sexta-feira, 27 de julho de 2007

Briga de Foice (Capítulos 4, 5 e 6)

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4
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Daniel trabalhava como segurança num lugar chamado Local. Por duas vezes Daniel chegou a trabalhar como juiz das lutas. A regra era simples: não se usava nenhuma arma no combate, vencedor era somente o sobrevivente. Dois homens brigando até a morte. Um ringue humano. Os lutadores era recrutados entre os bandidos, drogados; marginais. Fugidos da justiça. Maciel pagava bem por luta, dinheiro que esses malditos nunca ganhariam na vida. Bastava ficar vivo, isso era tudo. As apostas pagavam todas as contas, Maciel conseguia ainda um bom lucro com o negócio. É claro que vendia também bebidas roubadas, drogas e muita prostituição. Daniel mais dez sujeitos, incluindo Camargo, trabalhavam naquele lugar cuidando da ordem e inibindo os arruaceiros.
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Num dia Toninho resolveu arrumar confusão. Toninho era filho do Maciel, e raramente ia até o Local. Toninho agarrou uma menina que estava acompanhando um sujeito. O sujeito era o deputado Paes. Paes não gostou, perdeu a cabeça; quis brigar com Toninho. Daniel estava perto da discussão, mas resolveu não fazer nada até que eles começassem a brigar. Toninho estava armado, de repente ele puxa a arma da cintura. Daniel voa em direção ao Toninho. Um disparo no chão. Paes sai correndo em direção de Toninho, Daniel acerta-lhe um soco no meio da cara. O deputado cai sangrando. Toninho vai em direção ao deputado, Daniel novamente com um certeiro de direita quebra o nariz de Toninho. Naquele momento Daniel não sabia com quem estava brigando. A garota tenta socorrer o deputado, nocautiado no chão. Seguranças pegam Toninho pelo braço.
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Nesse momento Camargo e Alvarenga, que trabalhavam também como segurança, pegam Daniel e tiram ele do Local. Entram num carro e saem em disparada. Maciel fica sabendo que bateram em seu filho. Camargo liga para o médico particular, depois tenta falar com Fernando, tenta explicar o que havia acontecido. Camargo, Daniel e Alvarenga se escondem num boteco ali perto. Camargo conversa com Alvarenga, Daniel entra no banheiro.
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“Sim, Daniel bateu na cara do Toninho” – Camargo.
“Maciel vai ficar doído” – Alvarenga.
“Daniel não deve saber quem é o cara que apanhou”
“Quem é o outro sujeito?”
“Deputado Paes”
“Vai dar merda!”
“Liga para saber como eles estão”
“Já falei com Fernando. Chamaram o médico para o Toninho. Paes está acordado”
“Precisa quebrar o ganho do Daniel”
“Vou tentar. Mas se falar alguma coisa agora.... sabe como é o Maciel”
“Alvarenga, eu confio em você”
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Daniel sai do banheiro. Está visivelmente nervoso. Sabia que sua situação estava complicada. Bateu no cara errado, Alvarenga alerta. Estão confinados numa pequena saleta de um bar, onde se costumava esconder produtos roubados e outros foragidos da polícia. Por sorte estava vazio, poderiam ficar ali em segurança. Nem mesmo Maciel sabia da existência daquele esconderijo. Alvarenga pega o carro, precisa voltar antes que Maciel perceba sua ausência. Alvarenga era homem de confiança de Maciel. Ele chega no Local. Pessoas estão indo embora, Maciel está nervoso na sala.
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“Onde você estava?”
“Precisei levar uma das meninas embora”
“Não consegue ficar longe de mulher?”
“É a namorada do seu filho”
“Senta aí”
“O quê houve?”
“Conhece o Daniel?”
“Sei”
“Aquele filho da puta bateu no meu filho”
“O que você quer?”
