sábado, 30 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 21, 22 e 23

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21
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Tanto tempo para perceber a vida. Descobri tarde, quando não podia mais fazer nada. Se soubesse, todos os instantes seriam mais do que instantes. Abro os olhos, Luisa ficou a noite inteira comigo. Leo apareceu mas foi logo embora. Estou deitado na cama de hospital, novamente os tubos e os medicamentos pelo corpo. Luisa está numa cadeira, do meu lado. Ela não percebe que acordei, tento sussurrar seu nome. Ela está cansada, quase dormindo naquela posição incomoda. Tento mais uma vez chamá-la, minha voz sai fraca. Luisa dorme.
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O fato de Paul estar morto divide os fãs. Alguns não acreditavam na história, pensando ser apenas uma jogada do mercado fonográfico. Eu não duvido, mas não acredito nos motivos. Outros acham que ele morreu mesmo, e que vários sinais foram deixados pela banda desde 1966. Eu vi Leo chorar uma vez, quando tocamos no assunto. Leo acreditava que um sujeito muito parecido e talentoso estaria se passando por Paul. Tão talentoso que ninguém conseguia notar a diferença. É claro, ele estava bêbado e eu também, por isso o choro não me comoveu tanto quanto ele esperava. Lembrei da história pois sabia que eu não era talentoso o bastante para me passar por quem eu não era.
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Luisa consegue perceber que estou acordado, ela se levanta em vem em minha direção.
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"Você está melhor?"
"Queria comer uma pizza"
"Logo estaremos em casa"
"Fiquei sabendo que não vou mais sair daqui"
"Quem contou?"
"Ouvi a conversa dos enfermeiros"
"Eles não podiam dizer isso"
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Tento me ajeitar na cama, Luisa me ajuda. A verdade era uma só: só continuaria vivo se ficasse naquele lugar. Remédios no horário certo, comida e tudo que pudesse me auxiliar no resto dos meus dias. Em certos momentos isso podia ser considerado como uma preparação para a morte. Meu cérebro poderia não suportar mais uma vez os ataques. De algum modo sabiam como evitá-lo, mesmo sem saber qual era o motivo. Era essa a única explicação que podiam me dar, era a única que me interessava.
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"Hoje mesmo vou trazer o aparelho de DVD"
"Deve ser ótimo ficar aqui vendo filmes" - Eu respondo com ironia.
"Tente ver o lado bom de tudo isso"
"Não existe lado bom em ficar no hospital para sempre"
"Quem sabe descubram alguma coisa nos próximos dias"
"Não gosto de milagres"
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O sonho ainda me confortava. Uma pintura, uma casa com a porta fechada. Procuro nos bolsos, no paletó. A chuva está fraca, aumenta. Meus pés não estão mais no chão, perco a vontade de conversar, de dizer tudo que estou sentindo. Não é só uma doença que pode acabar com a gente, às vezes um amor ou uma desilusão. Estou em milhares de pedaços, lembrando tudo que eu podia ter feito, as várias opções da vida que joguei fora. Luisa não me vê chorando no sonho, mas sei que ela sabe como estou me sentindo.
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Ainda estou sonhando. Fernanda aparece. Ela trouxe um dos meus filmes prediletos. Senta-se ao meu lado, eu inclino a cabeça. Não consigo me mover por causa dos fortes remédios. Ela me beija a boca, sinto o corpo ficar quente, a dor na cabeça aumenta. Seria Fernanda a responsável pela minha doença? Seria Fernanda a cura? Sinto o perfume, que se espalha nas mãos e no corpo. Seu cabelo também é perfumado. Mais uma vez o beijo, nós dançamos num salão enorme, no dia da formatura.
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"Vou ficar essa noite aqui, com você"
"Não precisa"
Acordo. Estou sozinho.
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22
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A madrugada passou rápido. Fernanda me cobriu durante a noite. Na verdade foi Luisa quem pegou o cobertor. Ela se ajeita no sofá, se cobre. Queria estar com Fernanda, dormir junto. Iríamos assistir o filme imaginário que ela trouxe na noite anterior. De manhã o sol, e aquele lanche na mesa. Não tenho fome, nem sinto gosto pelas coisas. Fernanda iria dizer que precisava ir embora, eu agradeço a companhia. Fico por alguns instantes sozinho, com medo e esperando que alguma coisa acontecesse. Luisa volta.
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"Fernanda esteve comigo"
"Como assim?"
"Ela dormiu aqui"
"Impossível. Ela está com Camilo. Longe daqui"
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Quanto tempo agüentaria aquela vida? Mais alguns dias ou quem sabe meses? Minha perna piora, não consigo mais movimentá-la. A cabeça doía um pouco, mas era uma dor estranha, uma espécie de dormência. Parecia que tinha colocado minha cabeça dentro de um balde com gelo, ficado horas ali submerso.
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"Viu alguém com balde de gelo aqui?"
"Gelo?"
"Sim. Colocaram minha cabeça dentro do balde. Eu sinto que minha cabeça está dormente"
"Não, nada de gelo. Quer que eu chame algum médico, a enfermeira?"
"Não. Esquece que te perguntei alguma coisa"
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Os sonhos deixaram de existir, talvez pela minha decisão em não procurar mais por Fernanda. E quando me lembrava dos sonhos, eram totalmente desconexos. Água, fogo. Na maioria das vezes uma angústia se espalhando pelo corpo. Nas poucas vezes que tinha algum prazer, era quando meus amigos surgiam para discussões tolas. Às vezes me sentia cansado e dormia no meio da conversa. Quando acordava todos já tinham ido embora. Era a solidão que mais me deixava com medo. O silêncio, o barulho dos carros sumindo, das pessoas conversando no corredor. De repente, era como se ninguém mais existisse no mundo.
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O tempo foi passando. Meu corpo não obedecia mais meus comandos. Ir ao banheiro, tomar banho ou caminhar pelos corredores daquele hospital ficava cada vez mais difícil. Luisa chega, ela está me trazendo um presente. Uma cadeira de rodas não me faria sair daquele quarto.
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"Agora pode fazer várias coisas, até nos visitar no atendimento", disse uma das enfermeiras.
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Não gostava de ser antipático com pessoas que só queriam me ajudar. Soltei um sorriso como de uma criança que acaba de ganhar um presente no natal. O sorriso era falso, e o presente confirmava mais uma vez o que eu era naquele momento: um fracassado. Fracassado por tudo, pelo meu corpo. Fracassado pelas minhas idéias, pelo meu amor. Fracassado como pai, como amante. Fracassado como analista, como tudo. Um enorme fracasso. Pensei em me atirar da janela, levar comigo todos os meus pesadelos. Desisti. Lembrei de Cíntia. Agradeci a enfermeira com um beijo no rosto, ela era uma das pessoas que não me esquecia naquele lugar.
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Os dias passando, eu não sentia melhora. A médica disse que o remédio está fazendo o efeito desejado, mas estava perdendo a força. Eu quero sair daquele lugar, ver as pessoas. Quero ver o movimento dos carros, dos pássaros. Quero ver o vendedor de cachorro-quente, comer uma porcaria qualquer. Tomar refrigerante, abusar do doce. Comeria uma caixa inteira de chocolate, talvez com Luisa. O café, sinto o cheiro do café. Ao mesmo tempo em que me deliciava com os aromas, me embrulhava o estômago numa sensação de nojo, como se estivesse saciado.
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Outra vez lembrei do sonho. Não voava como das outras vezes, mas podia me ver nitidamente na cama daquele hospital. O rosto cadavérico, os braços e pernas minguados. Não tinha mais cabelo, meus dentes eram brancos, extremamente brancos. Estava fraco, minha voz era rouca. Parecia não ser sonho, tudo era muito real. A enfermeira entra no quarto, me aplica mais uma dose do remédio. Doía, meu corpo, se sentia cansado. De repente, não havia mais ninguém. Abro os olhos, Luisa está olhando o movimento da rua pela janela.
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"Você precisa me tirar daqui"
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O mundo estava sendo inútil para mim.
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23
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O Bar era um dos mais movimentados na década de oitenta. Foi perdendo o encanto com os anos, e hoje era apenas um lugar de nostalgia. Na entrada várias fotos de artistas, jogadores de futebol e políticos que freqüentavam o local, e consumiam o maravilhoso prato feito com frutos do mar. Eu gostava mais da cerveja. Tinha sempre um cantor qualquer, lembrando músicas da minha geração. Violão, uma cadeira, uma mesinha com cerveja e um maço de cigarro.
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Eu estava num canto, sozinho. Mas não estava triste, era um dia legal para ficar bebendo uma cerveja, pensando na vida. Era dia dos namorados, um casal na minha frente não parava de se beijar. Era impressionante a paixão daqueles jovens. A música continua, violão e cigarro. Pego o copo de uísque, vou dar uma volta pelo bar. Não estava pensando em nada especial, apenas andar um pouco. Numa mesa três mulheres sentadas, uma delas está fumando. Odeio mulher que fuma, apesar de todas parecerem charmosas. Uma delas me sorri. Não era a mais bonita, mas era a melhor vestida. Eu sento, faço a apresentação de praxe, logo estamos íntimos. As duas outras meninas saem da mesa.
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"Nunca vi você nesse bar" – Ela me perguntando.
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Não era exatamente o início de conversa que eu queria ter, parecia um pouco vazia e repetitiva. Sabe quando duas pessoas se olham, se admiram mas que parece não haver nada em comum? Pois bem, foi esse o meu primeiro contato com Camila.
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"Eu briguei com meu namorado, estou cansada dos homens" – Ela já embriagada.
"Terminei com Fernanda. Minha admiração por mulheres aumentou"
"Por que todos são assim?"
"Assim como?"
"Tão subversivos"
"Não há nada de revolucionário no que disse"
"As mulheres ficam pensando na relação, em algo que poderia consertar tudo. Homens já partem para outra"
"Evidentemente não está falando de todas as mulheres, né?"
"Sim, quase todas"
"Fernanda desistiu de mim e saiu com as amigas para uma festa na faculdade. Amanhã ficaríamos noivos, entende?"
"Mas ela deve estar pensando na relação, com certeza"
"Mulheres não são mais aqueles bibelôs que guardávamos na estante. Ela deve estar se divertindo, achando engraçado o meu papel de idiota"
"Eu sou muito sensível, ouviu? Não faria isso com nenhum homem. Acharia o máximo ficar noiva" – Começa a chorar em meu ombro – "Não gosto de pensar que fui trocada por outra"
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É claro que a bebida tinha um efeito maléfico sobre algumas pessoas. Enquanto para mim, qualquer bebida me ampliava o horizonte, trazendo novas perspectivas. Para Camila trouxe uma perturbação nada motivadora, numa confusão débil do comportamento humano. Como poderia ser tão categórica em relação ao amor? Dizer que as mulheres, quase todas, sofriam com o final do relacionamento; e os homens ficavam todos mais eufóricos, era uma grande bobagem.
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"Acho que precisa encontrar alguém mais despreocupado" – Eu continuando a conversa.
"Despreocupado?"
"Mais irresponsável, sem ficar pensando se está certo ou errado"
"Como assim?" - Era tão difícil dizer para uma mulher que eu estava simplesmente querendo transar.
"Tem que esquecer o seu namorado. Aposto que ele está saindo com outra garota nesse exato momento"
"Concorda comigo, então? Que todos são subversivos"
"Claro que sim" – Naquele hora não estava mais querendo discutir conceitos de coisa nenhuma.
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quinta-feira, 28 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 18, 19 e 20


