuariam andando. Quem quer que fosse, era preciso tomar uma atitude. No entanto, a expectativa era diferente:
.
Um pensava ser o homicida, outro a vítima.
.
.
.
.

* * *
.
Acordo mais uma vez assustado. Simone aparece mais uma vez na minha cabeça dizendo que eu devia esquecê-la para sempre. Em todos instantes eu precisava acreditar e tudo que ela estava dizendo.
.
.
.
(13)
.
Senhor Alberto estava bem próximo, eu podia prever isso. Mesmo assim não queria dizer para Lílian como estava a investigação. Poderia causar um desconforto, saber que alguma coisa podia dar errado. Era assim: eu precisava achar o velho, saber as razões de ter sumido e convencê-lo a voltar para casa. Antes disso, qualquer coisa, era apenas especulação. Marco um encontro com Lílian, dessa vez nos encontramos num bar. Diferente das outras vezes, eu cheguei atrasado ao encontro. Não dava para perceber, mas eu estava muito desmotivado para o serviço.
.
“Trouxe novidades”
“Estava preocupada”
“Um sujeito muito parecido com seu pai foi encontrado na semana anterior”
“Onde?”
“Prefiro ter certeza antes de falar qualquer coisa”
“E agora?”
“Tenho uma pista interessante, de duas pessoas que andavam com esse sujeito. Eu já localizei os caras.”
“Tem certeza disso? De que pode ser meu pai?”
“Não tenho certeza. Só queria dizer que o serviço continua sendo feito. Se eu não tivesse mais esperança em resolver o caso, eu seria o primeiro a dizer.”
“Sabe que já perdi as minhas”
“Perdeu? Como assim? Tinha quase certeza que encontraríamos o seu pai. Não iria me contratar se não tivesse esperança.”
“Sim. Mas vendo como as coisas aconteceram como elas estão hoje; acho que nunca mais terei meu pai de volta.”
“Como assim?”
.
Lílian explica que já estava se acostumando com a idéia do sumiço do seu pai. Para ela duas hipóteses amplamente apoiadas por mim: uma delas é que seu pai teria fugido de casa por causa de diversos acontecimentos, como a falência, por exemplo. Hoje ele estaria vivendo bem, mas pobre. Se quisesse voltar para casa já teria feito.
.
“Concordo com sua explicação” – Eu digo.
“A outra, é que meu pai está morto, enterrado; sumido no meio do mar. Foi cortado em picadinho, escondido em algum terreno baldio. Portanto, não poderia trazê-lo de volta.”
“Também pode ter acontecido”
“Agora você chega com uma informação nova, dizendo que ele pode estar vivo.”
“Sempre devemos considerar uma chance”
“Esse sujeito que você diz ter encontrado. Pode não ser meu pai, certo?”
“Sim. As pessoas com quem eu falei podem ter se enganado.”
“Ele pode estar morto e eu criando uma expectativa que jamais se cumprirá. Certo?”
.
O silêncio era constrangedor mais uma vez. Lílian sabia que eu tinha uma resposta, mas sabia que eu não diria. Ela toma um gole do suco, parece também ter sentido a pergunta. Fica triste, quieta. A vida é assim, tem certas perguntas que nos fazem matutar, sofrer com a resposta. É uma coisa meio maluca. Nosso cérebro nas suas infinitas ligações, buscando na nossa história uma definição para questões que vivemos quase todos os dias. Se pararmos para pensar, a única coisa certa é que um dia morreremos. Isso chega assustar.
.
“Sua mãe, como está?”
“Melhor. Na medida do possível, melhor.”
“Queria vê-la novamente”
“Podemos. Talvez amanhã.”
“Não quer que eu vá?”
“Estou muito ocupado com a busca pelo seu pai”
“Ele cada dia está ficando menos importante para mim”
“Minha mãe também”
.
Lembrei da minha mãe no hospital e a imagem dela era assustadora.
.

(14)
.
Dois homens na sala. A garota sai do quarto. Eles a observam. Ela entra no banheiro, demora alguns minutos no banho. Entra na cozinha, toma um gole de café amargo. Ela se sentia bem fazendo aquelas coisas em silêncio, não precisava dizer nenhuma palavra para mostrar sua felicidade. Volta para o quarto, deita ao lado do velho. Ele continua dormindo, mal acostumado com a vida boêmia que estava levando nos últimos meses. Ela beija seu pescoço, depois seu peito. Ele se mexe, está acordado.
.
“Estou feliz ao seu lado” – Ela sussurra no ouvido do velho.
“Eu também”
“Nunca ninguém me tratou desse jeito”
“Pena tê-la conhecido só agora, quando não tenho muito tempo de vida”
“Vamos! Temos que ir embora. Eles estão esperando a gente sair. Coloque sua roupa!”
“Preciso dormir mais um pouco”
“Não podemos abusar da hospitalidade dos rapazes”
“Estamos pagando os caras, não se preocupe”
“Precisamos ir. Você mesmo disse que me ajudaria sair do país”
“Só mais um pouco... Preciso dormir mais alguns minutos”
“Tudo bem, dez minutos está bom?”
“Ótimo. Agradeço. Você é um amor. Eu te amo”
“Sim. Volte a dormir”.
.
A garota sai da sala. Os dois rapazes aceitam a oferta da moça: mais uns minutos e eles iriam embora.
.
* * *
.
Vários tripulantes ainda estavam vivos, apesar de todos os transtornos. A fome, a peste e outras doenças surgidas durante a viagem, não eram a maior preocupação do Capitão Stronger. Outros absurdos passavam pela sua cabeça, como pudemos presenciar na conversa que ele teve com seu principal ajudante, quando ambos falavam das baleias que poderiam atacar novamente a embarcação:
.
