terça-feira, 27 de março de 2012

SAÍDA DE EMERGÊNCIA

1/22 – Saída de Emergência

“….Is there anybody in there?
Just nod if you can hear me
Is there anyone at home?
Come on now....” (1)


A vida é breve. Estou falando da minha vida. Passou muito rápido. Ontem eu nasci; hoje morro. Quantas voltas no relógio desde o momento em que nasci? Naquele momento dos olhares incompreensíveis de piedade (todos têm piedade dos recém-nascidos). Todas as crianças choram quando nascem, mas poucos sabem o quê é a dor do nascimento. Tão cruel. Igual a dor do parto para as mães. Mas a dor do nascimento nós esquecemos, tão desproporcional ela é para a vida. O nascimento não é uma coisa fácil. Viver também não. A minha vida, nada breve vida, parece uma eternidade. Viver deveria ser uma questão de tempo, não de oportunidades. E quanto tempo ainda eu posso olhar pela janela e me arrepender das coisas? Inútil. Só nos arrependemos do que não fazemos. O tempo passado das coisas é nossa maior fraqueza: somos derrotados pelos dias que se foram.

Estou cercado por paredes brancas. Mas elas não me deprimem. Elas são esperanças da minha libertação. Vivemos pela liberdade. Mas não a temos. Poucos são livres para fazer o que bem entendem. Na nossa ignorância, de não fazer parte do entendimento das coisas eternas, estamos presos. Presos ao emprego, ao nome e número da identidade. Eu estou no sobrenome e tudo que ele carrega: prestigio e uma história de conquistas. Diferente do meu avô, e até mesmo do meu pai, eu não conquistei nada. Não deixei meu nome cravado na imensidão das eras. Preso ainda ao namoro desde a adolescência e a mulher que eu amava e não tenho mais. Preso às explicações sobre isso tudo em minha vida, pensando que tudo tem explicação. Não existem desculpas para a vida, ela nunca é culpada.

Preso entre essas paredes brancas.

Até quando o meu corpo poderá voar? Até quando sentirei esse calafrio das coisas acabando para sempre? Nós, os céticos; não sofremos. E visto: não esperamos por nada, nada queremos. Mas o corpo voa e eu não sei até quando. Ele sente frio, fome e sede. Preso aqui, mas liberto no futuro. O que serei tão incompleto lá na frente que não conheço? Sentirei falta dos alimentos sólidos? Beberei água filtrada? Nunca mais vou tomar banho de chuva. Lembro quando era pequeno, logo depois de ter nascido: espiga de milho cozido, café fraco e doce; e o banho de chuva. Perderei os dentes com a velhice, mas sobrará o céu da boca.

E o tempo passa. Tão breve. Soubesse como a vida é breve, não seria uma breve vida. Lapidar as palavras no túmulo é coisa para filósofos. Não sou um deles, não sou nada. Não carrego o nome digno de nenhuma coisa que fiz ou faço. E, se não errei muito, também pouco arrisquei. Se eu for para o céu, pode ser por merecimento vago. Não teriam, todavia, como me levar para o inferno nas condenações imprudentes. Estaria eu já errando numa lógica excludente? Os poetas também adoram esses jogos de palavras: rimas podres. Serei salvo pela inoperância do bem ou por fracassar no mal? Não sei ainda, estou apenas num quarto de paredes brancas, tentando ser livre.

E os ponteiros marcam a mesma cena de ontem: o gosto do remédio e a desatenção dos enfermeiros. Eles precisam de uma dose do esquecimento do que é ser humano. Precisam do afastamento para que não morram junto com seus pacientes, pouco a pouco; inconscientemente.

Bruna disse que choraria por mim quando eu morresse.





2/22 – Saída de Emergência

Construo os pensamentos com matéria-prima irreal, dispersa e involuntária; escondida nas entranhas das diversas mobílias desse quarto. Um pouco do amor no guarda-roupa. Minhas conquistas no criado mudo, minha vitória nas gavetas. Todos são fragmentos de uma vida sem história. Eu me formando agora, deformado. Querendo, pela lucidez de vocês, que me vejam e entendam. Eu fracassei em saber o que eu quero e para onde eu vou: o descaminho. Não vou para lugar nenhum agora. O tempo é curto. E mesmo assim, ainda que não tenha nenhuma vontade de escrever e falar sobre mim, estou aqui por inteiro. Vocês sabem o que querem? Vocês sabem sobre a felicidade? Não quero pensar sobre essas coisas, por isso proponho: a reflexão, a inquietude e a desilusão. Mantenham a resposta em segredo, manterei as minhas também.

Bruna entra no quarto. Hoje é segunda-feira.

Bruna cabelos longos e pretos. Ela cortou as pontas há três dias. Ficou melhor, mais jovem. Olhos castanhos escuros. A mão sempre leve e suave. O sorriso? Como pode manter o sorriso por tanto tempo? E mais: como pode sorrir com tantas coisas adversas? Ela sorri sempre. Sorriso lindo. Sorri com os dentes brancos. Sorri da minha piada, da minha reclamação e da minha dor. Sorri da minha saudade. Dos meus amores. Sorri de tudo em mim, por mim e para mim. Abre a janela do quarto, como se eu precisasse de mais luz.

“Como você está hoje?”

Ela perguntava mesmo sabendo que eu não iria responder. Estou impossibilitado. Voando. Lembram? Meu corpo ao seu lado. Abraço Bruna de forma carinhosa. Queria poder fazer um jantar para ela. Você bebe vinho, Bruna? Sabe, tenho vinho em casa. Ora, ora. Não sou mais o mesmo. Eu me considerava um galanteador antigamente. Hoje não consigo me aproximar da garota que conhece minha intimidade: ela me dá banho e limpa minha pele. Queria perguntar se ela acredita. Acreditar, meu verbo sem complemento. Acredita, Bruna? Não precisa dizer em que, mas apenas acredite. Sua resposta para mim é suficiente. Verbo intransitivo. Acredita que eu possa sair daqui? Acredita que eu possa encontrar um amor? Acredita que eu possa ser feliz? E assistir um filme americano? Acredita? Aceito o que você responder.

“Conversei com o médico. Ele disse que você está respondendo bem ao tratamento. Sabe? Acreditamos que você está conseguindo ouvir o que estamos dizendo. Não parece incrível? Eu aqui conversando com você. Querendo contar minhas coisas. Você está respondendo? Eu sei que deve estar respondendo. Devemos essa conversa um para o outro: você paciente e eu enfermeira. Sabe que eu larguei o meu namorado? Depois e conto. É uma história incrível. Bem, você também deve ter uma história fascinante, não? Quando puder, conte para mim?”

Bruna tinha olhos castanhos. Disse isso? Odeio ficar sem televisão. Não tenho mais assunto. Já disse que estou apaixonado pela Bruna? Ela é linda, maravilhosa e cheirosa. Bom, suponho que ela seja cheirosa. Não consigo ver o seu corpo, ela se esconde do raio da visão. Seu rosto. A única coisa que eu vejo são seus olhos, seus cabelos e seu sorriso. Já disse sobre o sorriso? Odeio ficar sem televisão. Ela levanta minha perna, passa um líquido. Um banho com um pano molhado e uma bacia de plástico. Merecia coisa melhor no final da minha vida. Acredita, Bruna? Eu acredito em você. Então ela troca minha roupa.

Por instantes sinto vergonha da minha nudez tão passiva.






3/22 – Saída de Emergência

Noite de chuva. Noite do meu casamento. Bobagem pensar que na vida tudo pode dar certo. Algumas coisas nascem do acaso. Acaso não é ruim, não é coisa que devemos temer. Exatamente pelo acaso não escolher sua vítima. É impessoal. Ele apenas é. Pode ser com você, pode ser com outra pessoa. A chuva, o carro e o atraso no dia do meu casamento foram comigo, infelizmente. Um acaso. O carro patina. O carro derrapa. O carro encontra um caminhão também desgovernado. Olhamos o acaso. Meu carro bate com toda força, meu corpo voa. Já disse que ainda me sinto como se estivesse voando? Caio no asfalto, vou nadando por alguns metros. Não nadando literalmente. A poça de sangue com a poça da chuva. Lembrei de quando eu era pequeno e tomava banho de chuva.

O caminhão desgovernado cai. O motorista morre.

Eu vivo como numa espécie de morte também. Só me resta a lembrança. Foi tão breve o acidente, tão rápido; um instante estava tudo bem. Depois, nada. Escuto as sirenes antes de dormir um sono profundo. Era como se eu não existisse mais. Sonho de todo cético: morri para sempre, eu pensava. Quer dizer, eu não pensava. Pensei nisso apenas quando acordei, quando voltei, de repente, sentido um cheiro forte de café e de flores. O café era pura imaginação, mas as flores minha mãe quem trouxe. Onde ela está agora? Eu acordei confuso. E demorou um pouco para que eu compreendesse o meu estado de não estar. Minha voz silenciosa apenas na cabeça. Meus olhos que não se mechem, mas que continuam num ponto fixo, imóvel; numa rachadura na parede. Minha mente ativa e impenetrável.

Era o dia do meu casamento. Letícia devia estar linda no altar. Ela quis a igreja, pensou nos preparativos; escolheu a decoração. Letícia não é menos bonita do que Bruna. Da Letícia eu não dependo minha vida. Deve existir alguma explicação para isso, dessa cumplicidade no desastre virar amor. Nem lembro da Letícia, não sei que dia ela irá aparecer aqui; ela já veio uma porção de vezes. Mas a Bruna, eu conto os dias. Conto as horas. Difícil saber de tudo isso quando a única coisa que eu vejo é uma rachadura na parede. Algumas vezes eu vejo o Sol e os pássaros. Adamastor quem me leva para um passeio para fora daquele lugar.