“Que mate aquele desgraçado”
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5
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Fernando entra na sala. Alvarenga está atrás da cadeira de Maciel. Fernando fica surpreso com a cena, apesar de não ser nenhum segredo que os dois tinham um caso. Fernando senta bem de frente com Maciel, Alvarenga sai de perto de Maciel e vai pegar um copo de bebida para o chefe. Maciel acende o charuto, quem conhece o velho sabe que essa hora é sagrada. Ele precisa dar uma baforada, beber um gole de uísque; depois podiam tratar de qualquer assunto, importante ou não. Fernando ajeita a gravata. Maciel se levanta da cadeira, pergunta calmamente o que estava acontecendo. Fernando responde:
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“Toninho quis matar o Paes”
“Que merda deu na cabeça do meu filho?”
“Parece que ele gostou da acompanhante de Paes”
“Tanta mulher nesse mundo. Já disse para ele não mexer com nossas garotas”
“Não era nossa. Era esposa de Paes”
“Que corno para trazer a esposa para um lugar desses?”
“Paes quis brigar com Toninho”
“Sei. É motivo para Daniel fazer aquilo?”
“Toninho puxou a arma, quase acerta o deputado. Daniel pegou a arma do Toninho. Paes quis bater em Toninho, Daniel deu um soco no deputado”
“Caralho! Ele bateu no Toninho ou no deputado?!
“Nos dois. Acabou com a briga, como é sua função”
“Está defendendo aquele sujeito?”
“Só estou dizendo o que aconteceu”
“Ele é seu amigo, não é?”
“Não. Ele é apenas de minha confiança”
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Fernando sai da sala. Alvarenga volta na mesma posição que estava quando Fernando entrou, ou seja, acariciando Maciel. Maciel pergunta se Alvarenga trancou a porta, não queria novamente ser incomodado. Alvarenga afirma que sim. Começam a trocar beijos. Na outra sala Fernando fica quieto, pensativo. Sabia que não poderia fazer nada para ajudar Daniel. Ele liga para Camargo, os dois ainda estão escondidos no bar, bebendo.
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“Melhor Daniel tomar cuidado”
“Como foi?”
“Maciel não quer conversa, disse que quer matar Daniel. Por enquanto Alvarenga consegue segurar a fera. Pode ser que amanhã ele mude de idéia”
“Aquele bicha velha!”
“Alvarenga disse para mim que não vai fazer o serviço agora, mas não sabe até quando poderá desculpar-se com o velho. Disse que vai tentar convencê-lo a mudar os planos, esquecer o assunto”
“Alvarenga vai conseguir um tempo para Daniel, tenho certeza”
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Camargo enche o copo com mais bebida. Sabia que a situação estava complicada para Daniel. Daniel está bêbado, sabe que fez uma enorme burrada. Não tinha como prever os acontecimentos, afinal era bem pago para manter a ordem. Eles bebem, Daniel resolve ir embora. Era inútil Camargo ficar com ele, mesmo assim tenta segurá-lo por mais algumas horas. Daniel diz para Camargo que Cecília está sozinha. Daniel vai embora andando.
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No outro dia Cecília sai para trabalhar. Daniel resolve ligar para Fernando, saber como estava sua situação. Não poderia perder o emprego, ainda tinha esperança de continuar trabalhando no Local. Fernando recebe Daniel, diz que foi demitido, e por enquanto Maciel havia esquecido o assunto da briga. Fernando entrega o pacote com o pagamento, Daniel pega o pacote mas não confere o valor. Sai reclamando de tudo que andou fazendo nos últimos dias. Fernando apenas sorri, descontente. Daniel chega em casa. Cecília não estava. Toca o telefone. Ele não queria falar com ninguém. O telefone continua. É Camargo marcando um encontro.
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6
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Daniel conversa com Camargo pelo telefone. Por enquanto ele estava em segurança, Maciel tinha sido domando por Alvarenga. Daniel fica mais tranqüilo, não precisava mais se esconder a todo instante. Desliga o telefone depois de combinarem data e local para se encontrarem. Pega o pacote de dinheiro, coloca na mesa. Espalha as notas. Começa a contagem. Mil e duzentos! Conta mais uma vez, era possível que tivesse se enganado. Mais uma vez, mil e duzentos. Separa as notas por valores, conta novamente. Foi roubado em oitocentos. Considerando o desconto para a plástica do Toninho, mais quinhentos. Mil e trezentos! Foi roubado em mil e trezentos! Conta mais uma vez, precisa ter certeza que não está errado. Entra em desespero.