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18
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Conto para Luisa e Leo sobre minha filha. Leo estava debruçado, todo encolhido com seu roteiro. Joga as folhas para o alto. A cada novo dia, novas coisas sobre mim eram reveladas. Luisa perguntou quem era a mãe e o motivo de eu nunca ter dito nada sobre isso. Ela fica mais surpresa ainda quando eu digo que é a Camila. Tudo explicado, resolvo contar uma outra novidade, de que vou procurar minha filha e contar tudo que aconteceu conosco.
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"Ela só tem onze anos, como acha que vai receber tudo?" – Luisa.
"A história pode fazê-la odiar a mãe para sempre" – Leo pegando o roteiro que caiu no chão.
"Eu pensei nisso, mas não posso esperar. Não tenho muito tempo"
"Eu contaria primeiro para Camila, ela quem conhece melhor a sua filha" – Luisa.
"Pois é, esses adolescentes são complicados" – Leo voltando para o roteiro.
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Eu sento no sofá. De qualquer maneira era preciso me preparar para qualquer coisa que acontecesse, só não podia fazer minha filha sofrer. Posso inventar uma história para dizer qual o motivo de ficar tanto tempo afastado. Preso político? Que bobagem, ela nem sabe o que significa ser um preso político, exilado ou coisa do gênero. Eu posso dizer a verdade sobre a família, posso dizer que tive que sumir do mapa pois estava jurado de morte. Meu Deus? Porquê não vêm em minha cabeça pelo menos uma idéia boa? Vou tentar agir naturalmente, sem dizer que esse ou aquele é culpado. Uma coisa era certa, com certeza iria procurar minha filha.
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Um dos melhores discos, segundo crítica e público especializado. Dizem que foi o período em que os músicos mais estiveram em contato com ociosidade. Estavam todos renegando grandes turnês, querendo apenas olhar o tempo passar e as idéias brincarem. Não havia preocupação com o tempo, agenda ou compromissos. O consumo de drogas também é fator determinante para que o álbum chegasse tão longe em matéria de criatividade. Ninguém conseguiria fazer A day in the life em sã consciência, afirma Leo. Nunca usei nenhum tipo de droga, os remédios de agora já eram suficientes para me deixar meio alucinado.
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Procuro Camila no mesmo dia em que tive a conversa com Leo e Luisa. Ela trabalhava num escritório no centro de São Paulo. Era um prédio bonito, bem cuidado. Não era novo. Chego, ponho o crachá. Subo dois andares pela escada. Aguardo Camila por vinte minutos. Ela estava com um cliente, eu preferi esperar do que voltar outra hora. Depois de uma hora e dez minutos ela me atende.
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"Preciso falar com Cíntia"
"Não sabe como se aproximar da nossa filha?"
"Vou sair do país" – Não queria revelar o verdadeiro motivo de estar ali - "Preciso falar o mais rápido possível com minha filha"
"Sabe quando ela nasceu?" – Eu fiquei quieto, não me lembrava direito em que dia de outubro minha filha tinha nascido – "Pois bem, faremos o aniversário"
"Estarei lá"
"Ela vai aguardar, ansiosa"
"Não diga quem eu sou"
"Como assim?"
"Não quero que ela se iluda comigo"
"Quem você é, então?"
"Um amigo, somente um amigo"
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Conversamos mais um pouco sobre Cíntia. Camila me disse que ela estava empolgada com o aniversário. Garotas adoram completar doze anos, é místico. Homens rezam pelos dezoito, mulheres sonham com os doze. Eu realmente não sabia nada sobre mulheres. Pergunto se ela tem namorado, que tipo de música ela gosta; pergunto a cor do cabelo. Camila puxa uma foto da gaveta, diz que é a mais recente. Cíntia é muito bonita, tem os traços da mãe. O namorado, não é bem um namorad. O nome dele? Bem, é um nome bastante comum.
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Em casa a dor reaparece mais forte. Ela nunca me deixou de lado todos esses dias, mas era tão suportável que eu nem percebia sua presença. Deito na cama, o sono demora para chegar. Estava eufórico para conhecer minha filha, mesmo sabendo que demoraria muito para isso acontecer. Nunca rezei para dormir e ter bons sonhos; não rezava para coisa nenhuma. Mas aquela noite eu dormi tranqüilo e cheio de esperança.
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19
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Parte do meu corpo está na cama, meus pés estão quase chegando ao chão. Eu não percebi, mas o ataque da madrugada foi um dos mais violentos dos últimos meses. No travesseiro o vômito, meus olhos estão vermelhos e cansados. Estava sem camisa, devo ter arrancado. A dor de cabeça é forte, estou suado. Luisa entra no quarto antes do almoço, estava preocupada com minha demora. Normalmente acordo antes das nove. Leo me ajuda a sair da cama, eu sinto uma tontura horrível. Ambos me colocam no carro, partimos para o hospital.
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Amiga de Leo me atende novamente. Estou meio atordoado, não sei bem o que andam fazendo comigo. Duas horas no hospital. Sinto sede, minha cabeça continua doer. Luisa e Fernanda estão me olhando, eu sinto vontade de chorar. Qualquer ser humano normal conseguiria suportar aquela situação por muitos meses, eu estava desesperado. A médica entra, se aproxima da minha cama. Ela pergunta como estou me sentindo, mas não é de forma piedosa como qualquer outra visita para doentes. Ela pergunta de forma séria, rígida e querendo saber apenas a verdade. Não consigo sorrir, nem falar muito. Digo que estou melhor, mas ainda sinto dores. Era mentira, eu estava muito pior. Desmaio novamente.
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A médica sai, dois minutos depois chega a enfermeira com mais um medicamento em um dos tubos que está preso em meu braço. Fernanda segura minha outra mão. Ela não precisa dizer nada, recebo seu carinho, que me fortalece. Luisa também era uma ótima amiga, mas o carinho de Fernanda era o único que me fazia continuar vivo. A sensação vai passando, em pouco menos de uma hora estava bem melhor. Mais algumas horas e consigo levantar da cama com ajuda de Luisa. Tomo um banho. De volta para o quarto, deito na cama e durmo até a manhã seguinte. Luisa ficou comigo toda noite, Fernanda viajou com Camilo, não mais nos encontraríamos.
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Depois de dois dias sou liberado. Era horrível ficar naquele lugar, principalmente sabendo que a cura nunca iria existir. Procedimentos, remédios e observação. Luisa disse que iria contratar uma enfermeira para cuidar de mim. Adoro ser bajulado, mas não era o caso. Desisto da oferta, apesar de me parecer útil. Qualquer uma iria sofrer comigo e meu humor descontrolado.
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"Elas não merecem"
"Mas é preciso" - Luisa.
"Se ele não quer, não adianta ficar pensando nisso" - Leo.
"Não pode beber, não pode ir para lugares distantes, não pode comer muito, nem dormir pouco. Tem que tomar todos os remédios" - Luisa relembrando orientações da doutora.
"Posso fazer sexo?"
"Que pergunta" - Leo, sorrindo.
"Sim, fazer sexo pode me ajudar com a auto-estima"
"Isso se você não falhar" - Leo rindo mais ainda.
"Parem com isso!
"Não quero mais fazer sexo"
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Tomo o remédio, caio no sono. Mais uma vez asas, estou voando pela cidade. Dessa vez tudo está colorido, eu consigo escutar minha própria voz também. Todos os meus sonhos eram mudos anteriormente. Dizem que não sonhamos sempre da mesma forma. Meu vôo é mais baixo, estou esbarrando minha barriga no capô dos carros que estão numa fila esperando o farol abrir. Meu grito por Fernanda, depois por Cíntia. Vejo Cíntia num balanço, na praça onde eu costumava ir quando criança. Ela não consegue escutar. Acordo mais uma vez assustado, suando. Meus dias estão chegando, posso sentir. Preciso pedir perdão para minha filha.
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20
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Todos dizem que Strawberry Fields Forever deveria ter sido gravado pela banda do sargento solitário. Leo sempre dizia que uma porção de música dos Beatles, em diferentes épocas, podiam perfeitamente integrar esse álbum. Seu documentário iria propor exatamente isso. Portanto, precisava de entrevistas, críticas e outros documentos que confirmassem sua percepção. Não foi difícil achar quem quisesse participar de um documentário como esse. Até minha participação foi solicitada, mesmo eu não sendo um entendedor do assunto.
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"Vai ficar legal" – Leo tentando me convencer.
"Não sei nada sobre Beatles"
"Não faz mal, você sabe o que quero ouvir"
Leo coloca a câmera na minha frente, prepara o fundo. Luisa arruma meu cabelo, coloca um produto no meu rosto para eu não ficar com cara de morto. Desculpou-se mais tarde, por dizer aquele grosseria, que eu estava parecendo morto. Releio minha fala, seria simples. Deveria dizer minha profissão, minha idade. Alguns comentários sobre o álbum, minha opinião sobre o documentário. A parte mais difícil era sobre mim, mas não cheguei a dizer nada. Um novo ataque me jogou no chão. Tinha acabado o sonho de Leo em me colocar vivo em seu documentário.
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Era o terceiro ataque ocorrido em menos de dois dias. As coisas estavam se complicando cada vez mais. Leo desliga a máquina, pára de filmar. Luisa estava segurando o texto, também vem em minha direção. Meu corpo treme, sinto os braços e as pernas adormecerem. Luisa corre para a cozinha, pega o remédio que estava em cima da geladeira. Coloca duas gotas numa colher. "Droga! Ele esqueceu de tomar os remédios!!". Eu continuo tremendo.
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No céu, continuo voando. Fernanda mais uma vez não é encontrada. Perdi a esperança, não mais a procuraria em meus sonhos. A cidade é fria, nos meus sonhos sinto o corpo tremer. Não vejo Luisa colocando o cobertor sobre meu corpo, tentando esquentá-lo. Eu continuo voando, pretendo chegar na casa de Camila, mas me perco. Uma floresta, escura e fria. De repente, estou no chão. Bichos começam a morder minha perna. Lesmas, insetos de todos os tipos. Enormes aranhas em meu corpo. Um vulto me derruba, não consigo ver seu rosto.
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Leo corre para o telefone, tenta falar com a médica. Ela era a única que poderia me ajudar naquele momento. Ela não estava, Leo entra em desespero. Meu corpo ainda está frio, minha boca seca. Abro os olhos, Luisa parece um anjo. Ela segura minha cabeça, acaricia meus cabelos. Volto ao mundo desconhecido, onde os bichos me atacavam. De repente, nenhum sonho, nenhuma sensação. Se a morte era o final de tudo, era daquele jeito que me sentiria. Mas eu sei que não morri. Leo e Luisa também sabem.
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Nunca tinha sido atacado por insetos, nem mesmo no mundo real. Quando era criança, tinha medo de baratas. Depois de adulto ainda sentia asco por aquele bicho avermelhado, mas não era medo. No sonho, os bichos continuavam andando pelas minhas pernas, chegando ao braço. O vulto novamente surge, me derrubando no chão. Uma poça de lama, fria. Alguma coisa atinge meus olhos, sinto uma queimação. Alguém poderia me acordar, me tirar desse pesadelo. Cobras, jacarés, lagartos, aranhas, moscas. Répteis gigantes se rastejando pelo chão do quarto, andando nas paredes. Não estou mais na floresta. O vulto, novamente, é uma imensa barata. Está em mim, comendo minha pele.
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Vamos para o hospital. Correm mais uma vez para sala de emergência. A médica chega logo em seguida. Tubos novamente no corpo, algo é injetado na veia. Um remédio qualquer, um gosto ruim na boca. A barata começa a morder meus lábios. Mas, de repente, começam a desaparecer. Todos os bichos indo embora, sumindo como se nunca tivessem existido. Já estou novamente de pé, meu corpo não está molhado. Luisa vê minha melhora, meu rosto ficar mais corado. Ainda estou dormindo, mas já sabem que não estou sofrendo.
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O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 15, 16 e 17