Não é perigoso que eu fique no Sol sem proteção?

Perigoso é viver.

Então, Letícia no altar. Ali também o padre e os padrinhos. Espalhados pela igreja todos os convidados. O que pensaram naquela noite escura e triste de outubro? Pensaram que eu estava bêbado e que me perdi no caminho? Não sabiam onde eu estava. Na verdade souberam que eu estava no hospital apenas no dia seguinte, quando meu sogro soube do acidente. Antes eles apenas confabularam: desistiu do casamento, coitada da Letícia. Letícia devia ter aberto os presentes naquela noite; mas quis devolver tudo.

Letícia chega ao apartamento. Um cheiro de tinta, de coisa fresca. Ela chora a noite inteira. O abandono. Ainda era apenas um abandono de um noivo confuso. Não dormiu, mas sonhou com minha traição. Só podia ser outra mulher, ela pintava na parede o quadro escuro. Remédio para dormir. No outro dia o telefone toca: desistiria das desculpas? Me perdoaria? Não era minha voz, mas uma voz também triste. O noivo estava no hospital, sem qualquer chance e esperança.

Bruna ainda acredita que eu possa voltar a viver.





4/22 – Saída de Emergência

“Is there anybody out there?” (1)

Hoje é dia da mulher. Não existe calendário. Não consigo saber que dia estamos, nem quanto tempo estou deitado aqui. Mas tenho certeza que é dia da mulher. Mandaria flores para Letícia, com um cartão com alguns dizeres bonitos; um convite para jantarmos. Não pode ser dia da mulher, está chovendo. Adamastor se esforça para me colocar numa maca, caminha comigo para fora daquele quarto. Todos acreditam que isso ajuda minha recuperação. A verdade é que eles não fazem a menor idéia do quê passa na cabeça de um sujeito que está no mesmo estado que eu. Odeio o Sol, mas também não me sinto bem com a chuva.

Adamastor me deixa num canto. Eu olhando para os pingos enquanto ele conversa com uma garota. Como eu disse não posso me movimentar, então suponho que seja uma garota. O quê eles estão conversando? Adamastor não é casado. A garota, que deve ser uma enfermeira, uma assistente; ou alguém que trabalha na secretaria do hospital, também não é casada. Tudo suposição, tudo invenção. Não ligo para eles, e se estão tendo um caso extraconjugal. Conversam, conversam; algumas vezes umas risadas mais histéricas. Odeio mulheres com risadas histéricas (Bruna apenas sorri). Letícia raramente ria. Letícia não parecia feliz, mas era. Pelo menos era isso que me dizia cada vez que fazia a pergunta.

Quero voltar para o quarto. Pior aqui. Acho que eu não devia ter começado essa história. Não tenho a menor vontade de terminá-la. Na verdade eu sei que ela não irá acabar bem, por isso prefiro evitá-la. Como evitar a vida? Tem gente com a resposta na ponta da língua, como se realmente fosse fácil à brevidade das coisas. Não é. Tenham certeza. Até o último momento decidimos que podemos buscar o melhor caminho. Podemos. Podemos, mas não queremos. Pois em nosso comportamento damos valor ao acessível, ao rápido; ao indolor. A vida, todavia, é cheia de dores. Mas essas dores não são suficientes para danificar, agredir ou abreviar qualquer existência; mesmo quando a idéia se instala nos pensamentos; na hora do banho ou quando estamos bêbados. Minha vida agora está isenta de dores físicas.

Adamastor me leva para dentro. A alegria em seu rosto é pela conversa com a garota. Homem cheio de esperança fica com um olhar diferente. Um olhar afeminado. Um olhar com brilho de sonhos de princesas. Homens também pensam em princesas presas em castelos. Ponho a armadura, subo no cavalo. Nunca andei de cavalo, e prometo que se sair daqui com vida será a primeira coisa que vou fazer. Sim, a vida é cheia de tormentos; mas quão grande as pequenas coisas que nos dão alegria. Andar de cavalo. Comer espiga cozida com muito sal. Café fraco. Tomar banho de chuva.

Chegamos ao quarto e as paredes brancas com uma mísera rachadura.

Diferente de Bruna; não fico intimidado em ficar nu. Ele troca minha roupa e cuida da minha higiene. Não entendo a necessidade de tudo aquilo, afinal não há qualquer vestígio de sujeira, de impureza; de coisas que precisam estar em ordem. Não saio da cama. Já sei: acho que eles fazem isso para que eu me sinta um pouco mais humano. A sopa na boca não existe. As meias nos pés nas noites frias. O banho em dias de calor. Sim, me sinto mais humano por causa disso. Adamastor sai. A noite chega.

Existe alguém ai fora? Estou com insônia. A rachadura me olha.





5/22 – Saída de Emergência

Quanto tempo se passou desde a última visita de Bruna? Não sei o tempo. Algumas vezes isso me parece bom: essa ignorância dos fatos. Parece que foi ontem que eu sofri o acidente. Ontem eu estava me casando com Letícia. Ontem eu não coloquei nenhuma gota de álcool na boca. Ontem. Ontem. Ontem. Quanto tempo eu estou aqui? Adamastor cortou duas vezes meu cabelo nesse período. Serviço para os homens. O cabelo cresce na velocidade de quando eu estava sadio? As unhas. Como eu disse, a higiene nos aproxima da humanidade. Bruna viria hoje. Pelos meus cálculos, hoje era uma segunda-feira. Que cálculo? Minha cabeça não para de pensar um único minuto, e ao mesmo tempo não pensa em nada.

Bruna entra. Meu dia estava completo.

Se eu ainda sinto medo aqui? Sinto. Muitas vezes os médicos aparecem. Entram sempre com os enfermeiros. Mas dos médicos eu tenho medo. São impessoais. Não me ouvem. Será que eles sabem que eu tenho medo deles? Não falam nada, nadinha. Pegam, puxam, rabiscam a prancheta; olham os medicamentos injetados na veia; vão embora. O único médico quê eu confio é o Doutor Flávio. Consegui ler o seu nome na placa de identificação no jaleco. Doutor Flávio Schuber. Acho que é assim que escreve. Não, tenho certeza que falta uma letra. Esses nomes complicados. Bom, fica assim mesmo. Então, ele conversa comigo; temos um diálogo. Não tão íntimo como entre eu e a Bruna, mas respeitoso.

Então, Bruna pega o meu braço. Ela não está com uma cara boa hoje. Não diz uma única palavra. Ela sai da sala. Deve haver algum problema comigo. Ela volta. Com ela o doutor Flávio. Ele segura o meu braço, examina; apalpa. Como eu gostaria de sentir meu corpo, ele sendo tocado. Não é uma questão sexual, mas uma questão de existir. Flávio também sai da sala. Bruna continua me olhando. Entra outro médico. O tamanho da minha preocupação é proporcional ao número de médicos que entram por aquela porta. O segundo médico ri, mas uma risada serena.

Iriam amputar o meu braço?

Não sei o que os preocuparam tanto. Só sei que depois de alguns dias o meu braço continuava no mesmo lugar e nunca mais falaram sobre isso. Talvez eu nunca saiba o que tenha acontecido naquela segunda-feira. Bruna não disse uma única palavra sobre aquilo. Eu que esperei tanto por aquele dia, fui traído por um braço roxo. Será que era isso? Não pode ser. Ninguém se preocupa com um braço roxo. “Bruna, acredita que eu posso mexer o braço?” Hoje ela não estava acreditando em nada, e eu também. Os médicos se foram, ela continuou o cotidiano de uma segunda-feira. De repente, quando eu achei que nada pudesse acontecer, eis que o meu dia é salvo:

“Briguei com o Carlos. Ora, sabe o que ele aprontou comigo? Você sabe como são os homens, né? Pois é. Ele arrumou um desses passeios idiotas com os amigos. Churrasco e futebol. Num sítio. Acredita? Num sítio. E veio com aquele papo furado: Não pode levar mulher! Faça-me o favor! Duvido que não tenha mulher. Sempre têm essas poderosas que se acham o máximo. Além disso, ele já está enchendo o meu saco! Não sou mulher de ficar me arrastando, não? Mas me conta, e você? Como você está? O seu braço estava horrível, mas foi apenas um susto. Você quietinho ai, aprontando.....”

Não disse o que tinha acontecido, mas pouco importava diante daquele sorriso.





6/22 - Saída de Emergência

Quero assistir ao filme: “Nove Semanas e Meia de Amor”. Foi um sucesso. Lembro que me apaixonei pela Kim Basinger. Ela nem é tão bonita assim. Mas o cubo de gelo, ninguém esquece. Então, iria ajudar passar o tempo. É duro querer que o tempo passe depressa. Será pecado? O filme iria me divertir. Não tem televisão aqui, só a rachadura. Da rachadura a imaginação tem que funcionar, como numa espécie de portal. Ando mais místico ultimamente. Mas diferente de ser uma opção nobre, em mim é pela falta do que fazer.

Então, falta-me tudo.