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Liga na mesma hora para Fernando. Diz que o valor pago por Maciel está errado. Tinha no envelope somente mil e duzentos. Fernando não sabe o que dizer para Daniel, é certo que não poderia ajudar em nada.
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“Sabe que não estou mentindo? Tem mil e duzentos apenas!”
“Eu sei que você não está mentindo”
“Então?”
“Não posso fazer nada. Depois da briga, Maciel ficou ferrado comigo”
“Mas está faltando dinheiro!”
“Já me disse”
“Ele está me roubando mil e trezentos!”
“Não é roubo, quinhentos para a plástica de Toninho”
“E os oitocentos? Que merda é essa?!”
“Eu já me ferrei por causa de você. Deve me agradecer por ele não estar te caçando”
“Quer dizer que não vai fazer nada?!”
“Ponha uma coisa na cabeça: está ótimo para você poder continuar vivo”
“Ele me roubou”
“Ora, queria esperar alguma coisa melhor de um bandido? Maciel é um grande filho de uma puta!”
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Daniel percebeu desnecessária qualquer briga com Fernando, estava certo; ele havia livrado sua cara de coisa pior. Devia favores para Alvarenga também, para Camargo. Desligou o telefone na cara do amigo, depois se arrependeu, era tarde. Colocou o dinheiro novamente no pacote, escondeu dentro do guarda-roupa. Cecília estava para chegar, era nove horas. Cecília chega, põe a bolsa no sofá; abraça Daniel. Os dois caem no chão.
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“Que foi? Não gostou da surpresa?”
“Não estou num bom dia”
“O assunto de ontem, né?”
“O assunto de ontem quase me fudeu”
“Posso ajudá-lo em alguma coisa?”
“Sabe que não quero envolver você nos meus negócios”
“Sei. Sempre me diz isso”
“Preciso de um banho”
“Quer que eu esfregue suas costas?”
“Quero que vá embora”
“Amanhã eu volto para minha casa, não se preocupe”
“É perigoso ficar aqui”
“.....”
“Dessa vez é sério”
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Cecília tira a roupa branca de enfermeira, ela sempre diz que é perigoso vir hospital para dentro de casa e não tirar a roupa. Ela entra na banheira primeiro, Daniel logo em seguida. Os dois se beijam, Daniel está com uma cara cansada. Cecília lava as pernas, depois os seios; só depois esfrega as costas de Daniel. Os dois transam. Vão para a cama, dormem. Aquela noite ainda estava fria.
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(Continua....)


quarta-feira, 11 de julho de 2007

BRIGA DE FOICE - Capítulos 1, 2 e 3

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1
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A lua cheia, fazia muito tempo que ela não ficava daquele jeito. Cobre todo o céu, apesar das nuvens escuras de chuva, o céu está claro. Daniel caminha por aquelas ruas, cheias de silêncio, vazia de almas, alguns marginais em busca de dinheiro. Começa uma garoa fina. É inverno, chove sempre do mesmo jeito naquela época do ano. Ele arruma a jaqueta para se proteger do vento úmido. Aumenta o passo, quer chegar mais rápido possível em casa. Está próximo de sua rua, faltam dois quarteirões; já reconhece alguns andantes. Eles são estranhos, mas conhecidos. São rostos comuns, tragédias idênticas. Sonhos puramente desperdiçados.