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15
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Domingo. Um dia complicado para mim. Fernanda vai se casar com Camilo. Eu não fui convidado para a cerimônia, nem iria caso recebe tivesse recebido o convite. Leo e Luisa sabem que estou triste por isso, pelo casamento. Evitam falar qualquer coisa. Estou no sofá enquanto ela arruma o cabelo, ele ajeita a gravata. Fico mudando de canal, não havia nenhum programa que pudesse me fazer sentir melhor. Eles saem, eu fico pior ainda. Um sentimento triste, de arrependimento, de solidão. Saio do apartamento, era pior ficar sozinho naquele momento. Por momentos pensei em ir à igreja, só para saber como seria se eu estivesse no lugar do noivo.
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Chego antes de Luisa e Leo na Igreja. Tento me misturar com outros convidados, estão preocupados com o horário e o atraso da noiva. Eu me afasto, fico bem longe da porta. Ninguém pode me ver. Todos entram, somente alguns homens ficam do lado de fora. Estão fumando. Um carro preto chega, deve ser de Fernanda. Eu saio do meu esconderijo. Não sabia que palavras usar naquele momento. Queria apenas olhar para Fernanda. Corro em direção ao carro, entro pela outra porta. Ela se assusta, o motorista também. Ela se recupera, o motorista continua com cara de assustado. Fernanda diz para o motorista que está tudo bem.
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"Queria gritar na Igreja que sou contra o casamento" – Eu dizendo, meio ofegante.
"...."
"Entrar de repente, quando o padre perguntar se alguém é contra"
"Você não precisa fazer isso, vou com você para onde quiser"
(Cópia desse texto para fins comerciais é crime. Favor respeite os direitos autorais)
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O motorista levanta o vidro. Eu e Fernanda nos beijamos. Olhares carinhosos e seguros. Eu tiro dela aquela pesada roupa, ela não se esquiva. Meu segredo vai se revelando em cada beijo, a cada olhar. Eu estou doente, não podemos ficar juntos. Ela parece não ligar para minhas palavras. Realmente eram inócuas diante dos acontecimentos, da paixão e da verdade. O motorista sai do carro.
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Nossos corpos cansados, jogados no banco do carro. Não queria deixar minha vida sem antes dizer tudo que sentia por Fernanda. Ela sabia que eu estava doente, não se importou quando eu coloquei minha roupa e sai do carro. Caminhei para dentro da Igreja, sem que ninguém percebesse minha presença. Camilo estava nervoso, irritado com a demora de Fernanda. Eu me sento do lado esquerdo da igreja, sinto que poderia estar casando com Fernanda, seríamos felizes. Mas a escolha de Fernanda não poderia ser melhor. O noivo continua impaciente, Fernanda tenta se arrumar de novo dentro do carro.
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Saio antes de terminar a cerimônia, era possível que alguém me reconhecesse e causasse um transtorno para todo mundo. Caminho pela rua, uma mistura de alegria; por Fernanda falar coisas tão legais sobre mim. E ao mesmo tempo uma tristeza enorme, pois não poderia completar um dos maiores sonhos. Caminho sem direção, às vezes é bom fazer coisas que nunca pensamos. A chuva de verão começa, eu choro de alegria com a possibilidade de me molhar pela última vez. Nunca dei valor para essas coisas pequenas, mas elas são ótimos ingredientes para nossa felicidade.
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Entro num bar qualquer, tenho caminhado procurando esquecer da minha vida. Eu precisava mesmo é lembrar das coisas, possuir e dominar tudo que pudesse. Penso, pouco tempo. Todos nós temos pouco tempo para conseguir tudo que sonhamos. Bebo uma cerveja, escuto um sujeito de barba cantar músicas no palco. Sou o único que aplaude o desafino, o único naquele bar que se diverte com uma coisa tão banal. Todos me olham como se eu fosse o sujeito mais estranho mundo. Eu vejo todos como se estivessem mortos há muito tempo.
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Leo e Luisa não se conformaram quando disse que estive na Igreja vendo Fernanda casar. Não contei mais nada, algumas coisas eram ótimas para se manter em segredo.

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16
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Acordo pior. Os meus últimos dias foram péssimos. A dor de cabeça aumenta e não existia nada que pudéssemos fazer. Os remédios não fariam efeito, a internação era perda de tempo. Eu me remexo na cama, querendo achar uma posição onde a dor não me incomodasse. Do mesmo modo que ela chegava, ia embora. Levantei e fui tomar o café da manhã com Leo e Luisa. Ela continua não acreditando que eu fui até a Igreja, e que conversei com Fernanda dentro do carro. Pior ainda se falasse tudo que aconteceu. Que descobrimos um amor ainda mais forte dentro de nós. Continuei na mesa, com um sorriso de alegria.
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"Bebel estava linda naquele vestido de noiva"
"Também achei" – Conversando enquanto comia um pedaço de mamão.
"Pare com brincadeira, você não estava lá"
"Não acredita em mim? O vestido não tinha calda"
"Continua"
"Camilo estava parecendo um bocó"
"Bocó?"
"Aquela roupinha, verde claro. Um horror"
"Desde quando entende de moda?"
"Não entendo, mas agora não duvida mais que eu fui até a Igreja"
"Leo poderia ter dito essas coisas para você"
"Não estou mentindo"
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A dor vai embora, depois volta. Preciso colocar o pé na água do mar, eu penso. Lembrei que fiz uma lista na cabeça das coisas que queria fazer antes de morrer. Estava acostumado com essas coisas, Leo adorava relacionar coisas, criar discussão. Eu bem que poderia perguntar para eles o que fariam de suas vidas se só lhes restasse um dia. Mas o assunto ficou mórbido, quase sombrio. Não era possível discutir aquilo sabendo que eu estava vivendo a situação e não era uma simples especulação.
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Curiosamente Fernanda era chamada de Bebel. O apelido acabou chegando ao ouvido das pessoas mais chegadas, como era o caso de Luisa. Eu não costumava chamá-la de Bebel. Luisa dizia que a lei dos opostos era comprovada na minha relação com Fernanda. Desde pequeno, quando nos conhecemos na rua entre uma brincadeira e outra, até os dias finais da minha vida; sempre fomos opostos. Eu e Fernanda. Ela tinha olhos castanhos claros, os meus eram escuros. Ela tinha uma pele muito branca, eu não. As diferenças não ficavam somente na parte física, éramos pessoas diferentes em quase tudo.
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"Isso que dá graça no relacionamento" – Luisa dizendo numa conversa.
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Chego no apartamento de Fernanda, eu precisa dizer algumas coisas. Estava engasgado, uma coisa no peito me remoendo de dor, de medo e da sensação de perda. Apesar do casamento ter acontecido no Sábado passado, sabia que a viagem do casal estava marcada apenas para o final do mês. Camilo não estaria em São Paulo nos próximos três dias, Fernanda mesmo me contou esses detalhes no dia do seu casamento.
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Ela parecia estar me esperando. O apartamento onde ela está agora será vendido, isso me trazia certa angústia, moramos naquele lugar por alguns meses. Ela me atende, entro. Ela está arrumando as malas, eu a acompanho até o quarto. Ela diz como estão os preparativos para a lua-de-mel, não tocamos no assunto que aconteceu antes do casamento. Entro no quarto, tudo está encaixotado.
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"Ficarei com saudade daqui. Vivemos felizes, não é?" – Ela dobrando algumas peças.
"Sim" – Eu seguro em sua mão - "Vou me lembrar sempre de você"
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17
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No restaurante, ela chega e procura a reserva em meu nome. Eu tinha marcado na noite anterior, conforme combinado. Por algum motivo que não me lembro, estava atrasado para o encontro. O garçom chega, ela pede alguma coisa para beber, diz que está esperando uma pessoa chegar para pedir o prato principal. Estava chovendo, deixo minha roupa molhada no carro. Sempre carregava alguma coisa limpa no carro, coisas imprevisíveis podem acontecer sempre. Entro no restaurante.
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"Demorei, desculpe. Isso não acontece sempre"
"Cheguei agora também" – Eu sabia que Camila estava mentindo.
"Como está nossa filha?"
"Ela está bem, sempre pergunta de você" – Mais uma vez eu sei que Camila está mentindo.
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O garçom chega novamente perto da mesa, quer saber do pedido. Eu digo para Camila que estou sem fome, mas vou acompanhá-la caso queira jantar. Ela pede mais uma bebida. Segundos depois um sujeito em nossa frente, manuseando taças, açúcar e garrafas coloridas. Eu queria fumar, mas o local não era apropriado.
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"Queria vê-la"
"Sempre disse para você aparecer em casa, que todos estão esperando você" – Toma um gole da bebida, coloca o copo na mesa – "Mas você parece não ter tempo"
"Ela recebeu o presente que mandei?"
"Presente?! Merda! Ela não precisa de presente, precisa de você" – Eu abaixo a cabeça, parece que estou errado.
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Camila foi um caso que aconteceu há doze anos. Era mais um dos intervalos intermináveis de briga com Fernanda. Ela ficou grávida, mas nunca me quiseram na família, diziam que ela era muito nova para ter um filho. Ela tinha acabado de completar dezessete anos. Um dia, Camila disse que eu nunca mais devia procurá-la, que o pai estava pensando em mandá-la para uma clínica. Por quase uma década eu pensei que nosso filho não tivesse nascido.
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Onze anos mais tarde, por acaso, nos encontramos novamente. Ela era amiga de Luisa, faziam eventos juntas. Fiquei sabendo que Camila tinha uma filha, com o nome de Cíntia. Não foi difícil arrancar-lhe a verdade, de que Cíntia era minha filha. Ela argumentou, criou uma história tão confusa, que ao mesmo tempo denunciava sua culpa. Camila não queria se casar comigo, também não queria fazer nada contra uma criança indefesa. Inventou uma história para que eu me afastasse. Foi exatamente isso que aconteceu. Garçom mais uma vez interrompe meu raciocínio.
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"Como pode pedir minha presença, assim? Foi você quem escondeu minha filha durante tanto tempo!"
"Tudo bem, eu errei. Mas você podia fazer uma força para consertar as coisas"
"Estou tentando me aproximar, você sabe disso"
"Daqui dois meses ela vai fazer doze anos. Doze anos, ouviu? Não me apareça com uma boneca"
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Era verdade, apesar do convite, nunca tinha aparecido para saber como era minha filha. Era muito difícil para mim, aparecer do nada, querer o carinho de uma filha que nunca tinha me visto. Não me conhecia, portanto. Amor não se constrói desse modo, tenho certeza. Camila não conseguia entender minha aflição. E me cobrava como se eu fosse o grande culpado.
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Ninguém sabia minha história, apenas Fernanda. Agora, que meus dias estão chegando. Talvez precise fazer alguma coisa. Preciso morrer sem essa culpa. Mas como saber a resposta: quem vai se magoar mais com minha aproximação? A filha encontra o pai, mas ele morre? Ou o pai que vai morrer e não é perdoado pela filha?
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(Cópia desse texto para fins comerciais é crime. Favor respeite os direitos autorais)
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quarta-feira, 27 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 12,13 e 14