“Elas podem bater no navio, fazê-lo afundar”
“Fique tranqüilo, nós saberemos quando elas estiverem próximas. Daí nos defenderemos com nossas lanças e canhões”
“Eu confio no senhor, desde os tempos em que meu pai era vivo”
“Diria apenas para você temer os golfinhos assassinos inexistentes”
“Devo temê-los? Nem sem de onde eles vêm?”
“Podem vir de qualquer lugar”
“Mas não podemos matá-los com as lanças e canhões, como iríamos fazer com as baleias?”
“Poderíamos, se esses golfinhos fossem somente assassinos e não inexistentes”
.
* * *
.
Novamente na boate. Queria mais detalhes sobre a garota que estava com Alberto. A mesma pessoa me atende, tenta disfarçar, não revelar nada sobre o assunto. Não tinha jeito, quase sempre conseguimos descobrir a verdade sobre alguém. É só querer e saber perguntar. O rapaz acaba me dizendo que a garota é uma prostituta que atende como Michele. Não teria me dito nada na noite anterior, pois não queria confusão com a polícia. Disse mais: que sua relação com Michele era antiga. Conseguia alguns encontros e dava segurança, em troca pedia algum dinheiro e favores sexuais; mas depois que Michele se envolveu com Valdemar, eles nunca mais trataram de negócios.
.
“Quem é Valdemar?”
“Ele tem umas meninas, uns rapazes. Mas o negócio forte mesmo é o pó”
“O cara vende aqui?”
“Assim você me ferra, autoridade”
“Não sou policial”
“Ele vende sim, não tem como. Se ele não ganha dinheiro aqui, acaba com meu negócio. Sou bobinho perto dele; vendo minhas bebidas e só”
“Qual a relação de Michele com Valdemar?”
“Depois que eu desisti desse negócio de cuidar de vagabunda, Valdemar apareceu oferecendo seus serviços”
“Sim”
“Ele cuidava dela, ela dava dinheiro para ele. Essa porra que você deve saber”
“Os rapazes? Também são do Valdemar?
“Não, os rapazes são clientes somente”
“Onde eles moram?”
“São gente fina. Vá com calma”
“Quero apenas achar o velho”
.
(15)
.
Alberto levanta com dificuldade, já não é mais um menino, ele pensa. Coloca as calças, a camisa. Pega um dinheiro e entrega para um dos garotos. Disse que era pela hospitalidade. Abraça a garota, os dois saem. Michele é o nome dela, agora eu sei. Eles caminham até uma padaria, comem alguma coisa. A expectativa deles era apenas uma: sumir do mapa. Até então eu não sabia dessa situação, mal sabia como eles planejaram isso. Michele e Alberto se aproximaram muito tempo antes, quando ele ainda estava casado.. Essa informação eu acabei descobrindo mais tarde. Assim, diferente do que Lílian pensava; Alberto tinha uma amante, e pior do que isso, ele não estava pobre.
.
Eu chego atraso na casa dos garotos, Alberto e Michele já estavam bem longe dali. A casa era simples, mas bem cuidada. Bato na porta, ninguém atende. Bato mais uma vez, duas; bato diversas vezes. Uma voz grita lá de dentro, dizendo para aguardar um pouco. Escuto o barulho da chave, o Moreno aparece na fresta. Eu digo que preciso conversar, mostro minha identificação. Ele fecha a porta, move as correntes, abre a porta novamente, pedindo para eu entrar.
.
Um sofá de dois lugares, um quadro na parede. Sofá vermelho escuro. Ele pede para eu sentar. Uma televisão pequena e um rádio velho. Eles não tinham muitas posses, mas pareciam viver muito bem. O Loiro chega, mas ele não fala nada durante minha conversa. Na estante alguns livros, eu tento deixá-los à vontade, precisava da confiança deles. Madame Bovary. Eu pego o livro na mão, dou uma olhada. O Moreno me questiona:
.
“Não veio até aqui para falar de Gustave Flaubert?”
“Não, claro que não”
“A mulher sempre é mal vista”
“Se tivesse se casado com Simone iria ter certeza disso”
“Quem é Simone?”
“Minha ex-esposa”
“Esse mundo é muito machista”
“Por isso vivemos tantas perversidades”

A conversa não tinha muito sentido, mas pelo consegui a simpatia dos sujeitos. O Loiro que estava de pé senta-se ao lado do Moreno. Ambos estão curiosos com minha visita.
.
“Vim aqui por causa de um senhor e uma garota que passaram a noite aqui”
“Eu sabia que ia dar merda!! Quem mandou você? Valdemar?”
“Não. Fiquem despreocupados. Nem conheço esse Valdemar”
“Quem é você afinal?”
“Fui enviado pela filha do Alberto, que é o senhor que estava aqui”
“Foram embora logo de manhã” – O Loiro.
“Posso dar uma olhada na casa, saber se eles esqueceram alguma coisa, achar alguma pista?”
“Pode” – Moreno.
.
Os dois me acompanham pela casa. Não havia nada que pudesse me indicar o estado de Alberto e para onde eles foram.
.
“Como se conheceram?”
“Estávamos bebendo. Primeiro foi a Michele que sentou junto conosco, queria que a gente pagasse uma bebida.”
“Sim”
“Depois de alguns minutos de conversa ela ficou sabendo que nos dois éramos namorados” – Moreno segura a mão do Loiro. Eles se olham.
“E o Alberto?”
“Vimos o velho bebendo, jogando bilhar”
“O quê mais eles contaram?”
“Michele começou a beber sem parar, de repente começou a chorar. Acabou confidenciando que estava fugindo do Valdemar. Ele ficou furioso ao saber que ela havia conseguido um coroa rico”
“Sim. O coroa rico é o sujeito que estou procurando”
“Apenas ouvimos os dois fazendo juras, dizendo que sairiam dessa; essas coisas que casais apaixonados sempre dizem”
.