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Fica na frente ao portão de sua casa, parado. Sabe bem o que vai ouvir daqui alguns minutos. Entra em passos lentos, silenciosos. Procura a chave da porta, entra pela cozinha. Pega um copo de água. Ainda sente sede e um gosto amargo na boca, a cabeça zonza. Sentou-se no sofá da sala, estava muito embriagado para tentar o sono. Bebe mais um gole de água, vagarosamente. Cecília não acorda, ele esperava por isso, que ela continuasse dormindo. Levanta-se, toma um banho, troca de roupa. Deita-se na cama, sem que sua companheira perceba sua presença. Cecília acorda:
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"Pensei que não voltaria mais"
"Andei muito. Quis mesmo não encontrar o caminho de volta"
"Deita aqui no meu colo"
"Preciso fugir"
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Daniel levanta da cama, estava se sentindo mal. Também não queria continuar aquela conversa. Sua cabeça não pára de rodar. Teve vontade de vomitar, de jogar para fora tudo que estava incomodando. A briga, o beijo, os últimos acontecimentos. Ele senta novamente no sofá, a luz está apagada. Levou o cobertor, o frio estava cada vez pior naquela noite. A chuva também tinha aumentado. Cecília levanta logo em seguida, sabia como ele estava sentindo, mesmo ignorando todos os motivos.
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"Quer que eu prepare um café?"
"Sabe que eu odeio café"
"Ajuda recuperar as forças. Essa ressaca"
"Não. Mesmo assim, obrigado. Quero apenas ficar em silêncio"
"Amanhã volto para minha casa"
"Não se preocupe. Sabe que você não é o problema"
"Vou deitar na cama, aqui está frio. Quer vir comigo?"
"Já disse que prefiro ficar sozinho"
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Cecília volta para a cama. Sabia que era perda de tempo continuar aquela conversa. Daniel se ajeita no sofá, tenta dormir. o Sol está fraco, são seis horas da manhã. Ele dorme, seu sono não é profundo. Cecília acorda, ela tem que trabalhar. Passa pela sala, vê Daniel dormindo. Cobre Daniel. Faz o café, come um pedaço de pão amanhecido. Lava tudo antes que o cheiro incomodasse Daniel. Ele sempre achou o cheiro do café insuportável, mas aprendera a conviver com ele. Ela beija Daniel, que se mexe mas não acorda. Ela sai pela porta da sala sem fazer nenhum barulho.
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Daniel acorda meio dia. Ele se desespera ao encontrar a casa vazia, lembrou-se que era dia do plantão de Cecília. Ela trabalhava como enfermeira, tinha esses horários conturbados. Ele levanta, bebe água. Faz um chá de camomila. Não consegue comer nada, seu estômago não suporta nada sólido. Fala com Fernando pelo telefone. Vai trocar de roupa. Precisa encontrá-lo ainda hoje. Seu futuro era incerto, tinha quase certeza que não trabalharia mais com Maciel, seria demitido. Fernando era sua esperança. O tempo estava melhor, ainda frio. Pelo menos havia parado de chover. Ele chega bem na hora marcada para falar com Fernando, ele ainda não havia chegado. O certo é que as notícias não seriam boas para Daniel.
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2
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Longe dali, dias antes. Uma menina é agarrada perto do Colégio Franco Aguiar. Ela tem treze anos. Consegue fugir antes que os malditos a amarrassem. Aquele lugar era perigoso demais para se andar sozinho. Ela sabia disso, mesmo assim insistia. Camargo queria pegar os delinqüentes, não sabia como. Abusavam das crianças, roubavam casas, dinheiro dos pedestres, rádio dos automóveis; pior ainda, traficavam. Bebiam e cantavam a noite inteira. Camargo percebeu que poderia prender aqueles sujeitos. Jurou que mataria pelo menos um deles, com um tiro na cabeça. Um tiro certeiro na cabeça há de fazer um serviço muito grande para a humanidade.
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Camargo investiga os sujeitos há um bom tempo, veste-se de vendedor de balas. Parece um disfarce óbvio, portanto, perfeito. Ambulantes mudam a todo instante, são sempre figuras anônimas. Camargo parecia apenas mais um deles se apoderando de um espaço público onde pudesse vender suas bugigangas. Estava prestes a prender os sujeitos, sabia os culpados de tudo que estava acontecendo na região, mas não tinha provas. Malditas provas que fazem a justiça ser mais demorada. Vigiava os rapazes noite e dia. E mesmo assim não conseguia nada para prender os caras. Achava que sua investigação estava sendo inútil. Num dia desses um senhor se aproxima de Camargo, eles já haviam conversando antes, assim que Camargo havia conseguido o disfarce:
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"Todos sabemos que você é polícia"
"Como assim?"