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12
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A garota demonstrou claramente que ficava desconfortável diante de pessoas como eu, que ela considerava iniciante. Ela se levantou da cama, não parecia exatamente querer fazer alguma coisa comigo. Eu me senti frustrado, um pouco assustado. Afinal o que eu deveria fazer agora? Fiquei observando os movimentos da mulher. Ela foi até a porta, abriu e saiu. Fiquei alguns minutos parado, sem saber como agir. Ela volta, fecha a porta. Novamente fica ao meu lado na cama, eu continuo em silêncio.
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"Eu disse para o Homero não me arrumar virgens"
"Não sabia"
"Eu fico constrangida. Sei que lembrará desse momento por toda sua vida"
"Nunca mais vou me lembrar de você, prometo"
"Um menino tão bunitinho" - Eu levanto, tiro minhas calças.
"Vamos começar logo com isso?!"
"Epâ! Calma, garoto"
"Já tive calma o suficiente. Sabe o quê é ser o único virgem da turma?"
"Todo mundo passa por isso"
"Termine o seu serviço"
"Preciso que você me responda algumas coisas"
"Não preciso responder nada, deixei a grana com o tal do Homero. Cinqüenta paus!!"
"Pagou tudo isso por mim?"
"Não foi por você, paguei por qualquer prostituta" – Ela riu.
"Fique sabendo, mocinho, que não sou prostituta. Já viu prostituta num lugar como esse? Sujo, fedido" – Ela pega o cigarro, volta a fumar – "Sou puta mesmo, outra categoria"
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Naquele dia não entendia a conversa, para mim tinha passado a hora de acontecer alguma coisa com aquela mulher. Ela, que parecia bem mais velha do que eu, deveria saber disso. No entanto, mais tarde fui entender o que ela queria dizer.
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"Você tem uma namoradinha?"
"Tenho. Quer dizer. Tinha" – Lembrei que tinha acabado de brigar com Fernanda.
"Não devia ter brigado com ela"
"Nós brigamos e você não tem nada com isso"
"Vamos fazer assim, vou devolver o seu dinheiro. Você volta para casa e pensa um pouco no que está fazendo"
"Não quero meu dinheiro de volta"
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Homero bate na porta. Pelo visto eles não queriam que um menor ficasse muito tempo naquele lugar. Fui convidado a me retirar, voltar numa outra época e em uma outra situação. No corredor Homero sugere outra mulher, disse que Bianca não gostava mesmo de iniciantes. Bianca era o nome da garota, que naquela época parecia muito mais velha do que eu. Na verdade tinha vinte anos. Eu resolvi que aquela hora não era minha, voltei para casa e mais tarde fiz as pazes com Fernanda.
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Nesse momento estou no apartamento, pensando na vida. Por momentos fiquei curioso em saber como Bianca estava.

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13
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A rua parecia uma fotografia velha da minha memória. Quase nada mudou naquela rua de paralelepípedos. Nem bordéis, nem os homens cheirando perfume barato. Voltei para o mesmo lugar, vinte anos depois. Quem eu queria encontrar ali? Bianca? Qual o motivo? Nenhum. Não há motivo nenhum. Na verdade, razão nenhuma nesse momento da minha vida pode ser justificada. Fiquei com vontade de rever a pessoa que me ajudou, só isso. Bom, ela não me ajudou, só não quis transar comigo. Lembrei de uma história que ficou inacabada no passado, queria saber como ela terminaria.
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Chego no prédio, ele não é mais verde limão. Na verdade não tem nenhuma cor definida. Está todo pichado com reboco caído. Subo as escadas, lembro perfeitamente do dia que vim aqui pela primeira vez. Na minha frente Homero. Ele agora é um senhor de cabelo branco, uma enorme barriga. O sorriso continua dourado. O portão de ferro continua fechado, a cadeira onde ele está sentado não é a mesma.
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"Estou procurando a Bianca"
"Bianca? É da polícia?"
"Não, sou um amigo"
"Nunca vi você aqui"
"Sou um amigo de Paranapiacaba" - Lembrei da conversa que tive com Bianca. Ela me disse onde tinha nascido.
"É parente?"
"Não"
"Ela não gostava de receber os parentes"
"Ela pode me atender?"
"Ela morreu"
"Não fiquei sabendo. É uma pena"
"A Soraia está ai"
"Soraia?"
"A filha de Bianca"
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Resolvi conhecer Soraia. Passei pelos corredores novamente, parei no mesmo quarto. A mesma cena passando pela minha cabeça. Tudo era muito igual, as luzes, o cheiro e a pessoas que freqüentam o lugar. Em quase vinte anos, nada mudou. Entro no quarto, uma garota está deitada na cama. Ela me olha entrando, e por algum motivo fica surpresa; se assusta. Pega o lençol, coloca sobre o corpo, ficou envergonhada. O rosto branco totalmente corado. Não parecia ser uma coisa natural para uma prostituta, ficar envergonhada com a nudez. Eu dou dois passos para trás, espero.
. (Pode copiar, mas seria legal dizer que o texto é de Sérgio Oliveira)
"Pode entrar, pensei que fosse outra pessoa"
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Eu entro, fecho a porta. Digo que acertei os detalhes com Homero, e que poderia ficar ali por algumas horas. Só cliente especial podia utilizar tanto tempo com algumas mulheres. Eu estava mentindo, na verdade não era especial. Sento-me na beira da cama, ela parece ainda corada. Pergunto se ela está bem, se não quer me atender. Ela sorri, parece ser coisa da vida. Um abraço longo, depois transamos. Ela não fumava, isso podia ser percebido pelo ar daquele quarto. Em vários momentos pensei na Fernanda, mas me ative mesmo era no corpo daquela garota. Pegamos no sono, leve e rápido. O bastante para recuperar as forças e a vontade de ir embora.
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"Eu conheci sua mãe" – Eu dizendo enquanto colocava a blusa.
"Quer dizer alguma coisa? Não parece ser novidade algum homem conhecer minha mãe"
"Entrei nesse quarto, ficamos nos olhando. Nada aconteceu" – Ela se manteve em silêncio – "Só queria a oportunidade de terminar o que havia começado"
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14
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Chego no apartamento e todos parecem estar preocupados com meu sumiço. Eu digo que andei fazendo algumas coisas pela cidade. Todos tinham motivos para se preocuparem, eu estava doente. Um desmaio qualquer na rua, um atropelamento. Eu tentei não dizer nada sobre os exames, mas parecia que todos sabiam o que estava acontecendo comigo. Digo que vou tomar um banho, eles estão na mesa comendo. Leo, Luisa e Vanessa; uma outra amiga. Tomo o banho, tiro o cheiro que estava impregnado no corpo. Foi bom estar com Soraia, não precisei dizer nada; nem sobre minha saúde nem sobre os meus sentimentos.
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Naquele momento estava me sentindo frágil. No chuveiro penso na vida, nos amigos que deixei. Quantos amigos eu deixei escapar? O tempo passa, impiedoso. Hoje nem preciso de segredos, posso contar qualquer coisa. Ninguém quer saber nossos segredos. E os defeitos? Sei de todos os meus defeitos. Só o tempo mesmo para me corrigir todos nossos defeitos. Não haverá tempo para eu me recuperar, morrerei com todos eles. Eu amei muitas pessoas, mas quantas ainda me amam? Talvez eu não consiga lembrar, mas é provável que em alguma crise da minha vida tenha pensado em suicídio. Bobagem, nunca pensei em suicídio; mas sei que várias pessoas sucumbiram nesses anos. Onde elas estão? Os fracassados?
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Saio do chuveiro. Digo para todos meu segredo, o resultado dos exames. Eles me olham assustados, sabiam da verdade mas não queriam se conformar. Luisa chora, Leo também está com os olhos vermelhos. Até mesmo Vanessa, que não me conhecia muito bem, manteve-se calada durante a revelação. Todos ficam me olhando, eu sento no sofá. Pego uma taça de vinho, bebo um gole. Ninguém pisca, ninguém respira. Digo que estou feliz, que fiz uma coisa muito interessante. Eles parecem não querer saber mais de nada. Não conto sobre Bianca, nem sobre Soraia. Sento no sofá, eles me olham ""Descobri que Bonequinha de Luxo tem um beijo maravilhoso". Luisa começa a chorar.
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Mais uma vez a dor de cabeça. Fazia tempo que ela não aparecia. Geralmente era seguido de um pequeno desmaio. Eu me levanto, digo que estou cansando da conversa. Todos entendem minha situação. Vou para o quarto, tranco a porta. Abro as janelas. Um vento frio, mas gostoso. Queria ficar a noite inteira olhando para as estrelas. Como eu queria ver um ser de outro planeta, um bicho qualquer parando bem na minha frente. Seria demais, mas não aconteceu. Penso na Fernanda, ela estaria casando no final de semana. Ela tem todas as coisas, que um dia eu sonhei. Queria entrar na igreja, na hora daquela pergunta clássica. "Sim, eu tenho alguma coisa contra o casamento". Todos me olhariam assustados. Nessa hora eu não posso desmaiar, eu penso. Seria muito engraçado e trágico. Na janela, olhando para a noite terminando, chorei mais uma vez.
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Há rumores fortes que a capa da Banda do Sargento é o próprio velório de Paul. Isso foi desmentido inúmeras vezes pela banda. E outra capa, do disco Abbey Road, onde os artistas atravessam pela faixa de segurança de uma rua perto do estúdio onde gravavam, deu mais argumentos para os criadores da lenda. Paul está morto na cabeça de Leo. Eu não tenho como dizer que a história não é fantástica. Na minha cabeça eu também estou morto, mas não há nenhuma capa de disco ou fotografia que possa dizer isso para o futuro. Quem sou eu, afinal?
Saio do quarto correndo, grito por Luisa. Ela está sentada no sofá, com Leo. Vanessa está do outro lado, dormindo.
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"Cadê aquela máquina fotográfica?"
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terça-feira, 26 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 9, 10 e 11