Enquanto conversávamos, eu andava pela casa.
.
“Como vieram aqui?”
“Ele nos deu um dinheiro por emprestar o quarto e o chuveiro”
“Estavam carregando alguma coisa? Mala?”
“Uma mochila pequena para cada um”
“Que horas eles saíram daqui?”
“Umas sete, oito horas”
.
A informação batia com a conversa de uma das vizinhas, que me disse ter visto pessoas estranhas rondando a casa do Breno (esse era o nome do Moreno). Um velho e uma garota. Novamente perdi a oportunidade de pegar Alberto. Mas pelo menos eu tinha absoluta certeza que ele estava vivo e que estava fugindo com a amante.
.
No meio disso, uma coisa veio na cabeça: Alberto estaria fugindo por causa de Michele, que por sua vez estava fugindo de Valdemar?
.
.
(16)
.
O cheiro de comida de hospital me dá enjôo. Quase todo mundo se sente mal. Passo rápido pela recepção, hoje era o dia de folga da Gracy. Depois daquela noite não nos falamos mais. Entro no quarto, um enfermeiro está trocando os curativos. Eu estava enjoado. Gaze, sangue, pus, seringas, tubos e feridas; me deixaram pior ainda. Eu saio do quarto rápido, iria esperar o sujeito terminar o serviço. Fui até o final do corredor, mais uma vez uma vontade de fumar. A vontade passa, isso é um alívio. O enfermeiro sai, eu entro no quarto. Mastigo um comprimido.
.
Minha mãe continua dormindo. Ela está com um rosto melhor, mesmo assim desacordada. Não sei quanto tempo ela ficará daquele jeito. Também não sei dizer quanto tempo eu vou agüentar visitá-la. Coloco uma cadeira bem próxima à cama, queria ler alguma coisa, algum livro de poema. Não trouxe nenhum, nem queria procurar. Também não consigo conversar com uma pessoa que não me responde nada. Já vivi isso diversas vezes com Simone, quando somente eu abria a boca e ela sempre complacente. Fico olhando para minha mãe, lembrando mais uma vez do passado e das coisas magníficas que fazíamos juntos. Acabei dormindo.
.
Outro enfermeiro entra.
.
“O senhor está aqui ainda?” – Eu acordo assustado, olho para o relógio.
“Acho que dormi demais”
“São quase onze horas da noite”
.
Eu levanto, vou até o banheiro. Lavo meus braços, meu rosto. Precisava mesmo era de um banho, mas era impossível nesse momento. O enfermeiro já estava cuidando da minha mãe, ele não podia perder tempo. Saio sem me despedir.
.
* * *
.
Meu pai um dia chegou em casa muito bêbado. Eu devia ter uns oito anos. Entrou no banheiro e tomou um banho gelado. Ele me disse depois que fez isso para tentar passar a bebedeira, não queria que eu o visse daquele jeito. Minha mãe brigou, fez um escândalo. Onde se viu homem direito ficar no bar bebendo, ela disse. Meu pai respirou fundo, ele não estava bem realmente. Minha mãe continuou a discussão, colocou o dedo na cara dele dizendo inúmeras barbaridades. Eu não tinha noção de certas palavras, mas o tom da voz e a forma como eram ditas era esclarecedor. Meu pai era uma pessoa boa e trabalhadora; isso parecia não ser as únicas qualidades que minha mãe admirava em um homem.
.
No meio da briga, ele se levanta do sofá, onde estava pacientemente ouvindo minha mãe. Puxou-me pelo braço e me levou até o quarto. Minha mãe continuou atrás dele, xingando. Ele me colocou no quarto e disse que iria resolver umas coisas. Beijou-me o rosto. Disse que me amava. Disse que eu sempre precisava ser correto em minhas escolhas, e principalmente ser uma pessoa honesta. Depois disso ele sumiu de casa.
.
Naquele dia ele tinha perdido o emprego.
.
* * *
.
Alberto estava livre e feliz. Era tudo que ele precisava. Combinou com Michele uma viagem para o exterior, ela precisava organizar os documentos. Iriam para Itália. Michele adorou a notícia, nunca tinha saído do país. Continuam a conversa enquanto outros pedestres passam apressados. Ele queria ficar pelo menos um ano viajando. Gostava da Espanha. Poderiam conhecer a Europa inteira. Os olhos de Michele brilhavam pelo glamour, os olhos dele por causa da paixão. Fugiria com ele para qualquer lugar, ainda mais sabendo que ficaria livre de Valdemar.
.

(17)
.
Eu tinha uma amiga que trabalhou como prostituta. Cheguei a procurá-la outras vezes para resolver casos de adultério. Ela sempre estava disposta a me ouvir e a me dar conselhos. Curiosamente nunca tivemos nada, apesar da facilidade no trato e de muitas vezes a disponibilidade para o sexo. Ela era bonita quando mais nova, hoje não conseguia esconder os ombros caídos; assim como quase todas as partes do corpo. Quando se arrumava parecia uma daquelas mulheres grã-finas. Do jeito que a encontrei, parecia mesmo que estava tomando conta de outras prostitutas.
.
“Faz tempo que não aparece” – Ela brincando comigo para surpresa das outras moças, pois quase sempre mantinha uma cara fechada.
“Apareci, pois preciso de um favor”
“Eu sabia que não era para me trazer coisa boa”
“Vai gostar do favor que vou pedir”
“Vamos lá, quero só ouvir”
“Quero que jante comigo amanhã”
“Mas isso não é um favor!”
.