"Algum companheiro seu disse"
"Não sou policial"
"Pode ficar com o disfarce. Não vai conseguir pegar ninguém"
"Eu sei quem eu quero pegar"
"Eu sei disso. Acaba logo com esses imundos"
"Preciso ter certeza"
"Mais certeza?"
"Não tenho provas"
"Não precisa. Faça o que acha certo. Esses caras estão ferrando todo mundo. Quantas crianças começaram a se drogar depois que esses desgraçados chegaram aqui?"
"Eu sei, mas preciso de provas"
"As meninas, algumas trocando sexo por um punhado de maconha. É um absurdo, meu amigo"
"Marinho, Topeira e Apolinário"
"Esses. Pode botar fé"
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Camargo armou um plano para pegar os sujeitos. Era impossível ficar esperando uma prova, eles sabiam que policiais disfarçados estavam de vigilância. Chamou dois amigos, um deles um ex-policial, seu nome era Daniel. Pegariam os sujeitos. Chegaram de madrugada. Não se ouve nenhum barulho por toda redondeza. Invadem o terreno onde os bandidos estavam escondidos. Uma moto estava estacionada, duas barracas armadas. Escutam a voz de uma mulher, na verdade eram três mulheres. Os marginais estão conversando, bebem vinho. Uma fogueira espanta o frio daquela noite. Marinho está com uma garota no colo, era a mais velhas das três. Devia ter uns vinte e poucos anos. Os outros dois estavam acompanhados, mas as mulheres estavam somente abraçadas. Camargo e os dois capangas se afastam, precisam reformular o plano.
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"Como eu disse: cada um com seu fito"
"E as mulheres?"
"Elas vão sair correndo, tenho certeza. Atirem na cabeça dos homens"
"E se alguma coisa der errado?"
"Matem todos"
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Camargo se posicionou, assim como os outros atiradores. Estavam esperando o comando, a mão esquerda baixar era o sinal. Levanta a mão esquerda, todos estão na mira. De repente uma criança sai da cabana, Camargo suspende o ataque.
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3
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Quem era aquela criança? Ela se aproxima da mulher que estava com Marinho. A criança gruda no pescoço dele, ele retribui o carinho. A mulher leva o garoto para dentro da barraca, Marinho sai logo em seguida atrás deles, antes se despede dos comparsas. Entra na barraca, dormem. Os outros dois continuam bebendo, o mais alto pega a moto e sai em disparada levando uma das meninas na garupa. O outro continua bebendo, conversando com a garota. Eles estão perto da fogueira. Começam a transar. Camargo e os ajudantes se afastam. Não há nada que possam fazer.
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"O que faremos agora?" – Daniel pergunta ao Camargo.
"Nada. Vamos esperar outro dia para fazer o serviço"
"Você não disse que tinha mulheres e crianças"
"Eu também não sabia, porra!"
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Fernando se ajeita na cadeira. Ele está sofrendo com o maldito problema com hemorróidas. Daniel abre a porta do escritório, Fernando pede para ele entrar e se sentar. Os dois se cumprimentam formalmente, apesar de serem amigos. Os dois trabalharam juntos na Boate Danced. Daniel pega a foto que está na mesa de Fernando, pergunta como está Dalila. Fernando apenas diz com a cabeça que está tudo bem. Fernando se levanta, está incomodado na cadeira. Pega uma garrafa térmica, enche de café uma xícara azul marinho que está em uma das mesas. Volta ao mesmo lugar onde estava sentado quando Daniel entrou.
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"Maciel não precisa mais de você"
"Sabia! Ontem eu fiquei pensando na merda que eu tinha feito!"
"Você deu um soco no filho dele!"
"Não sabia. Juro que não sabia quem era aquele desgraçado"
"Eu sei. Mas sabe que Maciel é foda"
"Porra! Trabalho aqui há mais de três meses. Nunca dei nenhum problema. Dei?"
"Pois é. Seu único problema aqui foi quebrar o nariz do sujeito que Maciel mais ama nesse mundo"
"Não tem alguma coisa para mim? Sabe que estou precisando de dinheiro"
"Contratar ex-policial é uma merda. Sabe o que pensam de expulsos, não?"