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9

Salas tão brancas sempre me dão medo. Eu lembro quando acompanhava meu pai, em seus últimos dias de vida. Lembro também do dentista, como eu odiava ir ao dentista. Sala branca trazendo paz, conforto e para mim uma dose de medo. Pego uma revista, uma revista velha com fatos desinteressantes. Ajuda não pensar em doenças, nas coisas que possivelmente irei escutar do médico. Na verdade não era um médico, mas uma médica. Solto a revista, as pessoas ficam me olhando como se tivesse feito alguma coisa errada. Levanto, pego um copo de água. Aparece o número 083, antes uma campainha. Meu número está chegando, meu futuro. Sento, levanto. Sou o próximo.

Luisa estaria comigo. Teve problemas no emprego e desistiu de me acompanhar. Seria ótimo contar com alguém nesse momento. Olho novamente para o envelope que está em minhas mãos, um enigma tão desconfortável. As respostas sobre minha vida, meus desejos e minhas alucinações estão ali, tudo codificado. Penso em tirar do envelope o resultado dos exames, mas seria inútil. Como foi inútil olhar aqueles números, gráficos e comentários durante todo final de semana. Coloco novamente no envelope, são apenas mais alguns minutos para saber a verdade.

Uma das meninas do atendimento fica me olhando. Ela deve saber os motivos de me ver daquele jeito. Deve trabalhar tanto com gente doente que descobre logo o problema. Pensei em mostrar-lhe os exames, saber afinal o que está acontecendo comigo. Levanto, minha vez está chegando. Sento novamente. Meu número chega, seguido daquele barulho característico. Levando, entro na sala da médica.

Doutora. Médica. Tinha um belo sorriso, apesar dos dentes tortos. Pede para que eu sente, pergunta como estou. Não respondo nada. Estou preocupado com o resultado dos exames. Ela pega o envelope, tira as folhas e espalha pela mesa. Faz anotações, rabisca, pinta e borda. Os últimos meses foram péssimos, quis desabafar. Parei, fiquei mais uma vez em silêncio. Ela começa falar, conversa com calma. Suas frases são repletas de significados filosóficos. No fundo, tinha uma idéia banal sobre os seres humanos. Pessoas são coisas, frias e animadas. Isso me confortava.

“Infelizmente os resultados não são animadores”

A frase tão típica dos melodramas. Escutada por mim tão diretamente. Eu sinto uma vontade de chorar, de gritar. Não vejo ninguém do meu lado. Quero sair da sala como se nada estivesse acontecendo. Saio. Não ouvi o resto da história que ela queria me contar. Eu já sei o resto. Resultados não são animadores significam tudo de ruim, de abominável. Haveria cura? Não sei. Sou uma presa fácil do destino, costumo não lutar pelas coisas que me incomodam.

Lá fora continuam me olhando com reprovação. A sensação ainda é pior, pois agora parecem que também sentem piedade. A piedade deles, o olhar de tristeza em direção ao nada. Não preciso de piedade, quero dizer para aquelas pessoas, seus olhos tão confessos. Não preciso de vocês! Saio daquela sala branca, que deveria trazer paz. Saio para não querer voltar mais. Não querer saber a verdade, apenas viver os dias. Tudo agora parece fazer sentido, a vontade de fumar e o barulho do elevador. Entro, ninguém me acompanha. Onde quero chegar? Sempre sonho que fico preso dentro de um elevador e que não consigo falar com ninguém. A maldita angústia do abandono, do fracasso e da solidão.

Na minha cabeça, a voz continua do mesmo modo. Mesmo assim não consigo entender o quê ela quer dizer. Apenas palavras e mais palavras destruindo um pouco mais da minha razão. A minha vida precisava de alguma coisa, um amor qualquer. Poderia amar qualquer pessoa que passasse por mim (preferiria a Fernanda, se ela aceitasse minha proposta). Preciso sorrir, rir das coisas banais. Preciso ir ao cinema, escutar a melhor música. Preciso tomar um banho com água espumante, pegar uma chuva de verão. Preciso de um encanto qualquer, menor que seja, para continuar vivo por esses dias.

Chorei sozinho.



10

Paul McCartney foi mentor da idéia de transformação. O grupo criaria um grupo imaginário, que seria chamado de a Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta. Eles estavam cansados da vida de viagens, turnês. Uma ótima idéia, eu acho. Queria não ser eu mesmo durante alguns períodos da minha vida. Até comentei isso com Leo, quando falávamos sobre o roteiro. Ele disse que a idéia não era muito bem essa, de fugir do que eram. Não entendi, nem queria entender os motivos. Para mim era fantástica a oportunidade de ser outra pessoa. Quantas coisas que não fazem o menor sentido para mim continuariam ser ignoradas em minha nova personalidade?

“Leu o roteiro?” – Leo me pergunta enquanto assiste o telejornal.
“Sim. Continuo achando que as cores cairiam bem”
“Também acho. Na verdade não sei o motivo de escolher preto e branco” – Ficamos uns minutos em silêncio.
“Sobre a idéia de ser outra pessoa. Acho que eles não queriam ser Beatles?”
“Queriam. O disco não poderia ser genial se eles fossem a banda dos corações solitários” – Dessa vez eu me calo, estava passando uma reportagem interessante na televisão.
“Como deve ser virar outra pessoa?”
“Quem você gostaria de ser neste momento?”
“Camilo” – Mais um pouco de silêncio.
“Camilo? Não lembro de nenhum Camilo”
“Noivo da Fernanda”
“Que bobagem”
“Seria bem mais fácil a relação com Fernanda”

Luisa chega na sala. Pergunta sobre o jantar. Em outros momentos ficaríamos discutindo por várias horas sobre as várias possibilidades. O clima não estava bom, não me sentia muito bem para reclamar qualquer coisa. Eles poderiam estar em outro lugar, se divertindo. Mas naquele momento estavam comigo, um moribundo que não sabe bem quanto tempo continuará vivo. Podem pedir qualquer coisa. Comida chinesa cairia bem. A verdade é que não revelei a conversa que tive com a médica. Não tive oportunidade nem coragem de dizer qualquer coisa sobre o assunto.

“Fernanda disse que não poderá vir” – Luisa pega o telefone para fazer o pedido do jantar.
“Deve estar corrido a vida”
“Está. Como sabe, ela vai casar na próxima semana” – Volta para o telefone – “Duas de mussarela”
“Camilo me odeia”
“Ele sabe que você e Fernanda se amam” – Leo entrando na conversa.
“Ele não sabe nada, nada além do que eu e Fernanda sabemos”
“Você precisa mudar isso!” – Luisa – “Tudo isso? Estamos com fome” – Desliga o telefone – “A pizza vai demorar trinta minutos”

Continuamos vendo televisão, todos sentados na sala. A conversa sobre Fernanda está encerrada. Não queria mesmo falar sobre esse assunto, nem dizer que estava sofrendo demais com a situação. Fernanda estaria casada daqui uma semana. Casada com um sujeito legal, muito compreensivo. Isso era o bastante para mim. Informação que me deixava tranqüilo em relação ao seu futuro. Em pensamento desejaria felicidades para Fernanda, mesmo sabendo que meu coração não admitia perdê-la para sempre.

“A Day in the Life, Lennon escreveu quando lia o jornal de manhã. Que ótima inspiração ele teve”
“Eu não tenho mais inspiração”
“Você não é artista”
“Mas algumas vezes pensei que seres humanos pudessem viver histórias maravilhosas”
“Ainda pensa ser outra pessoa?”
“Não. Apenas penso em outro final”





11


Eu tinha dezessete anos quando cheguei em São Paulo. Foi na mesma época que meu pai morreu. Eu estava morando com um tio, que disse que eu deveria vir para capital aprender uma profissão. Naquele momento não estava pensando nisso, queria mesmo era mudar de vida. Então, numa noite resolvi conhecer as mulheres. Não esperava muita coisa delas, na minha idade o essencial podia ser conseguido sem muito esforço, e com um pouco de dinheiro no bolso.

Era uma rua escura no centro da cidade. Rua de paralelepípedo. Nove horas da noite. Ambulantes estavam guardando suas bugigangas. O número de homens na rua era bem maior do que de mulheres. Naquele local, vários bordéis famosos e bem movimentados. Um lugar tinha vários prédios em completo abandono, apesar das lojas e escritórios espalhados. Passo por uma barraca de churrasquinho, continuo procurando o lugar indicado por um amigo. Um portão de ferro depois de uma loja de calçados. Entro, subo as escadas. Lá fora um cheiro forte, uma mistura de coisa azeda, álcool e a carne na brasa. Lá dentro a coisa ainda é pior. Subo as escadas, sinto o mundo civilizado ficando para trás.

Um homem está na porta. Um negro forte, alto e com um dente de ouro. Ele pergunta o que estou procurando, sem jeito e envergonhado digo que estou procurando uma mulher. Ele sorri, vejo mais de perto o seu dente dourado. Ele levanta, diz para eu esperar. Abre um portão de ferro que nos separava de um corredor, vai andando até o final. Seus passos são lentos. Ele volta, senta-se novamente na cadeira no mesmo lugar onde estava quando entrei.