No outro dia estávamos jantando. Logo em seguida chega a Simone com um sujeito. Simone fica constrangida quando me vê. Eu apenas dou um sorriso que queria dizer “eu não sou o lixo que você pensava”. Pior ainda, meu pensamento queria voar alto por todo salão, com a frase: “Não preciso mais de você!!”.
.
“É para isso que me trouxe aqui? Para fazer ciúme para sua ex-esposa?”
“Você já é motivo de ciúme de várias esposas. Vai se preocupar por causa de uma?”
“Não ligo mesmo. Beijaria você agora mesmo, sabe que sou muito louca por você”
“Vamos com calma, sempre me diz isso”
“Podemos sair daqui sorrindo, seguir sua esposa para o mesmo motel”
“Quem disse que ela vai para o motel quando sair daqui?”
“Você é muito bobo. Olha para a cara da infeliz! Ela está com uma vontade de dar para aquele homem”
“Você acha o cara bonito? Sem brincadeira. Acha ele mais bonito do que eu?”
“Ele é mais bonito que você, mas você é mais inteligente.”
“Não vale”
“Claro que vale. A inteligência é diferencial, oras. Pau todos têm”
.
Eu não disse mais nenhuma palavra até o final da noite. Não sabia se era melhor ser bonito ou inteligente. As mulheres querem isso dos homens, mas poucas se esforçam em ser mais carinhosas, menos possessivas e mais liberais. Homens bonitos ou inteligentes? Mulheres vadias ou inocentes? Talvez elas procurem de forma errada os homens certos e nós procuramos de forma certa as mulheres erradas.
.
“Queria saber se você conhece alguma Michele”
“Tantas que eu conheço. Está interessado?”
“Esta, em especial, trabalhou no Marechal para um tal de Valdermar”
“Acho que está falando de uma menina nova, com carinha de santa; olhos claros. Quer dizer que ela foi parar na mão do Valdermar?”
“Conhece?”
“Michele, acho que eu sei quem é. Chegou no puteiro crua de tudo, mau saia segurar o pau de um cara!” – Eu me escondo envergonhado, nem sempre ela falava baixo – “Eu mandei a tadinha embora, não tenho mais paciência com amadoras”
“Sabe onde posso encontrá-la?”
“Se ela trabalha para o Valdemar, só pode estar no Marechal”
“Estive lá, disseram que ela fugiu com um velho ricaço”
“Meu filho, se fugiu do Valdermar, ou está morta ou está saindo do país”
.
A conversa com minha amiga foi confirmada mais tarde.
.
.
(18)
.
Chego em casa. Tomo um banho. Continuava não existindo nada na geladeira, nem nos armários. O pacote de cigarro estava bem escondido, mas não tive vontade. A dor no estômago ficou pior depois de algumas cervejas. No bolso o último comprimido, coloco na boca, mastigo. O calor tinha diminuído, as noites eram mais frias. Ligo a televisão. Mal consigo ver parte do filme, estava novamente dormindo. Meus dias têm acabado dessa forma, eu dormindo sem perceber nada, sem sentir dor nenhuma; apenas desabando no sofá. Meu corpo doía, não conseguia pensar na Simone, na Gracy muito menos na minha amiga. Todas chances foram jogadas na lata do lixo. Estava exausto para qualquer manifestação de amor ou sexo, ou as duas coisas juntas.
.
Não vi que Lílian tinha deixado um recado na secretária.
.
* * *
.
.
.
.
Potye estava com medo da máquina. Medo da máquina, nem tanto; mas onde ela poderia levá-lo. Talvez com alguns cálculos pudesse determinar com precisão o ponto aonde chegaria. Era arriscado, toda teoria ainda não estava pronta. A máquina, por insistência da esposa, estava pintada de vermelho. Num primeiro momento, Potye queria que a máquina fosse verde. Ela argumentava que o vermelho era a cor preferida de todos os artistas da época, poderia ser a cor também dos cientistas.
.
- Mas eu vou para o futuro, lembre-se disso! Vermelho pode significar guerra! Como você receberia alguém hoje, se chegasse numa máquina do tempo pintada de vermelho?!
.
Ele aperta o botão. Um estalo, a mulher cai no chão. Levanta-se calmamente, a máquina ainda está parada no mesmo lugar. Ela olha um sujeito sair lá de dentro, todo machucado e com as roupas rasgadas. Ele tinha voltado do futuro.
.
- Eles pensaram que era uma máquina de guerra. E não disse que isso aconteceria?! “
- Meu Deus! Quem é você?
.
Não pode haver lembranças do futuro.
.
* * *
.
De manhã ligo para Lílian. É claro que ela queria saber como andava as investigações. Eu disse que poderia mostrar algumas coisas, que deveríamos nos encontrar. Ela disse que não era preciso, ela queria apenas um resumo dos últimos acontecimentos. Assim como demonstrou no último encontro, ela estava sem esperança de encontrar o pai. Contei a verdade.
.
“Quer dizer que meu pai está com uma vagabundinha de olhos claros?”
“Sim, tenho quase certeza”
“Acha mesmo que vou acreditar numa coisa dessas? Sabe quem é meu pai? Eu deixei tudo anotado para você! Ele era uma pessoa honrada, está sabendo?”
“Sei, mas eu não estou inventando nada disso.”
“Não quero mais ouvi-lo com suas teorias sem fundamento. Está desrespeitando a memória do meu pai, onde quer que ele esteja.“
“Ele está próximo, posso apostar.”
“Pode parar com o serviço. Deveria saber que não era o mais indicado para o assunto.”
.
Não iria parar o serviço até saber a verdade, e foi isso que disse para Lílian ao telefone.
.
.
.
(19)
.