Um sujeito entra pela porta. Ele parece enfermeiro. Não, é médico. São uniformes e posturas diferentes. Enfermeiro da área humana, médico exatas. Muito novo para ser médico, mas não existe qualquer problema com ele. Ele segura minha mão, examina meus dedos. Sinto que eles estão mais finos. Quanto tempo aqui sem poder comer? Ele examina o braço: apalpando, mexendo, girando, apertando e torcendo. Não sinto nada, apenas o vulto dos movimentos. Mas uma sensação é diferente: uma espécie de cócegas. Coceira é a menor dor do mundo, dizem. Como posso sentir aquilo? Estaria melhorando? Ele vai embora.

Volta em poucos minutos, o que pode ser uma eternidade: não tenho mais parâmetro do tempo. Bruna está com ele. Sinto-me seguro: Bruna não deixaria que ele me fizesse mal. Eles partem para os meus pés. Bruna fica inteira diante da minha visão. Ela poderia ficar ali por dias e dias. Linda. Como ela pode ser tão linda? Sinto seu perfume, seu brilho e sua voz. Perdi todos os meus sentidos, mas não perdi a lembrança. Eu sei quando uma mulher é cheirosa. Então, eles estão perto dos meus pés. Mais uma vez o médico me examina, o mesmo que fizeram com o meu braço.

Cócegas! Sinto vontade de rir. Sinto um calafrio que parte da sola dos pés até o alto da cabeça. É rápido, logo some. Mas senti. Senti a vida! Senti as coisas acontecendo. Senti que estava novamente preso ao meu corpo. Qual seria o próximo passo? Sentir a pele? Eles continuam fazendo alguns exercícios, mas já não sinto mais nada. O milagre da minha existência durou dois minutos e trinta e seis segundos: como eu disse, perdi a noção do tempo. Mas havia uma esperança. Bruna e o rapaz sorriam. Alguma coisa em mim aconteceu: primeiro com o braço, agora com as pernas.

Apesar da euforia, vários e vários dias depois nenhuma sensação aconteceu.


* * *
Começa a chuva. Minha mãe odiava que eu ficasse na rua. Mas o futebol não podia parar. O time da rua três é muito forte, poderoso. Estávamos ganhando de um gol de diferença. A chuva aperta. Ninguém arreda do campo de futebol improvisado: no meio da rua de asfalto e pedras enormes demarcando as traves. Lance para mim. Corro mais do que o possível. A rua estava escorregadia. A enxurrada levando a bola. Meto o pé descalço no meio daquela água suja com folhas e gravetos. Sinto uma queimação, uma dor leve. Continuo correndo. Não podia parar. A cena forte: os outros garotos viram um rastro de sangue se formando atrás de mim enquanto eu corria. Cheguei perto do gol adversário, fiz o gol. Minha mãe berra da janela do meu quarto!

Hoje o meu sonho é sentir novamente aquela dor, do meu dedo quebrando por causa de uma partida de futebol que não valia absolutamente nada. Eu e minha mãe corremos para o hospital. Mas tudo era lindo: a infância causa nossas maiores alegrias e iniciam nossas piores frustrações.




7/22 – Saída de Emergência

“….Hey you! Out there in the cold
Getting lonely, getting old, can you feel me?
Hey you! Standing in the aisles
With itchy feet and fading smiles, can you feel me?
Hey you! Don’t help them to bury the light…..” (1)

Mais uma vez a chuva. Volto sempre a esse tema, pois a chuva me traz muitas recordações. Como eu reclamava daquelas nuvens escuras. Hoje eu amo. Adoro. Venero. Aliás, tudo que eu puder tocar; rememorar ou viver; é uma benção. O que é pior: a falta de movimento ou a falta de lembranças? Se eu conseguir voltar para o mundo, quer dizer, se eu conseguir me recuperar do acidente, o que eu prefiro perder? O movimento ou a minha história? É uma escolha difícil, não saberia fazê-la. Nesse momento não lembrar é a pior coisa que pode acontecer comigo, pois as lembranças são as únicas coisas que eu tenho.

Então, está chovendo lá fora.

Não é a Bruna, nem o Adamastor. É uma senhora com uma pinta peluda na cara. Ela tira a roupa da minha cama. Sem banho. Não tomar banho é péssimo para minha condição humana. Será que é certo que estão fazendo comigo? Até quando vão esperar? Será que estão aguardando ansiosamente por uma palavra minha? Aprenderia falar novamente dizendo: mamãe. Então, eles vão aguardar. Cheios de esperanças. Farão o trabalho cotidiano. Uma rotina que eu começo a presenciar dia após dia. O tratamento que evite que eu acorde desse sono profundo e caia num abismo da inexistência: pretendem que meu cérebro continue funcionando. Os danos físicos, mentais? Eles não sabem o que fazer; apenas tentam evitar grandes problemas.

A senhora me carrega para fora do quarto. Farão novos exames. Uma ressonância magnética vai verificar os danos do meu cérebro. É o segundo que eu faço. Pelo menos foi essa conversa que eu ouvi da Bruna. A senhora não diz uma palavra. Ela tratou umas feridas na minha perna e no meu braço, estava melhor e não sangrava mais. Na minha cabeça não há problemas mais sérios. Em alguns casos os médicos colocam um tubo para drenar substâncias que não deveriam estar lá dentro. Isso não acontece comigo. Apenas remédios, remédios e mais remédios.

* * *

Bruna entra correndo no quarto. Ele sabe que eu não estou bem. Uma sombra perto da cama. Parece que estou com problemas na visão. Ela mede minha temperatura, estou com febre. Minha última febre aconteceu quando eu tinha cinco anos. Nunca tive qualquer problema de saúde. Então, é uma suspeita de pneumonia. No meu caso poderia ser fatal. A febre nos faz ter distúrbios, fazer coisas que não queremos ou movimentos involuntários? Eu só vejo aquela sombra assustadora; mais nada. Não poder ver a parede era o meu medo, o de perder essa última paisagem.

“Você deu um susto na gente, né? Agora está tudo bem. Sabe que damos um remedinho para que você não tenha qualquer problema aqui dentro, né? Gripe pode ser fatal, meu amigo. Mas como eu disse: está tudo bem. Quer dizer, acho que você está com o rosto muito magro. Mas isso era inevitável. Como será que você era mais jovem? Puxa, você parece ser uma pessoa muito legal. Você bebe? Tem cara que bebe vinho. Vamos combinar uma coisa? Quando você sair daí a primeira coisa que vamos fazer é comer uma pizza. Tudo bem? Eu escolho o lugar. Provavelmente você não sabe sobre os novos restaurantes. Temos bons restaurantes por aqui. Não gosta de pizza? Duvido. Se está me ouvindo, por favor, movimente os olhos, é um pedido que eu faço. Sabe? Tenho esperança em você. Eu sei que pode me ouvir. Posso acreditar, não é mesmo?”.





8/22 – Saída de Emergência

Quantos convidados? É complicado fazer a lista de casamento. Sempre esquecemos de alguém. Letícia é muito organizada, diferente de mim. Ela colocou o nome de todas as pessoas que conhecemos. Sempre achamos conhecer menos pessoas do que realmente conhecemos. Na prática o número de amigos é muito maior. Não sei se existe uma pesquisa sobre isso, deve existir. Qual a média de amigos que devemos ter para sermos considerados pessoas normais? A relação na minha frente. Eu com duzentos e dois nomes. Ela trezentos e quatro. Nós, homens, conhecemos mais pessoas durante nossa existência, mas somos muito desleixados com as amizades: esquecemos de muitos amigos pelo caminho. Sobram apenas aqueles que mais gostamos; que são poucos.

“Não vai chamar suas ex-namoradas, vai?”
“Não todas”
“Sabe que eu não quero”
“Elas são importantes para minha história, oras”.
“Não quero a Angélica”
“Angélica não foi minha namorada”
“Mas eu vejo o jeito que você fala dessa garota”.
“Que jeito? Vocês mulheres inventam cada coisa”.
“Um jeito diferente, você não entende”.
“Não entendo mesmo. Conheço Angélica desde criança”.
“Vai dizer que acha que ela é sua irmãzinha?”
“Pare com besteira”
“Não vai chamar”
“Você é muito infantil”
“Não vai chamar!”

Letícia chorava por qualquer bobagem. Eu a entendo muitas vezes. Mas chamei Angélica e algumas outras ex-namoradas que ela não fazia idéia. A mulher insegura quase sempre é vítima de pequenas mentiras. É inevitável a mentira, para que a relação continue sadia. Se você pensa que pode dizer a verdade numa relação está enganado. Verdades são péssimas companheiras em matéria de amor.

* * *

O pássaro livre. Voava baixo. Pássaro são animais invejados. Eu com minha arma na mão. Pedra no couro. Estilingue não foi dado de presente para matar bicho, mas para acertar vidraças dos vizinhos. Eu estico a tripa de mico, fecho um dos olhos. O pássaro está na mira. Não quero matar o bicho, mas todos estão me pressionando: Mulherzinha, mulherzinha! Ora, mulherzinha, não. Estico com mais força. Solto a pedra. Mas solto com uma vontade incrivelmente forte de errar. De esperar que o pássaro se assuste e saída do galho daquela mangueira. Que eu acerte aquela pedra numa manga podre, que não mate qualquer bicho. Essa é minha vontade. A pedra percorre o seu trajeto: o caminho mais longo da minha vida. Passa pelo pássaro, acerta o horizonte. Os outros meninos olham: burro, burro! Burro com sorte: melhor burro que covarde.

Angélica me beija o rosto, orgulhosa da minha decisão.