“Quanto você tem de dinheiro?”
“Cinqüenta”
“Não posso arrumar a melhor garota por cinqüenta”
“Pode ser qualquer uma”
“Eu comecei como você, com garotas desse bordel. Olhe minha posição agora, sou dono de todas elas. Não deveria ser tão humilde”
“Qualquer uma, eu já disse”
“Vou arrumar uma menina que vai adorar você”
“Eu agradeço”
“Siga esse corredor, entre no quarto 12”
“Qual o nome da garota?”

Ele sorri da minha pergunta. Não podia fazer a menor diferença o nome da garota. Ele pega o dinheiro, coloca no bolso. Ando pelo corredor. Um misto de alegria, de medo. Era a primeira vez que iria transar com uma garota. Algumas portas fechadas, outras abertas. Tem gente que não faz a menor cerimônia ao estar num lugar como aquele. Homens, velhos, engravatados e mendigos. Todos são muito iguais nessa hora. Uns podem ficar com deusas por alguns minutos, alguns se contentam com qualquer coisa. Chega o número que eu deveria entrar.

A garota estava deitada na cama, devia ter uns vinte e cinco anos. Eu me aproximo. Ela é indiferente, coloca o cigarro na boca. Solta a fumaça apontando o bico para o teto do quarto. Apaga o cigarro com os dedos, coloca no cinzeiro. Levanta-se, vem em minha direção. Era a primeira vez que eu ficava tão próximo de uma mulher que ficaria pelada em instantes. Meu coração bate forte. Seu corpo tão perfeito, era minha percepção naquele dia. Ela está com uma mini-saia, blusa colocada ao corpo. Ela segura minha mão. Ela arruma o cabelo, passa a palma da mão no meu rosto. Sentamos na cama, ela parecia não querer fazer absolutamente nada comigo, como não queria fazer com nenhum homem que entrasse naquele lugar.



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quinta-feira, 21 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 6, 7 e 8

6


Chegamos no apartamento. Luisa não conseguia esconder a preocupação. Andava de um lado para outro, sem parar. Foi até a varanda fumar. Eu levantei, fui em sua direção. Queria confortá-la, pois, mesmo estando doente, não me sentia incomodado com isso. Portanto, ela também não deveria ficar daquele jeito. Leo tinha ligado para Luisa poucos minutos antes, mas não consegui ouvir a conversa. Na varanda, Luisa pára de fumar assim que eu chego. Ela está chorando. Olha para mim com medo, ela está com medo de me perder para sempre.

“Já sei, vou morrer” – Eu disse em tom de brincadeira, tentando descontrair minha amiga – “Vamos lá, não precisa ficar desse jeito”
“Já marquei seus exames”
“Não sei o que seria de mim se você não existisse”
“Faço qualquer coisa pelos meus amigos”
“Estou muito doente?”
“Vamos esperar os exames”
“As dores, elas continuam”
“Imagino. Você precisa ser forte”
“Está querendo demais de um pobre mortal”
“Quero dizer que estarei sempre ao seu lado”
“No caixão?”
“Pare com esse papo. Você me deixa nervosa”

Os exames estavam marcados para manhã seguinte. Fui obrigado a antecipar minhas férias. Cheguei no escritório, conversei com algumas pessoas. Nada de importante, quase ninguém ficou sabendo os motivos do meu afastamento. Regina, que era minha secretária, é a única pessoa da empresa que confidenciei minha situação. Ela ficou preocupada, mas assim como eu, não imaginava os rumos da história. Passei algumas coisas urgentes, o resto ela sabia fazer tão bem quanto eu. “Espero que melhore”. Foi a última vez que falei com Regina.

A sensação de que algo grave poderia estar acontecendo comigo era cada vez maior. Era possível que uma doença grave, com seqüelas muito sérias, tivesse me pego desprevenido. Na verdade a vida é assim, ela sempre nos causa algum tipo de susto algumas vezes. É misteriosa a morte, mas sabemos que irá acontecer um dia. Poucos sabem o horário, o dia e o momento da morte. Alguns até se imaginam nesse momento, mas é apenas um delírio que passa desapercebido. Eu estava preocupado, mesmo assim não pensava em nenhum momento que poderia morrer rapidamente.

Leo e Luisa não estão em casa. Eu aproveito para assistir o filme do final de semana, aquele que me fez dormir tranquilamente. Volto exatamente no momento do beijo, quando o casal se encontra. Era impossível não pensar em Fernanda quando via qualquer casal feliz se beijando. Tinha saudade de seu beijo, das conversas e de assistirmos filmes juntos. Nesse momento ela deve estar nos últimos preparativos do casamento. Vai casar mesmo, sem menor arrependimento. No fundo, sei que ela não gosta do sujeito, mas não quer ver o tempo passando, como acontece com suas amigas. Todas solitárias e infelizes. Fernanda poderá ser infeliz no casamento, mas tem certeza que não será solitária. Novamente durmo no meio do filme.

O dia seguinte passa rápido. Bem cedo estou no hospital fazendo os exames. O dia inteiro coletando sangue, entrando em máquinas barulhentas e monstruosas. Luisa está comigo, como havia prometido. Leo aparece no final da tarde, apenas para dizer que está torcendo por mim. Eu agradeço com um sorriso. Estava tenso demais para perguntar sobre o documentário. Durmo até o começo da noite.




7

Quando acordo, estou no apartamento. Nós quatro novamente. Fernanda estava ao meu lado, esperando que eu abrisse os olhos. Luisa estava ao telefone, falando com uma amiga. Leo é o primeiro que pergunta como estou. Fico quieto, como ficam as pessoas que acabam de acordar. Olho para Fernanda, ela parecia Mary Jane, a namorada do Homem-Aranha. Em alguns momentos eu relembro a cena do beijo, quando ele desce pela teia, está de ponta cabeça. Mary arranca uma parte da máscara e os dois se beijam. Fernanda não precisava arrancar minha máscara para me beijar.

“Qual o beijo clássico do cinema?” – Repentinamente pergunto para Leo.
“Como assim?” – Leo espantado com minha pergunta. Todos estavam esperando que eu acordasse meio aturdido – “Você está bem?”
“Claro que estou. Quer coisa melhor do que discutir beijo no cinema?”

Fernanda se ajeita no sofá, se afasta um pouco mais de mim. Já não posso mais imaginar o beijo de Mary. E fazendo uma reparação, Fernanda não se parecia em nada com Mary, no aspecto físico e psicológico. Fernanda tinha os cabelos vermelhos, baixa. Poderia ser comparada com o Rose, do filme Titanic. Eu também nunca pensei em ser super-herói.

“Acho que o beijo de Rose em Jack na proa do navio é fantástico” – Eu recomeço a discussão.
“Muito Hollywood” – Leo sempre criticando o cinema americano.
“Eu acho bonitinho’” – Luisa. Fernanda ficou calada.
“O primeiro beijo sempre é impressionante. Não importa se na adolescência, Hollywood ou Paris” – Eu defendo minha escolha.
“Dama e o Vagabundo comendo espaguete! Quem lembra?” – Luisa.
“Beijo mesmo é de Macaulay Culkin. Em Meu primeiro Amor” – Fernanda em sua primeira manifestação.

Fernanda comentar sobre beijo no cinema podia ser uma coisa normal. No entanto, considerando que fomos namorados quando crianças, que tínhamos planos para o futuro; o comentário foi sarcástico. Eu senti o impacto, fiquei quieto durante vários minutos enquanto a discussão entre Leo e Luisa ganhava aspecto de debate político. Fernanda e eu nos olhávamos, tentando encontrar alguma coisa no passado que ficou perdido, descontrolado e misterioso.

Vários filmes tratam o beijo como algo fundamental no roteiro. Todos esperam que ele aconteça, mesmo que por minutos, segundos. O vilão fica com cara de vencido, enquanto os mocinhos curtem a paixão. Geralmente é cena final, quando tudo foi resolvido. Eu queria um beijo de Fernanda, apagar o que tinha acontecido, ou melhor; construir o que não tinha acontecido. O beijo não existiria, tenho certeza. Levanto, na parede da sala tinha um espelho enorme, nele me via como o vilão da história.

“E o vento levou.....” – Leo e Luisa continuam discutindo.
“Filme é chato” – Luisa.
“Você que defende o cinema americano”
“Eu defendo, eles foram importantes para criar esse tipo de entretenimento”
“Bobagem”
“Não pode dizer isso”

Os dois continuam discutindo, e como os conheço muito bem, sabia que não iriam chegar à lugar nenhum nas próximas horas. Vou para cozinha pegar um copo de suco. Fernanda me acompanha.

“Não precisa mais fugir de mim” – Ela olha bem nos meus olhos. Depois disso vai embora.








8

Na manhã seguinte pego os resultados do exame. Minha vida está num envelope, pardo. Uma enorme etiqueta com meu nome. Volto para o apartamento. Todos saíram. Pensei em abrir, olhar os números. Adiantaria alguma coisa? A consulta está marcada para segunda-feira, ficaria o final de semana inteiro juntando informações, querendo chegar muito próprio ao resultado de quem eu vou ser no futuro. Melhor não pensar nisso. Pego o roteiro do documentário que Leo estava pensando em fazer, seria bom conversar com ele sobre isso. Talvez meu nome aparecesse na tela, uma última homenagem.

Continuarei falando sobre a capa do disco. Acho fundamental que o filme documentário seja colorido, não em preto e branco como está escrito aqui no roteiro. Os Beatles aparecem vestidos como sargentos, ao fundo a colagem de pessoas famosas. Aleister Crowley é um escritor famoso, sua figura está ali. Seus poemas, e sua doutrina foram influências para vários artistas. Raul Seixas e Paulo Coelho, por exemplo. Nesse momento eu levanto do sofá, coloco o CD no rádio. “Do what thou wilt shall be the whole of the law”, faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.

Para a capa foram selecionadas 70 pessoas que de alguma forma influenciaram o mundo ou os Beatles até aquele momento. Sigmund Freud teria influenciado os Beatles? Marlene Dietrich? Sim, muito bonita. Edgar Allan Poe, quem eu não conheci. Prometo que se continuar vivo depois desses exames vou procurar alguma coisa de Poe para ler. Ele é poeta? Acho que sim. Como sou asqueroso em matéria de literatura. Bob Dylan? Está. Leo me disse que tentaram colocar outras figuras na capa, mas por pressão da gravadora, isso não foi possível. Jesus Cristo, Elvis Presley, Gandhi e Adolf Hitler. Não comentei a informação na época, mas agora me causa um desconforto incrível saber esses nomes, tanto para o lado positivo como para o negativo. Adolf Hitler?