Acabo de desligar o telefone. Ele toca novamente. Não era Lílian, eu tinha certeza. Também não estava com vontade de atender. Toca duas vezes. Poderia ser alguma notícia do hospital, sobre a saúde da minha mãe. Poderia ser o delegado, com mais alguma novidade. Toca três vezes. Eu pego o telefone, espero a voz do outro lado da linha. Para minha surpresa era Gracy:
.
“Desculpe ligar assim para sua casa”
“Minha mãe? Aconteceu alguma coisa?” – Eu imaginando o motivo da ligação.
“Não. Não é sobre sua mãe.”
“Eu quero me desculpar, de não procurá-la. Andei atarefado com o caso que te contei.”
“Então, queria sair de novo. Um outro dia, quem sabe? Acho que não deixei uma impressão boa.”
“Claro que deixou. Você é fantástica.”
“É que às vezes sou assim mesmo, acabo inibindo os homens. Acho que é por isso que eu não casei ainda.”
“Você não me deixou inibido, pode ter certeza.”
“Você foi embora, nem disse se gostou da nossa relação.”
“Foi ótimo. Pode ter certeza.”
“Queria encontrar você novamente.”
.
Era evidente que ela tinha me deixado confuso. Ela era muito mais do que eu esperava. Muito mais atirada do que eu supunha. Mas não era por isso que eu estava evitando um contato. Achava mesmo que ela era uma mulher que não iria se contentar com meu jeito, meu modo de ver as coisas. Eu não queria me apegar a ninguém. Não queria compromisso, não queria ter que dividir o mesmo quarto, ter que dar satisfação da minha vida, onde estou e com quem. Meu sonho aparece novamente na cabeça, eu fecho os olhos e só vejo Simone.
.
“Muitos homens acabam fugindo da minha vida, pois acham que eu não dou a mínima para eles.”
“Eu acho que você liga para mim.”
“Ligo. Claro. Ligo. Mas não vou querer ficar tomando conta da sua vida. Hoje mesmo vou sair com umas amigas, e você; se tivéssemos namorando, poderia sair também. Sem esse lance de ciúme, de posse e coisa e tal.”
.
Ela parecia ler meus pensamentos.
.
* * *
.
.
O homem chega. Está embriagado. Abre a porta, grita o nome da esposa e dos filhos. Não escuta nenhuma resposta. A primeira coisa que ele pensa: “Todos devem estar dormindo”. Vai até o quarto, depois para o banheiro, olha na sala. Não há ninguém na casa. Apenas ele andando de um lado para o outro. Ele pára novamente: “Devem estar todos dormindo”. Continuou a procura, dizendo sempre a mesma coisa: “Devem estar dormindo”. Horas e horas andando de um lado para o outro.
.
O homem só acreditou que estava abandonado quando percebeu que era ele quem não estava dormindo.
.
* * *
.
Não prometi nada para Gracy. Estava realmente ocupado com o trabalho, preocupado com minha mãe e desapontado com Simone. Minha vida inútil estava sendo preenchida por coisas que eu odiava, mesmo assim necessárias. Conversamos normalmente, eu e Gracy, durante mais alguns minutos. Nós dois estávamos cansados. De repente a conversa começou a ficar vazia e sem sentido. Parecíamos dois bêbados conversando coisas sem importância.
.
Despedimo-nos sem criar nenhuma expectativa em relação ao outro.
.
.
.
.
(20)
.
Michele. Michele. O nome não saia da minha cabeça. Onde ela poderia estar levando o velho? Acordo no meio da madrugada. Era difícil ter insônia, mas bastava um negócio mal resolvido para eu perder o sono por diversas noites. Estava vivendo uma situação dessas: Michele, o velho, os dois rapazes, a filha que não acredita no meu trabalho. Os dois fugindo. O dinheiro que ele tirava não-sei onde (já que a filha informava que o pai estava falido). Gracy e Simone. Pior: Simone e o novo namorado. Adorava sonhar com Simone. Minha mãe quase morrendo. Tantas coisas passando pela minha cabeça e todos os problemas sem solução. Mantinha a televisão ligada para melhor suportar o pesadelo.
.
Consigo dormir, mas outra situação não menos complicada me faz acordar várias vezes: a vontade de fumar. Cheguei a colocar um cigarro na boca, desistindo logo em seguida. Seria patético fumar agora, depois de cinco anos de abstinência. Podemos ficar livres de vários vícios: comer doce, fazer sexo, fumar e beber. Todos eles estão relacionados. Quando eu parei de fumar fiquei com uma vontade terrível de fazer sexo. Talvez tenha exagerado nessa época com Simone, nos dois começamos a ficar distantes. Eu procurei outras mulheres, ela possivelmente outros homens. Sem sexo quis beber, sem beber quis fumar; e assim fui levando a vida. Hoje estou sem sexo, sem bebida e sem cigarro e não me importo.
.
Alberto estar fugindo do país era uma situação tão evidente agora que não tinha como eu não entender como verdadeira. Assim, acabo procurando o Delegado Ferreira pedindo mais um favor. Ele me diz que já era difícil descobrir essas coisas, principalmente sem uma ordem judicial. Mesmo assim disse que ficaria de olhos abertos. Tinha uns amigos que poderiam ser úteis agora. Coisa de troca de favores e assuntos não muito agradáveis para se dizer agora. Ferreira disse que Alberto não sairia do país sem eu saber.
.
Qual o motivo da fuga? A pergunta na minha cabeça tomando grandes proporções: Alberto está querendo fugir e eu também. Ele tem motivos e eu?
.
No dia seguinte uma ligação do delegado:
.
“Acho que encontramos o sujeito”
“Não brinca? Onde?”
“Ele comprou passagem para duas pessoas”
“Isso. Ele está com uma garota”
“Vão viajar na sexta-feira”
“Essa informação é ótima!”
“Podemos segurá-lo, prendê-lo, torturá-lo. Você quem decide!”