O pássaro está longe. Assim como os meninos idiotas que acreditam que uma ação estúpida como aquela é sinal de valentia. Se covarde ou não, sem problemas. Dois e três beijos. Começou um grande amor. Amor que nunca mais deixou de existir. Um anel marca nossa relação.



9/22 – Saída de Emergência

Minha vida passou depressa. A vida breve é um espetáculo da natureza: não há evolução para o ser humano que vive pouco. Temos tanto que aprender que decidimos não viver nada. Lugares que nós deixamos de conhecer. Comidas que deixamos de experimentar. Pessoas que deixamos de amar. Eu deixei de amar Letícia, mas ainda sim era cômodo o casamento. Sim, a comodidade das coisas acontecendo sem a nossa devida atenção. De repente estávamos namorando, de repente ficamos noivos e de repente estávamos casando. O caos e o repente são coisas que não temos o menor controle. Por isso não prestamos a devida atenção nos fatos inesperados.

O caminhão na minha direção foi coisa do destino.

Bruna não era enfermeira. Ouvi uma conversa dia desses. Estava sonolento por causa dos remédios. Sentia uma irritação incomum no estômago. Parecia fome. Mas não era fome, era uma coisa menos dolorida que a fome. Minha mãe dizia que a fome era sinal de cura: quanto nós estamos doentes perdemos o apetite. Bruna era fisioterapeuta. Estava ali para que eu não fosse um sujeito sedentário. Movia minha perna, meus braços e dedos. Não sabia disso, pois não sentia qualquer movimento.

Adamastor conversa com um outro médico:

“O trabalho está bem feito. Se ele recuperar a consciência estará com o corpo em bom estado”.
“Dizem que a Bruna é uma das melhores no hospital”.
“Não podemos perdê-la. Preciso falar com o diretor”.
“O problema é o diretor”.
“Esse cara arruma confusão com todo mundo”.

Bruna iria sair do hospital.

* * *

Estou cansado. O dia está corrido. Amanhã eu caso. Não quero casar. Tudo tão rápido. Meus pensamentos não estão bem conectados. O que anda acontecendo comigo? Estressado? Os projetos estão atrasados. Lançamento de uma linha de xampu e condicionadores. O pessoal da edição está no meu pé. Entro de férias, lua-de-mel. Chile e Venezuela. Sonho de Letícia. Mas eu não quero casar. Amanhã às sete horas vou estar no altar. Um enorme crucifixo pendurado na minha cabeça: não posso mentir. Minha família é católica, mas eu não me apego ao mundo que não conheço: a religião, qualquer uma delas, sempre me oprimiu. Não duvido que eu vá para algum lugar quando eu morrer, mas não quero perder tempo pensando nisso (Eu sei que não é perda de tempo essas questões sobre a morte). Não quero casar.

Preciso de uma massagem. Preciso reencontrar algumas pessoas antes de casar. Angélica ligou de novo para mim. Nós nos encontramos há duas semanas na casa de minha mãe. Tanta coisa que precisávamos resolver. Eu disse que iria casar. Irremediável. Angélica não chorou. Não reclamou minha decisão. Era o certo. Bebemos. Bebemos muito. Dissemos coisas um para o outro que não diríamos para qualquer outra pessoa. Fomos embora sonhando com as coisas que não aconteceram.

Mas o encontro com Angélica, mais tarde, mudaria minha vida.




10/22 – Saída de Emergência

“….Don't give in without a fight.
Hey you! Out there on your own
Sitting naked by the phone would you touch me?.....” (1)

A massagem seria simples. Os músculos livres das tensões. A dor iria embora como num passe de mágica. Fadiga? Dane-se aquele projeto do condicionador e do xampu. O produto era muito ruim. Não estava doente, mas prestes a desmaiar na mesa do escritório. Trabalhando doze horas por dia, dormindo apenas duas ou três horas. Valia a pena aquilo tudo? Hoje eu sei que não vale: mesmo com trabalho, mesmo com dinheiro e mesmo com o casamento marcado; eu era infeliz. Você me entende, Bruna? Eu sei que me entende. Mas, mesmo assim, quer ir embora. Quer que eu fale com o diretor? Eu sei que ele é um cara intransigente, mas não custa tentar.

Os médicos tentavam evitar uma nova convulsão. Bruna disse que eu tive pelo menos cinco durante o período mais crítico. O fluxo sanguíneo cerebral não era um problema, pelo menos por enquanto. Diziam que eu estava estável, mas que não podiam deixar de monitorar qualquer alteração. Alteração que aconteceu na manhã de hoje, para contentamento de todos:

“Ele teve um reflexo”
“Tem certeza?”
“Mas foi só um reflexo”
“Tem certeza?”
“Pode ser uma boa notícia”
“Tem certeza?”

Não há certeza alguma.

O falatório médico me deprime. Mas o resumo era o seguinte: eu movimentei minha perna. Houve mudança no meu comportamento. Coração, sangue; olhos e vida. Angélica estava no meu sonho naquele momento. Tudo aconteceu quando eu estava lembrando do nosso último encontro. Eu me movi! Mas foi tão rápido que nem percebi. Estava num sonho, estava com minhas lembranças, estava vivendo. Parei. Não houve mais milagre.

Depois de duas horas Bruna me muda de posição, dizia que era para prevenir escaras.

Minha mãe não veio mais me visitar.


* * *

Noite de chuva. Noite do meu casamento. Na vida não podemos ser felizes sempre. O acaso da chuva, o caminhão batendo no meu carro. Não era para eu estar ali, mas estava. Saí correndo do apartamento da Angélica. Estava atrasado. Praticamente vinte e quatro horas sem atender ninguém, falar com ninguém: trancado com Angélica. Estavam me procurando. Letícia tinha certeza que eu chegaria no horário. Onde ele se meteu? Ela perguntava para sua mãe. Algumas mulheres preferem ser enganadas, repito. Meu carro bate com toda força, sinto meu corpo voando. Caio no asfalto, saio rolando por alguns metros. Não sinto meu corpo, nem vejo mais nada.

Acordo num hospital. Paredes brancas. Uma mulher me olha de longe. Não era a Bruna. Ela vê meus olhos abrindo. Corre para procurar um médico. Ele coloca uma luz forte nos meus olhos. O que era aquilo que eu estava vivendo? Coma é quase morto. Morto não abre os olhos. Mas eu estava como numa espécie de morte diferente. Olhos abertos, vivos. Olhos cansados. Meus olhos não se mexem. Não consigo acompanhar o movimento das coisas em minha volta. Mas as coisas estão todas ali. Em que espécie de transe eu estava?

O caminhão desgovernado cai. O motorista morre.




11/22 – Saída de Emergência

Letícia chega chorando no apartamento. Dizem que ela ficou com a roupa de noiva durante três dias. Três dias sem comer e tomar banho. Três dias sem dormir direito. Todos os presentes embrulhados, espalhados pela sala e cozinha. Tinha umas caixas no quarto também. Devolver tudo? Letícia não sabia o que fazer. Fora aconselhada a deixar tudo daquele jeito, aguardar mais alguns dias. Quando estivesse mais calma procuraria a melhor opção. Era certo que devolveria tudo. Era mais certo ainda que ninguém recebesse os presentes de volta. Nas conversas apenas o consolo de que um dia eu poderia melhorar, e que isso poderia ser breve. Todas as caixas na sala, ainda hoje.

A lista em sua mão. Chorava por causa de alguns nomes. Angélica estava ali. Ela sabia que Angélica era o meu grande amor. Nunca achei que Angélica fosse, e por questões da vida, acabamos nos separando. E a vida é breve para ficarmos pensando em conjuntura. E se Angélica tivesse casado? E se Angélica não tivesse mudado? E se Angélica me amasse? Ela casou, ela mudou e ela não me ama mais. Essas coisas passavam insistentemente em seus pensamentos. A briga na hora de convidar todos, ali ficou evidente que eu gostava de Letícia, mas não a amava.

“Já disse que não quero esse nome”
“Já disse que você parece criança?”
“Eu sei que pareço criança, todo mundo fala isso. Mas é uma falta de respeito! Ela ali na igreja. Em algum momento você pensou em como eu me sinto?”
“Eu sei como você se sente, mas continuo dizendo que ela é uma pessoa importante, mais nada”.
“Tem muitas pessoas importantes esquecidas em sua lista”.
“Ela é quase da família”.
“Ela ficou distante por muitos anos, mas ainda gosta dessa criatura”.
“Éramos crianças, não pode entender isso?”.
“Vai começar novamente com a história?”.
“Não vou contar mais nada. Já causei muito transtorno com isso. Se soubesse nunca teria dito nada”.

* * *

Minha mãe estava doente. Não sei quanto tempo ela ainda sobreviveria. Num dia eu fui visitá-la. Ela ficou doente após duas semanas de eu ter ficado noivo de Letícia. Então. Era uma quarta-feira. A casa continuava do mesmo jeito. Quanto tempo eu não venho aqui? Dois anos? Encontrava minha mãe sempre, mas em locais diferentes. Quase sempre almoçávamos juntos. Eu entrei junto com as recordações. Ela estava na sala, deitada. Deitada como nunca estivera. Minha mãe era ativa, corria; se movimentava por todos os lados. Ela estava ali há duas semanas. Impossível acreditar naquilo. Ela consegue se levantar, um abraço afetuoso. Ela senta novamente no sofá.