A dor de cabeça piora. Sinto medo de desmaiar novamente. Logo passa. Preciso comer alguma coisa, tenho quase certeza que tudo isso que está acontecendo é por causa da minha vida tão abandonada. Tenho dormido pouco, é verdade. Não cuido de mim desde os tempos que sai da casa da minha mãe. Penso em minha mãe, no meu pai morto por uma doença misteriosa. Sofreu vários meses, depois de sua morte resolvi procurar o mundo e fazer coisas que eu nunca tinha imaginado. Depois de dois anos minha mãe morre também. De solidão, desilusão e uma doença no coração. Meus familiares morreram todos por causa de uma doença misteriosa, forte e incurável. A morte em si, é algo sem cura, eu penso.

Talvez seja o único momento da raça humana que ela não quer ser egoísta. Na imortalidade, que é o sonho e a riqueza de todos os seres humanos, é onde colocamos em prática nosso maior desejo de amor ao próximo. Ninguém quer viver para sempre sozinho, então decidimos dividir a imortalidade com todo mundo. Com cachorro, papagaio e familiares. Não importa apenas estar vivo depois da morte, é preciso levar uma porção de gente conosco. Alguns ainda conseguem manipular esse sonho mágico, criando seitas que segmentam quem vai se salvar. No fim, ninguém sabe o certo. Todos nós corremos os riscos de estarmos errados no final da história. Vai ser tarde para reclamar com alguém.

Vida e morte, cantado por poetas, filósofos e religiosos. Vida, minha começou em seis de dezembro. Morte? Não sei. Possivelmente preciso resolver algumas coisas, minha vida não deve ser uma coisa sem propósito. Mas qual o verdadeiro motivo de estar aqui pensando nessas coisas? Qual minha missão, se é que existe alguma missão? Verdade ou não, me sinto fracassado em todas minhas intenções. Se existiu um plano para minha vida, eu rascunhei em algum lugar, mandei embora com o lixo da cozinha. Sim, meu plano está no lixo da cozinha.

Todos já pensaram na pergunta, mas não ouvi ninguém dizer a resposta.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 3. 4 e 5

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Diversas vezes o mesmo pesadelo: minhas costas pegando fogo. Sonhava que tinha asas, mas sabia que não era um anjo. As asas eram parecidas com as de Gabriel, igual a imagem que vi na última vez que entrei numa igreja. Acho que tinha onze anos. Sabia que era sonho, não podia ter asas, mesmo assim sentia aquilo tudo como se fosse real. Voei pela cidade, pelos prédios; vi um bandido assaltando uma garota, vi um casal de namorados se beijando; vi o engarrafamento no centro da cidade. Expiava, no alto; livre. Continuava voando mesmo com as asas em brasa. De repente estou na cama, me debatendo. A chama, mesmo não existindo de verdade, me incomodava. Acordo assustado.

Vou para o quarto de Luisa, ela está dormindo com Leo. Bato na porta duas vezes, ninguém atende. Ela se levanta calmamente, pergunta qual o motivo de eu ter acordado tão cedo. Eu digo que tive novamente o pesadelo, ela suspira como sabendo onde a história iria parar. Dessa vez estou mais calmo, parece que ando me acostumando com os sonhos. Ela me leva para a sala, faz um café bem forte. Diz que exageramos no vinho. Leo levanta logo em seguida.

Fernanda não comeu nada, e por diversas vezes tentou conversar comigo. Eu me esquivava, mudava de assunto. Ela acabou indo embora sem dizer nada sobre a gente. Nossa relação andava confusa, como quase todas as relações apaixonadas no mundo de hoje. Éramos namorados no passado, mas por algum motivo que ninguém entendeu direito, acabamos desmanchando. Ainda saíamos juntos, nos amamos. Fernanda era uma ótima companhia e ela jurava que eu também era. Mesmo assim não servíamos um para o outro, não suportávamos nossas diferenças. Ela queria conversar sobre o casamento, suponho.

Tomo o café. Luisa pergunta se a dor de cabeça tinha passado. Eu tinha esquecido da dor, mas ela continuava, bem fraca. Digo que vou procurar um médico, que a dor continua apesar de nem ser percebida. Leo conta a vida de um tio, na verdade ele conta a morte do tio. O sujeito ficou com uma dor na cabeça, a mesma que a minha. E de repente o velho morreu. "Mas você não é tão velho assim", ele disse. Em nenhum momento a conversa pode me ajudar, aliás acabou despertando ainda mais meu medo de estar gravemente doente.

Teria uma reunião importante na empresa, isso poderia ser um fator agravante para minha saúde. Vinho, comida, exagerei na noite passada. A crise com Fernanda, não conseguimos nos acertar. Tudo podia estar contribuindo para o problema. Realmente estava levando uma vida um pouco tumultuada nos últimos meses, tenho dormindo pouco. O reencontro com Camila, lembrei. O encontro que podia ter sido maravilhoso, pode ter me deixado daquele jeito. Mas vou procurar um médico, prometo. Saio da mesa sem dizer uma só palavra, Luisa que me conhecia muito mais tempo que Leo, sabia que alguma coisa não estava nada bem.

Chego no escritório, ninguém presente. As coisas são assim mesmo, reuniões importantes marcadas na véspera são sempre um fracasso. Vejo alguns papéis na mesa, jogo alguma coisa fora. Fiquei longe da minha mesa por três dias e foi suficiente para o volume de lixo se acumulasse de forma drástica. Em pouco tempo minha mesa estava habitável novamente, e melhor ainda; podia encontrar o que eu quisesse. Naquele momento, por exemplo, não queria encontrar nada. Lembrei que meu quarto está uma bagunça, se Luisa não entrasse algumas vezes para tirar latas de cerveja, refrigerante e pacote de bolacha; talvez eu não conseguisse mais entrar nele.

A reunião tão esperada não aconteceu. Mas a dor de cabeça, essa não desistiu de mim. Resolvi esperar mais alguns dias, podia não ser nada de grave. Mas e o tio do Leo? Bobagem. Não estou sofrendo nada que possa me matar, somente essa dor de cabeça que me incomoda. Saio do escritório e vou para um bar onde possa beber com alguns amigos. O bar estava vazio, o frio daquele inverno não era nada animador. Foi patético beber duas cervejas e ir embora, sem dizer uma única palavra com ninguém.





4


Já era tarde. No apartamento Luisa me espera acordada, diz que Fernanda tinha acabado de sair. Eu sabia que ela estaria no apartamento, talvez por isso tenha demorado mais para chegar. Tomo um banho, Luisa disse que iria jantar fora com Leo, por isso não preparou nada. Ela parecia uma irmã, cuidava das minhas coisas, se preocupava comigo. Resolvemos dividir o aluguel do apartamento. Nunca brigamos. Não, irmã não é assim. Nunca tive irmã, mas sei que elas são possessivas. Ciumentas, acho. Dizer que todas as mulheres são ciumentas pode ser considerada uma grande mentira, mas todas as irmãs tem ciúme, é pura verdade. Além disso, Luisa e eu namoramos, um namoro bobo e passageiro na adolescência, talvez daí nossa cumplicidade.

Ela sai toda enfeitada, eu disse em tom de brincadeira. Luisa era alta, magra e com cabelos longos e pretos. Tinha um sorriso maravilhoso, era muito alegre. Seu corpo era perfeito, parte pelos cuidados que tinha com a saúde. Não tomava refrigerante, não comia carne e raras vezes devorava uma caixa inteira de bombom. Seu maior vício, chocolate. Saiu. Desejei sorte. Ela volta para perguntar se está tudo bem comigo, eu disse que não poderia estar melhor. Vai para o encontro. Eu pego um filme, começo assistir. Durmo motivado pelo frio e pela monotonia do casal apaixonado na minha tela.

Duas horas da manhã, o barulho da porta me faz acordar. Luisa e Leo se esforçam para manter o silêncio, mas era impossível controlar os impulsos de dois bêbados. Eles seguem para o quarto. Desligo a televisão, vou comer alguma coisa. Estava sem jantar. Levanto, a dor de cabeça está pior. Deve ser fome. Sempre que durmo no sofá fico com dor de cabeça. Pego um copo de leite frio, um pedaço de bolo de cenoura. Uma tontura, caio no chão da cozinha. O copo se espalha no chão, o bolo se despedaça na mão.

De manhã, Luisa me vê caído. Ela me ajuda levantar, não entende o que está acontecendo. Eu não sei responder também. Só lembro de ter acordado na madrugada, meio confuso. Estava com fome. Era essencial lembrar que estava com fome, afinal foi por esse motivo que cheguei até a cozinha. Luisa me bota na cadeira. Eu ainda estava parecendo uma fruta podre qualquer.

“Lembro que você chegou com Leo, foram para o quarto” - Eu tento explicar.
“Sim, chegamos de madrugada. E depois?”
“Vim para a cozinha, estava com fome”
“Certo. Comeu alguma coisa?”
“Não. Quer dizer, não sei”
“Precisa procurar um médico”
“Já marquei nas minhas férias”
“Férias? Daqui duas semanas? Precisa ir amanhã, hoje!”
“Não posso”
“Como não pode?”

Ela me levanta, me leva para a sala. Vai para o quarto chamar Leo. Ele liga para uma amiga que é médica. Marcam uma consulta, urgente. Não tinha como escapar, a coisa estava ficando mesmo complicada. A segunda tontura em menos de vinte e quatro horas. A dor de cabeça também estava pior. Sentia também uma dor no peito, não muito forte. Concordei com eles, precisávamos agir rápido. Tomei um banho, eu estava cheirando leite azedo.

“Pode ligar para Fernanda?”
“Ela esteve aqui, você evitou a Bebel”
“Evitei, eu sei. Mas eu preciso falar com ela”
“Eu dou o recado”
“Precisa ser pessoalmente”
“Quer dizer alguma coisa importante?”
“Ela não pode casar com aquele sujeito....”




5

Não deu tempo para terminar a frase, estava desmaiado novamente. Eles me pegam e me levam para o hospital onde a amiga de Leo trabalhava. Era um local calmo. Cheguei acordado, ou pelo menos parecia estar acordado. Alguns enfermeiros me colocam em uma maca, correm comigo pelos corredores frios. Entro num elevador. Logo estou numa sala enorme, fazendo exames. Doutora Madalena chega logo em seguida, conversa com Luisa. Todos me olham sem entender o que estava acontecendo. Fui saber depois, que poucos poderiam me ajudar.

Durante um tempo eu apaguei, não ouvia nada ou sentia absolutamente nada. Eram os remédios fazendo efeito. Nesse momento o sonho mais uma vez aparece em minha cabeça. Já não sentia dor, nem medo, nem fome. Tinha uma asa, voava pela cidade. Não pude encontrar Fernanda, nem no hospital, nem em casa ou no apartamento. Ela mais uma vez havia sumido dos meus olhares. Acordo novamente, os exames continuam. Estou deitado em uma cama de ferro, gelada. Leo não está mais com Luisa. Uma enfermeira bonita, cabelos longos e loiros, raspa os pelos do meu peito. De perto pude perceber que ela não era tão bonita assim. Luisa continua me olhando.