“Não preciso nada disso”
“Já disse: você paga, você manda!”
“Deixa comigo de agora em diante”
“Como o senhor quiser”
.
Ferreira me passa os dados. Eu tentaria convencê-lo a não viajar. Sinceramente não sabia se conseguiria fazer isso, possivelmente ele estava disposto a salvar Michele. Mas tentaria. Se possível marcaria um encontro com Lílian, a levaria comigo; se fosse o caso. Mas um assunto que aconteceu no meio disso tudo, me fez mudar os planos.
.
* * *
.
Alberto coloca umas coisas na mala. Eles estão hospedados num hotel no centro da cidade. Michele está tomando banho. Alberto carregava uma arma. Não precisaria mais daquilo. Já estava tudo planejado: pegariam um vôo para Europa, ficariam algumas semanas, voltariam para América do Sul e posteriormente para o nordeste brasileiro. Até lá, tudo estaria resolvido com Valdemar. Alberto entra no banheiro com Michele, os dois se divertem com a água quente e com a espuma que se formou em seus corpos. Ele sai do chuveiro.
.
Batem na porta.
.
.
(21)
.
Chego bem perto da minha mãe. Precisava dizer algumas coisas, eu sabia que ela não tinha muitos dias de vida. Não era uma questão de ter fé, esperança ou qualquer dessas baboseiras. Eu sabia que ela estava morrendo e que eu poderia fazer nada. Seu rosto estava pálido, muito mais do que o normal. Já estava me acostumando com sua falta de cor, mas agora parecia pior. Dois novos tubos em seu corpo, um que saia de sua barriga e outro na altura do pescoço. Pego uma cadeira, sento-me ao seu lado. Já disse, não consigo conversar com ninguém que não consegue me responder. Dessa vez era preciso.
.
Disse em seu ouvido que ela tinha sido uma boa mãe, apesar de tantos problemas que tivemos. Contei que meu pai me procurou, depois da briga entre eles, que ocasionou o desaparecimento dele. Disse mais: meu pai me confidenciou que a amava de verdade, mas que depois de dez anos de abandono, acabou formando outra família. Minha mãe parecia ouvir atentamente, sem esboçar nenhum sentimento qualquer. Por último, disse que meu pai morreu dias antes dela passar mal e ser internada nesse hospital. Isso era tudo que eu tinha guardado comigo, estava esperando apenas que ela acordasse e pudesse me ouvir. Não tinha mais esperanças que ela me respondesse algo.
.
Nessa mesma noite me encontrei com Gracy. Ela estava chegando para o seu plantão no hospital. Ela me olhou, meio sem jeito. Ficamos assim, um querendo conversar com o outro, mas sem qualquer assunto. Eu sentei em uma cadeira de espera, onde uma velha ao meu lado não parava de tossir. Gracy pediu para eu aguardar alguns minutos, precisava conversar comigo.
.
“Acho que a gente não ia dar certo” – Eu comecei.
“Como pode ter certeza?”
“Somos muito diferentes”
“A gente nem tentou”
“Não quero minha vida como antes. Sabe que tive dificuldades com Simone”
“Eu sei que ainda gosta da sua esposa”
“Pode ser. Não sei.”
“Gosta sim. Gosta de sofrer. Mas sabe de uma coisa? Não tenho nada haver com isso.”
“Não queria que acabássemos desse jeito.”
“Não vai acabar. Não pode acabar uma coisa que nem começou.”
“Posso te ligar?”
“Não. Não quero mais que venha me procurar, e se possível não me venha visitar sua mãe nos dias em que eu estiver trabalhando.”
.
No fundo, parecia que cada vez mais, estava ficando igual a minha mãe. A diferença era que ela estava numa cama, mal se mexia. Eu continuava andando de um lado para o outro, mas sem vontade nenhuma. Fazia as coisas por impulso, por instinto; não por gosto ou desejo. A verdade era essa: estava procurando um velho que havia fugido com a amante. Que mal há nisso? Ele pelo menos sente vibrar a paixão, o amor ardendo; o amor que cega e nos faz cometer certas bobagens. Eu? Infrutífero. Quem eu devia procurar afinal? Encontrar o velho que estava vivendo feliz em sua fantasia ou procurar-me no velho que é infeliz com sua realidade?
.
Vou embora, não precisava mais ficar com minha mãe. Passo pelo corredor. Gracy está na janela. Nós nos olhamos. Gracy me ligou depois de dois dias informando a morte de minha mãe.
.
.
* * *
.
Alberto abre a porta. Um sujeito alto e mal encarado invade o quarto. Outro sujeito também entra. Ele está vestindo um terno cinza. Ele é mais baixo que os outros dois homens. Aparenta a mesma idade de Alberto. De repente, mais dois sujeitos invadem o quarto. Michele continua tomando banho, nem imagina o que está acontecendo.
.
“Eu ia te procurar” – Alberto se antecipando.
“Mas não foi” – O sujeito mais baixo responde.
“Eu ia convencer Michele a falar com você”
“Muito bom, agora vejo que está me entendendo!” – O mais baixo falando com ironia.
“Hoje mesmo iríamos procurá-lo”
“O que são essas malas?”
“Depois de tudo acertado, sairíamos do país.”
“Pensa que as coisas seriam resolvidas facilmente”
“Com sua boa vontade, nós encontraríamos uma saída.”
“Nunca tive boa vontade!!”
.
Um tiro na cabeça do Alberto, ele cai de costas. Michele escuta o barulho, mas não dá tempo de saber o motivo da invasão. O mais alto entra no banheiro, ainda consegue vislumbrar o corpo nu de Michele tentando se esconder inutilmente. No outro dia a camareira encontra dois corpos: Michele e Alberto estavam mortos.
.
.
.