"Me arruma alguma coisa, preciso de dinheiro"
"Vou ver" – Fernando tira um pacote da gaveta – "Tome, seu pagamento"
"Quanto?"
"Dois mil"
"Dois mil? Ele disse que pagaria dois mil e quinhentos!"
"Quinhentos para arrumar a cara do filho da puta que você arrebentou"
"Esse cara tem dinheiro prá caramba! Não precisa me roubar quinhentos paus!!"
"Fique contente dele não querer te matar"
"Advogado, banqueiros, deputados, policiais.... um monte de gente que vem aqui gastar dinheiro"
"Não quero saber dos detalhes"
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Daniel pega o pacote da mesa de Fernando. Era inútil justificar com ele, Maciel sempre faz o que bem entende. Desceu as escadas correndo, não queria encontrar o ex-chefe. Sua situação poderia se complicar. Maciel sempre chegava mais cedo, antes das lutas começarem. Fernando estava certo, Daniel pensou; por sorte ele ainda estava vivo, e tinha recebido algum dinheiro. Daniel quebrou o nariz do filho de Maciel, um soco bem dado. Ele ficou se debatendo no chão enquanto Alvarenga e Camargo tiravam Daniel da briga.
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"Está louco! Acertou o Toninho"
"Quem é esse cara?"
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Daniel saiu junto com os outros dois amigos, entraram num carro e fugiram. Maciel pensou em matar Daniel com as próprias mãos, mas depois desistiu da idéia.
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.(Texto registrado. Reprodução parcial permitida desde que fonte seja citada).
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(Continua)

quinta-feira, 5 de julho de 2007

O MENOR DOS ENCANTOS - Capítulos 24, 25, 26 e 27 (Final)

24
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Voltei várias vezes para rever a filha de Bianca. Soraia era uma menina linda, olhos cansados e uma boca maravilhosa. Não necessariamente transávamos em todos os encontros. Conversávamos muito sobre a vida. O quê uma prostituta pode saber da vida? Muitas coisas. Elas deveriam trabalhar como conselheiras sentimentais. Conhecem tudo sobre casais, já dizia que eu não ficaria com Fernanda, e que ela casaria com outro homem. Na última conversa, seu dia de folga, entramos num barzinho. Bebemos algumas cervejas.
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“Você é pedinte” – Ele me disse entre uma bebida e outra.
“Como assim?”
“Exige demais da Fernanda”
“Nem cobro nada, me esforço para ser um cara legal”
“É isso que te ferra! Mulher gosta de atenção, só isso”
“Eu dou atenção”
“Não, você pede. Por isso, pedinte. Mulheres gostam de ter uma pessoa para conversar, falar sobre tudo que pensam. Aflições, mulheres adoram falar sobre os medos. É uma espécie de terapia ter um namorado, marido ou amante que nos ouça”
“Eu sirvo para isso com você?”
“Serve”
“Não sou pedinte com você?”
“Não. Deveria ser assim também com Fernanda”
“Não posso dizer todos os meus medos para Fernanda”
“Quem disse essa bobagem?”
“Tenho medo de broxar”
“Esse é seu maior medo?” – Eu tinha outros medos, mas esse parecia terrível – “Quantos caras você acha que aparecem no meu quarto e são broxas?”
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Quantas vezes estamos dispostos a enfrentar nossos medos? Pegar aquela situação guardada no fundo da gaveta, fazer uma reviravolta. Estamos acostumados a brigar com nossos demônios? Tirar a espada, cortar a cabeça daquele monstro terrível que nos consome em nossa existência? Meu maior medo não era de ser impotente sexualmente diante de uma mulher, falei aquilo pois foi a primeira coisa que veio à cabeça. Mas tenho outros medos, muito piores. Todos nós, preferimos esconder nossas falhas, dizendo simplesmente que é melhor esquecer o assunto e seguir em frente.
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“Acha que conseguirei alguma coisa com Fernanda?”