“Você não sabe quem está aqui”
“Não faço idéia”
“Ela está no banheiro. Acabou de chegar. Quer dizer, chegou há uma hora. Já colocamos o papo em dia”.
“Quem está aqui? Quer me matar de curiosidade?”
“Angélica”
12/22 – Saída de Emergência

O que será de mim quando sair daqui? Quais os planos que eu devo fazer? Onde começar? Rompendo o ventre da minha mãe. Voltar a andar, me mover; conseguir falar: é como se estivesse nascendo novamente. Nascendo agora eu tenho pouco tempo de vida. Supondo que agora mesmo eu desse um pulo dessa cama. O que faria primeiro? Acho que comeria um pudim de leite. Quem sabe um sorvete de creme. Não, não estou com fome. Acho que iria molhar os pés no mar. O certo é que teria um pouco menos de quarenta anos de vida. Parece pouco. Tem gente que reclama. Na minha posição é muito. Ficaria contente se tivesse um ano de vida. Seis meses de vida é o suficiente. Não preciso de planos. Acho que não preciso mais de vida.

Minha mãe morreu dois dias após o meu acidente. Ela chegou ficar alguns dias aqui comigo. Mas morreu. Não há nenhuma relação com o meu estado, ela não ficou nervosa; somente chocada. Ela estava doente mesmo, morreu por isso. As coisas aconteceram como realmente tinham que acontecer. Meu pai tinha morrido bem antes, quando eu tinha treze anos. Minha família não é pequena, mas mesmo assim não tinha um convívio com os outros parentes. Qual o plano? Continua batendo na minha cabeça o meu futuro. Não tenho ninguém, nada. Não tenho sequer boas lembranças da minha vida. Como eu disse: tudo era perfeito, mas nada parecia real.

Bruna entrou no quarto.

“Não quero conversa hoje. Estou triste. Sabe quando as pessoas se sentem tristes e querem ficar isoladas? Que pergunta idiota eu estou fazendo para você. Quer uma pessoa mais solitária no mundo? Queria poder levar você para minha casa. Conversaríamos sempre. Você gosta de filmes, de música. Parece ter bom gosto. Lembra da pizza? Fica marcado, tudo bem? Eu estou triste: vou deixar você. Não, não chore. São coisas da vida. Arrumei uma confusão aqui dentro com o diretor por causa da paciente do quarto 63. Sabe quem é? Impossível você saber, não é? Ficarei mais um mês. Já pensou você se recuperando até lá? Sabe que eu iria ficar muito contente, não? Tenho uma novidade: arrumei um namorado. Ele é da mesma área que eu. Fica mais fácil, sabe? O outro era muito ciumento. Acredita que ele tinha ciúmes até de você? Eu disse que ele deveria vir te conhecer, mas ele ficou com medo. Ele era um imbecil.”

* * *

Angélica e eu nos conhecemos quando crianças. Juras de amor de quem não sabe o que é amor. Mas por algum motivo eu sabia que nos reencontraríamos um dia. Tinha doze anos, ela um pouco mais velha. O seu pai recebeu um convite para trabalhar fora do país, ele aceitou. Angélica iria se mudar para a África do Sul. A notícia foi muito ruim, mas naquele momento eu não sabia a extensão daquilo. Foi ruim, ela viajou. E nessa viajem de vários e vários anos nós mudamos. Crescemos. Ela desapareceu da minha história. Que saudade uma criança ainda poderia ter depois de adulta? Tudo aquilo parecia uma novela, coisa de cinema; coisa de literatura. Não era. Era verdade. É coisa que acontece com muitos, em todos os lugares.

Depois de quase trinta anos ela está na minha frente. Precisamente vinte e seis anos. Não há precisão na nossa história: parece uma eternidade. E melhor de tudo, parece que foi ontem. Ficamos nos olhando por alguns instantes, sem saber direito o que dizer um para o outro.

Realmente não havia nada mesmo para falar.





13/22 – Saída de Emergência

“…I've got a little black book
With my poems in
I've got a bag with a toothbrush
And a comb in....” (1)


O carro patinando na água. É uma questão de minutos. Não sei direito o que está acontecendo. Tudo é um instante. Se eu tivesse que descrever o acidente para alguém, não usaria mais do que seis palavras. O caminhão na minha frente. Eu sei que alguma coisa está diferente. O caminhão deveria percorrer sua faixa. Uma curva. Ele se mantém reto. Ele está perto de mim. A chuva parece aumentar naquele momento. O mundo acabando, o dilúvio. A luz aumenta. O barulho também. Se eu morresse naquele instante, me arrependeria de ter ido encontrar Angélica. Como eu não morri; não me arrependo de nada.

Bruna vai mesmo embora.

Antes de ir, me traz um presente. Ela coloca um rádio na minha frente. Pergunta se eu gosto de música. Viu meu sorriso? Bruna, você acredita que eu estou sorrindo? Ela acredita. Ela liga o rádio. Por algum motivo sabe exatamente o tipo de música que eu gosto. Pergunto discretamente sobre as visitas. Ela sorri mais uma vez. Não consigo ficar nervosa com Bruna nem nos momentos em que ela me ignora. A música tocando. Deixaria o rádio ali para sempre? E quando você for embora? Bruna vai mesmo embora. As coisas boas não duram para sempre, é certo.

Letícia apareceu aqui nos primeiros dias. Chorou muito. Mas descobriu alguma coisa sobre Angélica. Letícia me abandonou. Não sei se foi por causa da Angélica ou se o amor realmente havia acabado: ela realmente me abandonou. Estou aqui há muito tempo. Bruna poderia colocar um calendário na rachadura. Dali não sai mais nenhuma imaginação. Ando perdendo a vontade. Outro dia senti novamente o cheiro de café. Café com bolo de milho. Essas lembranças não me deixam em paz. Letícia nunca mais apareceu. Abriu os presentes? Deve ter aberto. Acho que está casada. Não importa. Minha mãe morreu, meu pai morreu; Letícia desistiu de mim. As verdades tardam.

Adamastor desliga o rádio.

Ele me ajeita na cama. O banho não me faz tão mais humano. Os remédios causam pequenos efeitos. Um impulso aqui, uma tremedeira ali. Um reflexo qualquer quando os pés são perfurados. Além disso? Nada. A chuva não tem mais cheiro, nem o sol qualquer cor. O que eu queria agora? Paz. Não tenho paz. Tenho a repetição da vida. Até mesmo quando eu podia andar, comer e beber; a vida era rotineira. O cotidiano nos mata pouco a pouco, tem me matando muito mais do que vocês imaginam: mas eu não tenho escolha, vocês têm.

O que será de mim, Adamastor, quando eu sair daqui? Ninguém mais me espera. Não há qualquer pessoa que me ame, que se importe comigo. Quantos vieram me visitar nos últimos meses? Ninguém. Pode dizer a verdade. Ninguém veio me visitar e a resposta é a pior possível: ninguém me ama. Não ser amado é tão ruim quanto não amar. Não ser amado é estar esquecido, perdido; sem sentido. Bruna tinha razão: eu sei o que é estar isolado. Eu sei o que é estar numa batalha perdida. Não quero ganhar do mundo, queria apenas poder ter desviado meu carro daquele caminhão. Quem veio hoje de manhã? Hoje era dia de visita, não é verdade? Não minta para mim, Adamastor (Ele se mantinha concentrado nos seus afazeres)!

Tudo bem. Eu sei que vocês devem estar se perguntando nesse exato momento: Cadê a Angélica? E eu responderei: ela morreu. Parece triste morrer, não? Para mim, ela acaba de morrer.




14/22 – Saída de Emergência

Minha mãe ficou em silêncio por alguns minutos. Angélica e eu trocamos olhares. Em silêncio. O silêncio diz muitas coisas: às vezes ele é mais importante. Senti um tumultuado sentimento: tristeza, alegria; decepção e saudade. Abraçaria Angélica com toda força? Beijaria seu rosto? Não fiz nada daquilo. E as juras de amor? Lembro-me: não sabíamos o que era amor. Ainda hoje ninguém sabe. Supomos apenas o que é amor. Levemente essa sensação de bem-estar, de segurança; de querer. Amor é somente isso. Além disso: uma realidade irreconhecível de completude e de felicidade. Amor sublime, cúmplice; amor ágape. Não sabemos o que é amor, apenas suspeitamos. Por isso somos infelizes, por isso a felicidade é impossível; essa nossa destemida ignorância.

“Você está diferente”
“Deixei a barba”
“É verdade. Naquela época você não tinha barba”.

Um sorriso. Um relaxamento natural.

“Fiquei sabendo que sua mãe estava doente, tomei coragem para procurar vocês”.

Queria perguntar o motivo de não ter nos procurado antes.

“Na minha vida... tantas coisas. Não sei nem por onde começar”.
“Seria importante para mim”.
“Da África percorremos outros países. Passei por guerras, essas coisas”.
“Sua vida parece cheia de aventura”.
“Mas falta alguma coisa”
“Você ficou incompleta por todos esses anos?”
“Fiquei com vergonha”
“De mim?”
“De tudo. De nunca ter voltado à história para contá-la de um jeito melhor. Do jeito que eu queria.”
“Não somos donos do destino, você sabe. Só temos condição de escolher a melhor”.
“Eu sei”
“Por isso acho que fizemos a escolha certa”

* * *

No hospital o rádio estava desligado.