(22)

Às vezes achamos que nossa vida não tem sentido. Quase sempre acertamos nessa análise. Nossa vida é apenas um ritual mal resolvido de fatos cotidianos. Numa hora estamos felizes, noutras estamos tristes. Nem sempre sabemos o que estamos procurando, mas é certo estarmos dispostos em reclamar das derrotas, das vicissitudes e da falta de alguma coisa. Lembrei novamente do meu amigo, que encontrei no elevador outro dia: as coisas acontecem sem percebermos. É a vida. Eu poderia ter contado a verdade para minha mãe quando ela estava com saúde, depois de morta não serviria mais a história. Ela que sofreu tanto pelo sumiço do meu pai, não pode saber que ele estava bem.
.
Encontrar Alberto passou a ser propósito de Lílian. Talvez tenha errado com minha mãe, em não ter lhe dito a verdade; não queria errar com Lílian. Não era mais por dinheiro que eu estava indo de um lado para o outro atrás de um velho e sua amante. Eu fazia aquilo, pois queria dar alguma dignidade para minha vida. Que diabos estou fazendo com meu tempo?! Ele ia passando. Somente passando. Corro o risco de não terminar o serviço, o velho desaparecer para sempre sem que Lílian tenha notícias. Qual seria o valor de mais uma derrota? Não posso errar mais uma vez!
.
Também, nessa história toda, penso em Simone. Eu que fingia em todo instante ser um pobre infeliz, não admitida na minha cabeça todos os acontecimentos que eu mesmo havia criado. Simone não está errada em arrumar um namorado. Nunca esteve errada em me abandonar, pegar suas coisas e sair para nunca mais voltar. Não está errada em não querer mais falar comigo, nem atender os telefonemas. Não está errada em não me desculpar. Não está errada em nada. Absolutamente em nada.
.
.
* * *
.
Um lança a isca, o anzol preso na ponta. O rio estava limpo e quente, era um bom indício de que os peixes seriam capturados com mais facilidade. Com o frio eles costumam ficar juntos, em um canto qualquer, bem fundo. A água suja também não deixa nítida a comida. Ficaram assim por duas horas, olhando o rio ir embora e os peixes reclusos. Um lança o anzol, o outro lança a isca logo em seguida. Demoram sem pegar nenhum peixe:
.
“Pensei que seria melhor hoje” – Um.
“Nem sempre estamos com sorte” – O outro.
“Estamos com sorte sim. Eu poderia estar em casa sem nada para fazer, mas ainda estou aqui pescando.”
“Não viemos para pegar peixes?”
“Nem sempre os motivos estão claros”
.
Um peixe morde a isca. Um puxa devagar. Era um peixe minúsculo, muito pequeno mesmo. Um tira o peixe delicadamente do anzol, chego perto do rio, coloco o bichinho novamente na água. Ele sai nadando para as profundezas.
.
“Não queria pegar um peixe?” – O outro pergunta.
“Nem sempre os motivos estão claros” – Responde Um.
“Mas estava reclamando agora mesmo que não conseguia pegar nada! Melhor pequeno do que nada!”
.
Outro peixe morde a isca, dessa vez a isca é do Outro. O peixe era menor ainda do que Um havia capturado. Ele puxa a vara com rapidez, tira o peixe e coloca na sacola. Diz:
.
“Vamos embora. Hoje não foi um dia bom, mas não tenho o que reclamar. Vai dar para fazer um belo ensopado com esse peixe!”
.
Ambos pegaram um peixe parecido, mas a infelicidade maior era daquele que tinha imaginação.
.
.
.
.
(23)
.
Num tempo passado:
.
Entro no elevador. Simone ainda morava comigo. Tivemos uma briga boba, dessas que sempre acontecem com casais. Eu saio correndo, talvez relembrando o meu pai quando deixou minha mãe falando sozinho. Estou no elevador. Uma mulher está chorando. Eu sei que ela é moradora do prédio, já tínhamos nos encontrados outras vezes. Eu me aproximo. O problema dela parece ser muito parecido com o meu, conversamos. Jennifer tinha acabado de brigar com o marido.
.
Pulo a história da conquista (ela é cheia de coisas tolas): Jennifer e eu começamos a nos encontrar. Era uma paixão meio descontrolada. Era minha época de deixar o cigarro, parar de beber; todas aquelas coisas que eu comentei agora pouco. Saímos escondidos pelo menos duas vezes por semana: cinema, hotel, carro, bar, lanchonete, praça e afins. Todo lugar era motivo e sem nenhuma programação, acabávamos juntos.
.
“Me bate!”
.
Nunca levantei a mão para qualquer mulher.
.
“Me bate! Vamos!”
.
Doçura? Jennifer não queria doçura. Dane-se, eu dizia. Batia.
.
Um dia a coisa pareceu grotesca demais. Disse que deveríamos esperar um pouco, nossa relação estava ficando maior do que eu imaginava. Além disso, eu havia feito as pazes com Simone, estávamos vivendo melhor do que antes. Jennifer disse que ia contar para todo mundo que tínhamos um caso. Não acreditava ser possível, para mim era um blefe. Ela não seria capaz de contar sobre nosso caso. Ela repetia que contaria para Simone. Eu conseguia convencê-la a desistir.
.
“Comprei um brinquedo novo”
“Não posso te encontrar”
“Vamos. É nossa despedida”
“Não posso, eu já disse.”
.
Não deveria ter ido. Jennifer armou tudo para que Simone nos pegasse em flagrante. Foi horrível. A sensação de incapacidade que eu tive, de não poder justificar nada; muito menos de corrigir o que estava fazendo. Simone saiu correndo, pegou suas coisas e lembranças e foi embora. Fiquei com raiva, com ódio de Jennifer. Eu iria contar tudo para o marido dela, talvez querendo pagar na mesma moeda. O marido de Jennifer era Diego, o meu amigo do colégio, o cara do elevador. Não contei nada. Até hoje não sei se ele sabe ou desconfiou de alguma coisa. Daquele dia, nunca mais sai com Jennifer.