Posso morrer. A idéia da morte fica mais forte em minha cabeça. Eu posso morrer agora mesmo, deixar uma porção de coisas em aberto na vida. Não tenho família, sequer uma pessoa que possa chamar de família. Primos, tios, tias e outros. Todos estão muito longe e inacessíveis. Saí de casa muito cedo, perdi contato com todo mundo. Qual o motivo de querer vê-los agora? Na hora da minha morte? Bom, não sei se vou morrer, os exames ainda não estão prontos. Vamos lá, vamos pensar um pouco: a dor é tão irritante assim a ponto de ser uma doença incurável? Não, claro que não. Posso me levantar agora dessa cama, sair por aquela porta. Posso, mas tenho medo.

Fernanda, o trabalho e a insônia são personagens suficientes para acabar com minha vida. Acho que tudo isso tem contribuído para meus problemas. Um simples desmaio não pode me deixar desse jeito, com certeza vou sair daqui muito bem. É uma enxaqueca, eu penso. Só pode ser aquelas enxaquecas terríveis. Meu corpo só precisa diminuir o sal, quem sabe açúcar. Gordura? Evitar sempre. Os médicos sempre dizem isso, só pode ser esse o meu mal. Minha imaginação está indo longe demais, não desmaiaria por causa de uma picanha e uma porção de batata-fria.

Doutora Madalena entra novamente na sala. Eu estava acompanhando todos os passos da médica, da Luisa e dos enfermeiros através de uma janela de vidro que ficava do meu lado direito. Luisa continuava esperando os resultados, alguma notícia. Eu estava me sentindo melhor, mas estava sedado. Consigo levantar a cabeça, conversar normalmente com a médica. Ela começa a explicação. Não estava entendendo direito os termos técnicos, quase sempre são assim, querem esconder tudo. Depois de quase cinco minutos falando uma língua inacessível, resolvemos nos entender:

“Em outras palavras, você teve um desmaio”
“Desmaio?”
“Não é bem um desmaio, mas serve para você entender”
“Tudo bem, desmaio. E daí?” – Saber que sofri um desmaio parecia ser óbvio.
“Faltou oxigênio”
“Faltou onde?”
“Em todo seu corpo”
“Não é possível”
“A explicação é bem popular, quero que fique bem claro”
“Certo. E agora?”
“Você pode ir embora, mas vou querer que faça outros exames. O mais rápido possível”
“Entendo”
“Já conversei com sua namorada”
“Fernanda?”
“Não, aquela mocinha que está lá fora”
“Ela não é minha namorada”

segunda-feira, 18 de junho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 1 e 2

O MENOR DOS ENCANTOS

1

Muito frio aquela noite. Meus pés estão gelados. Não consigo movimentá-los, aquecê-los de alguma forma. Mal consigo levantar a cabeça, saber o que está acontecendo em minha volta. Éramos quatro pessoas em meu apartamento, minutos antes de chegar onde estou agora. Estávamos conversando sobre filmes, uma conversa boba e agradável. Preferia conversas despretensiosas, elas dizem mais sobre nosso caráter do que qualquer formulação elaborada, teórica, sobre qualquer assunto. Naquele dia discutiríamos sobre música, minha verdadeira paixão. De repente, no meio da conversa, sinto uma dor muito forte no peito, depois na cabeça. Levantei do sofá onde nós conversávamos, fui até a janela. Estava sentindo falta de ar, uma coisa qualquer me incomodando.

Volto para a conversa, o mal-estar tinha sido passageiro. Música dos filmes, atores. Diretores. Filme de terror, comédia. Não gosto de filme de terror, que jorram sangue. Mesmo assim sabia discutir sobre eles. Fiz uma lista imaginária na cabeça de quais filmes assistiria novamente se tivesse oportunidade. A dor volta, mas dessa vez apenas uma pontada na cabeça. Uma dor fraca, mas continua. Pela primeira vez percebem que eu não estou me sentindo bem. Caio no colo de alguém. Tudo se apaga.

Ainda sinto frio, mas a dor diminui. Não vejo ninguém no quarto, a sensação que sinto é de algum remédio fazendo efeito sobre mim.Um gosto amargo na boca, uma tontura leve e desconfortável. A dor de cabeça não some, mas é bem menor, quase suportável. Um tubo na minha boca, não consigo engolir; nem cuspir. Outro na altura da cintura. Alguns fios espalhados pelo corpo, perto do peito e outro no pescoço. Talvez esteja sedado, minhas pernas não me obedecem. Mãos, braços, dedos e boca. Apenas os olhos parecem se mover em um esforço incrível.

Uma enfermeira entra, junto um outro sujeito. Eles medem minha temperatura, olham duas vezes a prancheta, anotam. Conversam entre si alguma coisa sobre a Tânia. Eu não conheço, mas fiquei sabendo que está grávida do médico plantonista. Posso escutá-los, vê-los andando de um lado para outro naquele quarto frio e claro. Só não posso dizer nada, nem fazê-los perceber que ainda estou vivo. Eles se beijam no rosto, ele vai embora e ela continua examinando os papéis. Queria gritar, perguntar o quê está acontecendo. Ela injeta um medicamento em um dos canos infiltrados no braço. Eu sinto uma queimação, e mesmo pelo impulso da dor, meus braços não se movem.

Eu tinha asas. Voava por toda cidade procurando Fernanda. Fernanda estaria nesse momento dormindo. Ou estaria preocupada comigo? Talvez ela esteja lá fora, na sala de espera. Que notícias o médico daria para Fernanda? Que eu estava próximo ao final dos dias? Continuo voando. A cidade é fria também em meus sonhos. Sempre sonho estar voando, às vezes voando para o passado, o futuro. Sonho com o colégio, com a época da faculdade. Muitas vezes os sonhos são menos nobres, mesmo assim, estou voando. Naquele dia, no hospital, com tubos e remédios, eu sonhava apenas estar procurando Fernanda. Acordo, a sala está escura. Todos foram embora.

Um som, gritante. Todos entram na sala. O frio continua, mas posso ver o sol batendo no rosto. A enfermeira olha para os monitores. Linha subia, descia. Olha para o médico, ele se mantém intacto. Ela coloca mais um medicamento no tubo, novamente uma coisa em mim queima. Parece que engoli alguma coisa quente. Linha sobe, desce. Parece onda, parece música. Ela olha para mim, ele abre minha boca. Não tenho saliva, não posso me mover. Barulho continua, ela entra em desespero. Ele continua me olhando, como se não pudesse fazer absolutamente nada para acabar com minha angústia. Linha sobe, linha desce.





2

A sala foi testemunha de diversas discussões calorosas. Outro dia uma disputa entre mim, Fernanda, Leo e Luisa parecia querer seguir por toda noite. Era uma simples decisão sobre sabor de pizza. No catálogo diversos gostos duvidosos, mesmo assim mantínhamos nossas expectativas pessoais sobre o jantar daquela noite. Apenas uma coisa era certa: vinho tinto. Não haveria pessoa que pudesse duvidar que um bom vinho tinto acompanhasse a pizza com maestria. Leo era diretor de teatro, escrevia roteiros e no momento estava produzindo um filme sobre Beatles. Na verdade era um documentário sobre os Beatles. Fernanda era professora universitária, dava aula de economia. Luisa era palestrante, psicóloga de formação. Eu tentei três faculdades, não terminei nenhuma. Eu trabalhava com ações.

“Tenho uma dúvida incrível para o filme” – Eu e Leo conversávamos enquanto Fernanda e Luisa arrumavam à mesa – “Queria um filme em preto e branco”

O documentário que Leo estava fazendo tomava todo o tempo de nossas discussões, mas na maioria das vezes não conseguia chegar ao resultado esperado. Concordava com Leo sobre o tema, afinal o disco dos Beatles estava fazendo quarenta anos, e merecia um documento como aquele. No entanto, acha que o assunto era tratado de forma maçante por todos os meios de comunicação. Críticos diziam que o disco Sgt. Peppers tinha revolucionado a música e a maneira como se produziam os discos. Um tema muito importante, creio.

“Cara, sabe que entendo pouco de cinema”
“Pô! Mas conhece os Beatles!”
“Sim. Pelos Beatles, e pelo tema; o documentário tem que ser colorido" - Parecia que não íamos sair do assunto.
“Acha mesmo?”

Levanto e vou até meu quarto. Por sorte tinha uma revista atual sobre o assunto. Levei até a sala, mostrei para Leo. Ele ficou olhando para a capa da revista, onde tinha uma cópia do encarte do disco, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Uma edição comemorativa, mais uma das centenas que iriam surgir no mercado.

“Como fazer um filme em preto e branco de uma coisa assim?” – Aponto para a revista – “Você conhece bem a capa, eu não precisava mostrar para você”
“Entendo onde você quer chegar” - Eu não queria chegar à lugar nenhum, apenas convencê-lo sobre a bobagem de se filmar em preto e branco.

Fernanda aparece no meio da discussão, diz que Luisa está precisando da ajuda de Leo. Era apenas uma desculpa para poder ficar sozinha comigo. Ela senta ao meu lado, pega uma taça de vinho. Pergunta sobre o que estávamos discutindo. Eu falo superficialmente sobre o documentário de Leo. Às vezes ele se torna impertinente, principalmente quando está prestes a terminar o roteiro. Quando começar a filmar, então, a coisa piora.

“Novamente sobre o documentário?”
“Sim. Essa semana ele me mostrou o roteiro duas vezes”
“Precisamos conversar”
“Sobre o filme?”
“Sobre nós”

A pizza chega.

Na mesa redonda a discussão sobre filmes continua, Leo é o mais interessado na conversa. Continuo querendo falar sobre pizza, e os diversos sabores e aromas que o povo de São Paulo consegue fazer em tão pouco espaço. Pego um pedaço, coloco na boca. Fernanda está sem fome.
“Como isso pode cheirar tão bem?”



(Continua....)

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Novidade

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Olá,

Inaugurando mais um espaço onde colocar os meus textos. Aqui você poderá encontrar as novelas internáuticas já publicadas em anos anteriores. Se você quiser rever alguma história, ou quem sabe conhecer melhor os meus textos.

O texto O MENOR DOS ENCANTOS será postado na íntegra, assim como MOBIL AVE, BRIGA DE FOICE e ULTIMAVISION.

Está liberado a reprodução dos trechos, desde que a fonte seja citada.




Sérgio Oliveira





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