* * *

Nesse momento minha mãe sai da sala. A conversa parecia longa entre eu e Angélica. Na verdade tentaríamos explicar o inexplicável. Justificar o que não precisa de justificativa. Não havia qualquer promessa, não havia qualquer razão de compartilhar nossa história. Era coisa de criança, eu sempre pensava desse jeito. Mas, mesmo com tudo aquilo, eu também me sentia muito triste, incompleto. Com o passar do tempo eu fui me acostumando com a ausência, mas não era feliz mesmo assim. Mas não era pela Angélica, hoje eu sei que ela não tem relação nenhuma com minha tristeza.

“Como você queria contar a história?”
“Queria ter vindo para cá na primeira oportunidade. Queria saber como você estava. Mas eu tinha medo de como iria me receber”.


A história estava escrita e nada podia mudar aquilo.




15/22 – Saída Emergência

Os médicos saem correndo. Alguma coisa tinha acontecido comigo. Não parecia ser coisa boa. Era uma mistura de empolgação e preocupação. Não senti qualquer movimento, nem qualquer alteração física em mim que pudesse ter causado aquilo. Seria um movimento involuntário? Um batimento do coração mais forte? Eu não penso mais na possibilidade de sair daqui. Estamos, na realidade, presos sempre em nosso corpo. O corpo uma prisão temporária e limitada da nossa existência. É por isso temos o pensamento: para não sermos derrotados todos os dias. Ele pode nos levar para qualquer lugar. Às vezes, o pensamento é incontrolável. Mas, na maioria das vezes, ele está ao nosso favor. Tenho medo de morrer, não penso na morte. Logo ela não existe. Bingo! Adamastor, você entendeu o que eu disse?

Passo pelo corredor.

Entro num local escuro. Estava escuro antes de entrarmos. Uma máquina. Luz e mais luzes. Um show pirotécnico. Onde está a Bruna? Nela eu confio. O que estão fazendo comigo? Não interessa agora. Sou mais destemido, não tenho nada em jogo. Batalha? A batalha é dos médicos. Eles não querem me perder para uma suposta morte. Hoje eu sei que não vou morrer. Mesmo que eu me desprenda do corpo, não morrerei. Não sei para onde eu vou depois daqui, nem sei se será um lugar melhor. Não espero nada, já disse isso: não tenho como me frustrar. Mas a derrota, em mim, não é da morte; mas da vida.

Algumas pessoas acreditam em muitas coisas: elas mais perdem do que ganham.


* * *

Angélica continua contando sua história. É outro dia. Marcamos um encontro num bar. Para Letícia eu disse que estava com uns amigos jogando futebol. Para meus amigos eu disse outra mentira. Ninguém sabia onde eu estava. Não era preciso que ninguém soubesse.

“Meu pai morreu quando eu fiz dezesseis anos”
“Continue”
“Estava numa casa alugada, com a policia procurando meu pai pelo suposto atentado. Estava perdida”.
“Poderia ter me procurado”
“A vida tomou um rumo incontrolável”
“Não custava ligar. Mandar notícias”.
“Foi quando eu conheci Dideron. Ele era amigo do meu pai, um pouco mais velho do que eu”.

Angélica foge para França com o Dideron. Ambos procurados pela polícia. Angélica lutava pelas causas humanitárias (pelo menos era isso que ela estava dizendo). Dideron apresenta Angélica para uma senhora na cidade de Le Mans. Angélica fica ali por alguns meses. Logo depois Dideron morre. Angélica estava sem dinheiro, morando de favor na casa de uma senhora que tinha o costume de matar gatos nas noites de lua cheia. Era uma senhora confiável, mas louca.

Angélica disse que morre de medo de gatos desde então.




16/22 – Saída de Emergência

Padre no altar. Os convidados estão eufóricos. Ninguém sabe o que pode ter acontecido comigo. Letícia dentro do carro sem qualquer notícia. Não estava calor, mas ela transpirava vestida daquele jeito. O pai olha com medo do que pode ter acontecido. Ele não imagina que eu tenha desistido do casamento, suspeita que algo pior tenha acontecido. Ela transpira. A mãe no altar segura firme a mão da irmã, Tia Geralda. O que queriam fazer naquele momento? Vinte e dois minutos de atraso. O padre se retira. De repente a informação de que o noivo iria se atrasar um pouco. Era mentira. Ninguém sabia o que tinha acontecido comigo.

Trinta e dois minutos de atraso. Alguém bate no vidro do carro que estava estacionado na frente da igreja. Pai da Letícia se levanta. A chuva tinha ido embora. Tinha caído um dilúvio perto dali (o comentário era de que aquilo trazia sorte). Um sujeito magro e alto conversa sobre o acidente. Pai de Letícia entra no carro. Diz que eu iria me atrasar, pois havia acontecido alguma coisa na pista. Naquele momento ele não deu qualquer detalhe: precisava apurar corretamente os acontecimentos. Ele vai com o sujeito até o hospital. A igreja já sabia que eu não iria chegar. Letícia foi avisada pela mãe enquanto o carro levava de volta as duas para o apartamento.

* * *

Dideron e Angélica eram os últimos do grupo. Todos estavam mortos. A senhora que matava os gatos era uma simpatizante indigesta. Servia apenas de abrigo naquela região. Matar gatos não era uma coisa que podia ser justificada facilmente para uma associação como aquela. Embora pudessem arrumar ajuda de mais uma porção de gente na Europa, o certo era de que o sonho revolucionário estava acabando. Angélica logo é obrigada a sair da casa. A senhora deve matar gatos ainda hoje.

“Então consegui chegar até Londres”
“Queria conhecer essa cidade”
“Não do jeito que eu conheci”
“Você conhecia alguém?”
“Na verdade eu não conhecia, mas uma pessoa me ajudou”.
“Arrumou trabalho para você?”
“Eu trabalhava numa boate”.

Angélica não deveria se envergonhar da sua história, mas era isso que estava acontecendo.

* * *

O médico sabe que eu melhorei. Mesmo assim não tem certeza. Tudo na medicina é muito vago. Depende disso, daquilo. Depende de condições do paciente. Depende da vontade. O mesmo caos que me atingiu com um caminhão é o mesmo acaso que irá me tirar dessa situação. Os médicos lutam, é o papel deles. O resultado, porém, não lhes pertence. Mais luzes. Mais salas, mais médicos. Bruna não estava. Adamastor acompanha toda movimentação. Eu tinha melhorado, era evidente. Mas eu não conseguia entender ainda no quê. Melhorei fisicamente? Clinicamente? Psicologicamente ainda estava do mesmo jeito: derrotado.
17/22 – Saída de Emergência

Angélica disse que começou a trabalhar numa boate. Era a única escapatória. Não demorou muito para que se encontrasse com alguns clientes fora dali. O trabalho foi se avolumando, ela foi ficando conhecida: clientes pagavam bem. Não era um trabalho fácil. Foi nessa época que o vício se tornou mais perigoso e necessário: qualquer droga. O trabalho de qualquer prostituta não é a melhor coisa do mundo. Na boate até uma hora da manhã, saída com clientes até as sete. Dormia na parte da tarde. Às oito horas da noite já estava na boate novamente. Por incrível que possa parecer, tinha dias de folga. O dono gostava muito de Angélica. Glória era o seu nome naquele lugar. Ela dizia ser de Portugal apesar de não demonstrar nenhum sotaque.

“Nas horas vagas eu investigava minhas origens”
“Como conseguiu nos encontrar?”
“Um sujeito muito especial apareceu em minha vida. Brasileiro. Carioca. Carlos Eduardo estava estudando em Londres. Nós nos conhecemos no cinema. Quer dizer, ele disse que já me conhecia de vista, freqüentava a boate”.
“E?”
“Começamos a namorar. Tem gente que não liga para a profissão da mulher”.
“Você continuou saindo com clientes?”
“Durante pouco tempo”
“E depois?”
“Eu engravidei. Carlos decidiu me trazer de volta para o Brasil”.
“Onde eles estão?”
“Depois de um tempo nos separamos. Até que reencontrei minha prima. Estou morando com ela até hoje”.
“E o seu filho? Filha?”
“Morreu quando chegamos ao Rio. Morreu no parto. Queria que meu filho fosse brasileiro. O nome dele seria Manoel”. Angélica fica visivelmente abatida.
“Eu sinto muito”
“Sente mesmo?”

A história de Angélica parecia triste. Mas o fato é que em nenhum momento ela demonstrou arrependimento de ter feito ou vivido daquela forma. Em sua cabeça as coisas tinham que acontecer, e aconteceram. Foi quando eu perguntei os planos, sobre o futuro. Ela não tinha plano; ela tinha ações. Não era ambiciosa, mas sabia que precisaria ajudar a prima, arrumar um lugar para morar. Reconstruir a sua vida. Disse que Carlos lhe mandava um dinheiro, mas não queria viver daquele jeito para o resto da vida.

“Nossa relação acabou como acontece com qualquer casal”


* * *

Letícia abriu presente por presente. Chorou por todos eles. Algumas coisas ela sabia que nunca usaria: eram minhas escolhas. No meio daquele monte de embrulho estava a lista de convidados. Inconscientemente tinha riscado o nome de Angélica um dia antes do casamento. Angélica foi convidada, mas não estaria na igreja. Lembra de tê-la convidado, mas fez isso com um sentimento horrível no peito. Uma dor, uma sensação de perda. O nome estava na lista, e mais do que isso, Angélica agora era parte principal da história. Letícia pega um embrulho com papel verde: Felicidade aos noivos, Tia Geralda. O que seria? Tia Geralda tem um péssimo gosto. Um dos raros momentos em que Letícia sorri.