.
* * *
.
No Hotel onde Alberto estava com Michele:
.
Os policiais entram no quarto do hotel. A camareira diz que não mexeu em nada. No tapete, perto da entrada, um homem de aproximadamente sessenta anos. Ele está com a toalha enrolada no corpo. Uma poça de sangue se forma bem onde ele levou um tiro. Delegado Ferreira entra, não quer olhar muito para o corpo. Desde pequeno sente hematofobia, repulsa em ver sangue. Anda pelo quarto, empurra a porta do banheiro com a ponta da caneta. Dentro da banheira uma garota de mais ou menos vinte anos. Um tiro na cabeça. Ela está nua. Ferreira lembra de mim, pega uma foto que estava no paletó, olha mais uma vez para o defunto estirado no chão:
.
“Achamos seu homem” – Ferreira ao telefone.
“Diga onde você está que eu quero falar com ele”
“Vai ser complicado falar com ele agora, mas se quiser vir, fique à vontade.”
.
Ferreira dá o endereço do hotel.
.
.
(24)
.
O corpo estava no chão ainda quando cheguei. Olho para o morto. É o Alberto, tenho certeza. Pego a documentação com os investigadores. Alberto pai de Lílian estava morto no chão de um hotel perto do aeroporto. A garota, ainda nua na banheira: vinte e cinco anos; nom de saint Tamires. Dane-se a garota, para mim nom de guerre Michele. Ferreira diz que logo levarão o corpo. Eu tiro algumas fotos, pego algumas coisas do sujeito. Tudo era permitido com uma boa conversa. Um relógio e uma pulseira de ouro. Coloco num saco plástico. A prova que Lílian precisava.
.
Entro no carro, o estômago nunca doeu tanto como agora. Mastigo um comprimido. Lembro de minha mãe, lembro do meu pai; da Simone. O sujeito tinha um sonho, morreu por causa dele. Quis sumir com uma menina com quarenta anos mais nova. Mesmo assim decidiu ser feliz. O que estou fazendo pela minha felicidade?
.
* * *
.
Pego um punhado de terra, jogo sobre o caixão. Duas tias, um primo e uma vizinha estavam no enterro de minha mãe. Simone passou muito rápido pelo velório, antes que eu chegasse. O caixão vai descendo. Não encontro lágrima alguma. Não porque não quisesse chorar, mas por não achar motivos. Vai descendo, lentamente. Palavras são ditas, não presto atenção. Sempre tive medo de qualquer liturgia. O corpo desce, as memórias vão desaparecendo. É o fim.
.
* * *
.
Chego muito antes do combinado com Lílian. Dessa vez não estava preocupado com ninguém querendo me matar, ser uma tocaia ou coisa do gênero. Queria pensar em tudo antes de falar para Lílian. Uma parte já estava na cabeça, outra na pasta que estava carregando: o relógio, as fotos e a pulseira. Diria que Alberto foi encontrado morto num hotel com sua amante. Que os dois estavam combinando fugir do país, que a polícia estava investigando o caso e era quase certo que o criminoso era Valdemar, um famoso traficante que gerenciava prostituta e vendia drogas. Seria muito cruel ouvir isso, mas era a verdade.
.
Lílian chega. Ela está sorrindo.
.
“Quando o senhor me ligou eu quase chorei”
“Sente-se”
“Eu estive pensando no que o senhor me disse: sem esperança não podemos viver! Ai eu acordei hoje pensando: com certeza Torres vai me dar uma boa notícia. Coloquei a melhor roupa, passei o melhor perfume. Pensei em meu pai.”
“Fez bem”
“Até sonhei com ele. Ele me disse que estava tudo bem. Meu Deus!! Minhas preces foram atendidas!”
.
Como dizer a verdade? Eu fiquei pensando enquanto ela não parava de falar, de forma otimista e eufórica.
.
“Olhei para minha mãe hoje de manhã e disse: Acho que hoje vai ser um grande dia!”
“Todos nós esperamos por dias melhores!” – Pego a pasta com as provas – “Mas não tenho boas notícias!”
.
Lílian começa chorar. Tinha acabado com seu sonho. Recuei, coloquei a pasta novamente no chão.
.
“A péssima notícia que tenho é que perdi umas pistas. Outras eram falsas”
“Como assim?”
“Eu disse para você que tinha uma pista”
“Sim”
“Era falsa. Encontrei o velho e a amante numa boate. Mas não era seu pai”
.
Ela silencia.
.
“Acho impossível encontrar seu pai. Acho que você estava certa quando disse que eu não era mais indicado para o serviço.”
“Não entendo”
“Estou acostumado com adultério, com casos simples. Mas desaparecimento eu nunca trabalhei”
“Não tem vergonha de me fazer perder tempo e de me criar esperança?!”
“Tenho vergonha de muitas coisas horríveis que fiz em minha vida! Mas disso não”
“E agora?”
“Não perca a esperança, vou indicar um amigo; ele é muito bom nisso.”
.
Lílian se levanta, indignada. Eu pego meu copo de conhaque. Tomo um gole, respiro fundo. Não vai demorar muito para que ela descubra sobre o pai, com certeza vai aparecer em todos os jornais e revistas do país. Mais um gole, reflexivo. Um sorriso no canto da boca: consegui resolver um caso! De repente uma sensação triste, a mesma tristeza de Lílian: não tenho mais esperanças na vida! Ela vai embora com suas dúvidas, eu continuo sentado com minhas certezas.
.
.
.
FIM