Durante meses e meses ela ia até o hospital. Conversa com médicos. Não me lembro de ter conversado com Bruna. Bruna sabia todas as histórias das pessoas que me cercavam. Nunca fiquei alienado do mundo. Soube da morte da minha mãe, do abandono de Letícia e de tudo que aconteceu com Angélica depois do encontro.

Só não tinha capacidade de reagir.




18/22 – Saída de Emergência

Véspera do meu casamento. Eu sabia que Angélica estaria no apartamento. Ela disse que não iria à cerimônia apesar do meu convite. Também não mandaria presente. Nossa conversa, nossa história; tudo sem resolução. Não queria recuperar o tempo perdido, não queria desistir do casamento. Mas alguma coisa me dizia que eu deveria encontrar com Angélica antes que ela sumisse novamente. Pego o terno. Pego minha mala. Pego meus documentos. Dali em diante não saberia mais sobre mim: apenas o destino me guiava. Às vezes o destino nos prega uma peça, dramática e por vezes irônica. Lembro novamente do caos: ele é traiçoeiro. Sim, pois não ele não decide quem. Escolhe por acaso. Marca um nome na lista, e pronto. Damos a ele, o caos, essa liberdade. Ir ao apartamento de Angélica naquele dia não tinha qualquer relação com minha história, e nem era por acaso.

Elevador. Devo voltar? É tarde. Chegou ao andar. Aperto a campainha.

O amor não é uma coisa fácil de explicar. Qual a relação que poderia existir entre Angélica e eu? Em nós um desejo incontrolável, indecifrável. A música soando muito baixo. “But I still haven't found what I'm looking for”. Nós nos abraçamos. O que eu iria querer de Angélica? Que ela nunca tivesse partido com o seu pai? Que a nossa infância voltasse de repente? Não podemos aquilo. O passado é um lugar distante em nossas almas, um lugar que sabemos onde está e como é; mas não podemos pegá-lo. O passado de Angélica era ainda mais inacessível. I've spoken with the tongue of angels. I've held the hand of the devil. It was warm in the night. I was cold as a stone. Nós nos beijamos. (2)

* * *

Uma noite fria. As noites frias são assustadoras. Letícia chega ao hospital. Passados quase oito meses depois do acidente. Ela não agüentava mais aquilo. Poucos agüentariam. Letícia emagreceu, perdeu brilho. Seus olhos estavam opacos e tristes. Quanto tempo mais ela esperaria minha recuperação? Ela ainda me ama? Era complicada uma resposta. Era uma mistura de piedade com amor. A cada nova hora a piedade ganhava mais espaço. Como eu disse, estava abandonado no mundo. Letícia envelheceu. Não sei se ainda a amo. Nossa relação tomou uma proporção desinteressante, ultrapassada. Não existia mais sexo, beijo; nem carinho. Incompreensão. Os casais suportam brigas, mas não suportam ausências.

O diálogo não existiu, mas foi real. Letícia se aproximou de mim, beijou meus lábios. O seu sabor continuava o mesmo. Doce e verdadeiro. Mas as palavras que não usamos foram compreensíveis para cada um de nós. As decisões que não queremos. Letícia e eu decidimos pelo melhor, para ambos. Letícia iria embora para sempre, reviver sua vida. Inventar novos sonhos. Realizá-los. Por momentos, nossa conversa passou a ser uma conversa que se misturou no tempo e no espaço. No lugar de Letícia estava Angélica, no de Angélica a Letícia. O único personagem abandonado na história tinha o mesmo nome.

“Eu não posso viver sem você”
“Você sempre viveu sem mim”
“Não consigo pensar em acordar e você não estar ao meu lado”
“Tão perto, mas passamos a vida tão distantes”.
“De uma só vez: acaba aqui”

(Quem disse o quê? Tanto faz).




19/22 – Saída de Emergência


“…Where are all the good times?
Who's gonna show this stranger around?
I need a dirty woman
I need a dirty girl
Will some woman in this desert land
Make me feel like a real man….” (1)


Angélica e eu na cama. Como havia sempre sonhado. Ela sonhou com aquilo? Num momento ela era única e verdadeira, mas era apenas sua imagem. Aparentemente ela não era mais aquela garota por quem estava apaixonado. Era outra coisa. Ela era uma criança, agora não é mais. Era uma miragem diferente, personagem sem nome. Qual a nossa intimidade? Nenhuma. Tantas coisas naquela mulher. Diferentes percepções mapeadas em seu corpo e seus movimentos. A vida ensina e a vida cobra. Eu não cobro mais do que o necessário: poucas palavras e penetrações rápidas e inconstantes. Não era amor, não deveria ser; não parecia ser. Amor é mais do que aquilo. Mas ao mesmo tempo, não sendo amor, ainda era esplêndido.

O impulso separa os corpos exaustos: a nossa alegria acaba.

Desço correndo. Pego o meu carro. Era hora do casamento. Acordo. (Olho para a rachadura. Passado, presente e futuro se misturam para quem não tem nada. Breve, a vida breve passando). Letícia conversou com os médicos. Não há esperança. Bruna, você acredita que eu possa voltar? Bruna acredita, sempre acreditou. Bruna não estava mais ali, era a única que acreditava. Os médicos sorriem. Eles são felizes quando encontram qualquer novidade no paciente: em mim uma novidade? Algum remédio, algum tratamento; alguma coisa sem explicação estava fazendo com que eu melhorasse. Letícia podia estar aqui. Angélica também. Mas elas não estavam. Ninguém iria me ver abrindo os olhos; exceto a impessoalidade dos médicos plantonistas.

Mas eles são distantes, como precisam ser.


* * *

Letícia nunca mais voltou ao hospital. Dizem que ela arrumou um namorado. Estão morando no apartamento decorado, usando os presentes que nós recebemos do casamento. Algumas velharias ultrapassadas. Ela não devolveu nenhum. Todos deram apoio. O meu caso era difícil, complicado; inútil. Aguardar o resto da vida um sujeito que poderia acordar sem se lembrar de nada? Eu tinha lembranças, mas ninguém sabia disso. Letícia se casou, teve um filho. Ele recebeu meu nome, uma homenagem bonita, mas injusta. Bruna, você acha justo o que fizeram por mim? Se eu pudesse tinha chorado naquele dia.

Não há lágrimas.

* * *

Uma mulher entrou no hospital. Não queria ser reconhecida. Disse no atendimento que precisava me ver. Estava partindo em uma viagem. Ela sobe até o meu andar. Não é fácil entrar num hospital, mas ela conseguiu. Disse ser uma prima distante. Ninguém podia ficar muito no quarto comigo, apenas dez minutos diários. Não importa. Não existiam visitantes para o quarto 53. Adamastor acompanha a estranha mulher até meu aposento. Ele fica sempre ao seu lado. A mulher se aproxima do meu rosto, me beija. Naquele momento eu estava acordado, mas ninguém sabia. A mulher era a Angélica. Vestia-se de preto, um capuz cobrindo a cabeleira avermelhada. Ela olha nos meus olhos. Por instantes ela acreditou que eu estava ouvindo suas palavras.

* * *

Letícia, o marido e o filho preparam a ceia do Natal.



20/22 – Saída de Emergência

“....Don't leave me now
How could you go?
When you know how I need you…” (1)


Eu posso te escutar. Eu sei o que você sente isso. Eu posso e eu quero. Vou melhorar, vou sair daqui. Pode me esperar mais alguns dias, Angélica? Como eu quero acreditar nos médicos. Bruna ainda acredita. Está nesse momento com outro paciente nas mesmas condições. Ela continua do mesmo jeito: confiante. Continua dando esperança para quem não tem esperança. E agora? Você aqui? Veio me visitar? Pode me esperar? Conhece o Adamastor? Ele é o cara que me dá banho. É estranho ficar pelado diante dele, mas já estou acostumado. Ficou bom o seu cabelo.

“Queria que você me ouvisse. Tenho tanto para falar, mas estou um tanto perdida. Tudo isso é novo para mim, sabe? Eu não queria tê-lo encontrado. Queria que você continuasse sendo aquele garoto, aquele menino por quem me apaixonei. Que coisa falar de paixão quando se tem onze anos apenas. Então, alguma coisa me incomoda agora, não é amor; mas parece culpa. Se você não tivesse me encontrado aquela noite. Se eu não tivesse aparecido em sua vida.”

Eu posso te ouvir. Sabe que posso. Se a Bruna estivesse aqui conosco iria te confirmar minha versão. Nós conversamos muito, eu e a Bruna. Sabia que ela mudou de emprego? Ela trouxe esse rádio. Você pode ligá-lo para mim? As pessoas vêm até aqui, mas não notam o rádio desligado. Algumas pessoas não sabem que posso ver e ouvir. Eu sei, é difícil para elas também. Mas eu cabelo, ele ficou muito bonito.

“Você pode me desculpar? Eu sei que pode me ouvir. Não queria que nada disso tivesse acontecido. Nossa história é tão estranha, não é mesmo? Pode me ouvir, não é mesmo? Eu sei que você pode. Eu guardei aquele anel que você me deu. Ele não cabe mais em meu dedo. Faz tanto tempo, né? Sempre esteve comigo. Em cada sonho, em cada momento difícil. Ele era a minha esperança de que você estava vivo e que lembrava da promessa. Como somos bobos, não é mesmo? Uma promessa de tanto tempo ainda preenche nossos corações. Vamos imaginar que é uma grande brincadeira tudo aquilo. Vamos imaginar que somos felizes. Eu sei que poderíamos ser, mas a escolha já foi feita. Alguns homens com quem me deitei foram parecidos com você: como eu queria que fosse. Eu fechava os olhos e imaginava você mais velho. Como você seria? E aquela noite que apareceu no apartamento. Eu sabia que não era um cliente qualquer, não era sequer um cliente. Mas ao mesmo tempo eu sabia que não era a pessoa com quem eu sonhava. A nossa história lá no passado era uma inocente história com um final marcado no tempo. A marca da infância que morre. Perdemos os sonhos de crianças nos tempos de hoje. Nunca deveríamos ter alimentado esse sonho, foi uma coisa idiota; besta; imbecil. Não devia ter amado você durante todos esses anos, pois você é uma pessoa que eu não conheço; nem conheci. Então vou dizendo adeus. Mas tenha uma certeza: acho que fomos felizes mesmo assim, como deveria ser”.

Angélica se distancia. Naquele momento ela morreu para mim. Triste, não? Ela some da minha visão. Reconheço sua voz, a conversa com Adamastor. Ele diz que os médicos ainda esperam uma melhora, mas é um acontecimento muito raro. É possível que eu passe mais dez anos naquela posição, pode ser que eu acorde do nada. Um susto, um pulo; um grito. Eu juro que se acordar eu vou gritar. Vou gritar qualquer coisa. E não esqueci do sorvete, nem da pizza. Bruna ainda lembra da pizza? Eu não esqueci. Não tenho movimentos, mas tenho lembranças. A morte é quando os movimentos e lembranças somem? Então ainda não estou morto.

Eles saem. Angélica provavelmente olha pela última vez para mim. O cenário era triste. Eu sei que ela está chorando. Como eu poderia ajudá-la naquele momento? Os dois saem e eu grito inutilmente para que eles liguem o rádio. Ele continuará desligado por muito tempo.

A parede reformada perde a rachadura.





21/22 – Saída de Emergência

“…..By the cold and religious we were taken in hand
Shown how to feel good and told to feel bad.
Tongue tied and terrified we learned how to pray
Now our feelings run deep and cold as the clay……” (1)

Saio correndo do prédio. Uma nuvem escura está se formando. Preciso correr. Uma hora antes do casamento. Foi um erro o encontro com Angélica. Foi um acerto saber que ela realmente não pode fazer parte da minha história. Letícia era linda, maravilhosa e inteligente: minha escolha estava feita. Não nos apaixonamos por sonhos, mas por realidade. Letícia era minha realidade e eu podia ser feliz. Quarenta minutos para chegar à igreja. Ela preparou tudo, escolheu a decoração e as músicas (Os homens participam pouco dessas decisões). Mas eu sabia de tudo, e concordei com todas as escolhas de Letícia.

Pacientes em coma não bebem nem comem sozinhos. Preciso dizer isso? Não sei bem se estou em coma (Outro dia passei o dia inteiro pensando que na verdade eu estava morto). Ninguém nunca disse o que realmente tinha acontecido comigo. Qual o gosto de uma bala de hortelã? Tudo entrando pelo tubo. Nutrientes e líquidos na veia. Eletrólitos, sal e tudo para o organismo. O corpo vive, relutando. Mas eu estou vivo? A vida breve, breve vida. Fiz tudo que eu queria ao mesmo tempo tanta coisa eu deixei em branco. Como recontar tudo novamente? Impossível.

Minha vida passou. Desde o momento que nasci. Os olhos piedosos do nascimento, quando rompi a barreira da morte para a vida; são os mesmos olhos que nos vêem romper a vida para a morte: médicos são testemunhas dos nossos dois sofrimentos. Crianças choram quando nascem; os adultos não sabem que estão morrendo (mas também sofrem por isso). A dor do nascimento é a mesma dor da morte? Como nascerei do outro lado? E se o outro lado existir como tenho suspeitado? Não aprendi quase nada da vida como poderei prestar para morte? A morte também me causa desespero. Mas diferente da vida, aquela minha vida dos últimos anos, a morte se tornou um prêmio. Que não exista absolutamente nada, a chance de ser mais confortável é superior ao incomodo de continuar daquele jeito.

A morte é minha saída.

Única saída? Eu acreditava que vivia quando estava vivo, e agora penso que viverei depois de morto. A nossa maior ganância é a imortalidade. O corpo agora é uma prisão. O corpo cansado do contato das mãos de estranhos. Empurram e mexem com meu corpo. Perfuram e examinam. Subjugam minha existência: Eu estou aqui! Queiram saber. E se apenas restava lembrança, hoje não tenho mais nada. Todas elas foram consumidas, se apagando; se resolvendo. Não há mais nada no passado que eu não tenha revivido, evitado e me orgulhado. Pessoas passaram. Histórias se perderam. A mistura da vontade e do desejo, da inveja e do perdão, da fé e da desesperança. Ainda que estivesse livre dessa cama, estaria vivendo hoje como qualquer ser humano.

Não me sinto diferente de qualquer pessoa.

Mas dentro dessa sensação de igualdade, de saber exatamente o que vocês, seres humanos normais, pensam; eu vivo uma outra espécie de vida. Uma vida que não vale qualquer tempo. Não vale por ser cotidiano. Dia após dia. Sabe o que é comer a mesma comida sem sal? Adoraria poder comer. Sinto falta até das coisas que eu não gosto. Sinto falta da vida em seu dia mais inútil. Dia de chuva em que eu me sinto preso na sala assistindo um filme reprisado na televisão. Como eu gostaria de assistir um filme. Escutar mais uma vez a mesma música. A vida grandiosa não pode ser deprimente, triste e sombria. Pois a vida da gente, em suas mais variadas formas, nos dá oportunidade de coisas que nunca fizemos, um eterno recomeço.

Uma espiga de milho cozido, café fraco e doce; e o banho de chuva.





22/22 – Saída de Emergência - FIM

“…you cannot reach me now
no matter how you try
Goodbye cruel world it's over
Walk on by
Sitting in a bunker here behind my wall
Waiting for the worms to come…..” (1)


Cheiro do café. Ainda estou num quarto diferente do que habitualmente eu ficava. Há chance? Os médicos acreditam. Mas num momento eu sou único. Sou eu no espaço. Sou eu na geleira. Eu sem qualquer movimento tentando respirar. Pensam que é ruim estar ali? Não é. A vida, em alguns aspectos, é muito pior. Minhas velhas contradições. Já disse que não sei o que é pior: continuar aqui ou perder as lembranças? Pois é. Ainda não decidi.

E o tempo passa. Tão breve. O que quero escrever para as pessoas? As palavras na lápide: Amei e odiei como toda gente! Fernando Pessoa. Posso escrever alguma coisa parecida com isso? É verdade: eu amei. Mas não odiei. Não odiei nada na minha história. Não odiei passar mais de vinte anos aqui. O tempo ainda é incerto, não sei direito como está o meu rosto. Queria saber se tenho rugas. Alguém ai pode me dizer isso? Errei pouco, arrisquei menos ainda. Não me arrependo. Adamastor poderia me entregar um papel e uma caneta. Eu iria sugestionar algumas palavras. Escreveria um poema. Não! Escrever poemas parece ser coisa de covarde.

Estou apenas num quarto de paredes brancas, tentando ser livre.

As paredes não me deprimem, mas aquilo que eu sou. O que deixarei para vocês? Um nome de rua? Não há homenagem aos anônimos. Deixei o emprego, o carro e o apartamento. Deixei Letícia e Angélica. Deixei Bruna e o Adamastor. Mas, acima de tudo, eles nunca me tiveram; nunca precisaram de mim. Não farei falta. Eu não me amava o suficiente para amar os outros. Por isso não me cobro, não me reprimo; não digo que sim ou não. Sou aquilo que deveria ser. Só não sei o que serei daqui para frente.

Posso escolher minha vida?

* * *

Sala iluminada. Os médicos apreensivos. Doutor Flávio sorri. Parece uma vitória. É uma vitória. Meu corpo se mexe, meus olhos confusos. Sinto um gosto na boca, um gosto amargo. Colocam alguma coisa na minha boca, eu mordo. Um movimento tão breve, mas tão milagroso. Voltarei? A mordida é tão fraca, mas suficiente. Mordida de um corpo cansado, angustiado; indeciso. Não são vinte anos, nem dez. Como eu disse anteriormente, estou numa confusão mental. A vida que me espera não é a vida que eu quero. Perdi tudo e todos. Qual a vantagem? Sinto uma dor nos braços, como se tivesse trabalhado a noite inteira.

Boca seca, braços cansados e uma terrível dor no abdômen.

A luz me incomoda. Preso ao corpo, ainda que o corpo possa se mover. Reflexos? Tensão nos nervos. Eu demoraria a voltar? Mais um milagre da medicina. Qual o motivo? Ninguém explica. Acham suficientemente interessante que eu ressuscite naquele instante. Não quero. Não me obriguem. É como me jogar no mar, sem comida e sem bebida. Nascer novamente sem ninguém. Órfão de sentimentos, identidade e motivação. Quero voltar onde eu estava: o sono. A segurança do corpo, a retidão dos pensamentos; a imensidão subumana da imaginação: a vida sem vida. Quero voltar para a cama, inaptidão e a inanição: eu sei que lá existe uma de saída de emergência.

Os braços se movem, a perna chuta, a boca grita um choro e os olhos cansados se abrem: morrer e nascer, tanto faz.




FIM