“Não. Acho que sua relação já era”
“Ela diz que continua apaixonada por mim”
“Paixão não basta” – Pega uma batata, coloca na boca. Toma um gole de cerveja – “Para amar é preciso ter coragem, já dizia a música”
“Eu sou apaixonado”
“É mentira, você não é apaixonado. Mesmo assim, vai sofrer quando perdê-la para um outro otário”
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Na noite em que conheci Camila, Fernanda conhece o homem previsto por Soraia. O final da história vocês já conhecem, se casaram e viveram felizes para sempre. Soraia eu nunca mais vi, outro dia passei no local onde ela trabalhava, o velho Homero continuava trabalhando como segurança. Disse que a dona era outra, e que as meninas também. Não me reconheceu, não sabia que eu era amigo de Soraia. Não disse para onde elas foram, pois não sabia.
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No hospital as dores eram fortes, mais uma vez peço para Luisa me tirar daquele lugar. Ela não consegue disfarçar que minha vontade era quase impossível.
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25
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Uma quarta-feira, Leo entra no quarto. Ainda estou no hospital, apesar de me sentir muito melhor. Ele está com Luisa e com Fernanda. Chega todo eufórico, eu sinto a alegria em seus olhos. Todos estão alegres, na verdade. Devo compartilhar todo entusiasmo? Põe uma grande tela branca na parede, monta todo aparelho, diz que vai passar o resultado do seu trabalho dos últimos meses. Está falando sobre o documentário, é evidente. Todos se ajeitam, Luisa sobe um pouco mais a cabeceira da minha cama.
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No disco Abbey Road a foto da capa é certeira em relação a morte de Paul. Leo diz que o famoso Beatle morreu num acidente de moto em 1966. São diversas pistas que indicam a veracidade do fato. Paul segura o cigarro na mão direita, mas o cara é canhoto. Eu seguro o cigarro com a mão esquerda, e também sou canhoto, que merda de coincidência é essa? O cara está em descompasso, com os olhos fechados. Um carro estacionado também indica o código da morte, supostamente 281F quer dizer se Paul estivesse vivo teria 28 anos.
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Queria poder tirar uma foto desse instante. Assim como John está como padre; Luiza seria o anjo que me levaria para uma vida celeste. O morto, Paul, com terno e descalço; necessariamente seria eu mesmo, pelas próprias circunstâncias. George é o coveiro, com vestimentas mais modestas; só podia ser o Leo. Não haveria carro preto estacionado para o funeral, mas uma cama de hospital. 381F? Fernanda seria o inferno, me trazendo situação carnal, do sexo e da vontade de continuar vivo nesse mundo. Fernanda me mostrando quase tudo que eu devia ter feito, mas não fiz.
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Pensei em contar minha idéia, mas acabei calando para ouvir o documentário.
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No meio do filme estou dormindo. Era difícil ficar alerta por muito tempo, os ombros doíam. Fernanda deita a cabeceira da cama. O momento feliz é drasticamente interrompido pela minha figura mórbida e fracassada. Estou deitado, nenhum único movimento. Leo interrompe o filme, leva todo equipamento embora.
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Luisa fica comigo a noite toda. Eu sinto sua presença apesar de não vê-la em todos os instantes. Ajuda quando tenho que tomar banho, comer. Várias coisas. Ela sempre foi uma amiga leal. Devia ter percebido, ao longo dos anos, que o amor que Luisa tinha por mim era muito maior do que tinha por Leo. Se Fernanda me amasse desse jeito, hoje estaríamos juntos. Os desencontros da vida, aparecendo tão claramente quando não se pode mas fazer absolutamente nada. Poderia amar Luisa algum dia? Se vivesse mais dois, três anos; como seria nossa relação? Não penso nisso, nunca pensei. Só tenho uma certeza, não posso mais amar Fernanda.
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O quarto está escuro, Luisa deve ter saído para comer alguma coisa. Eu penso em quantos motivos teria para amar Luisa. As famosas listas de Leo na minha cabeça. Como pensar nisso agora? Leo é um dos meus melhores amigos. Luisa chega, percebe que estou acordado. Ela se aproxima, pergunta se estou precisando de alguma coisa. Nossos olhares são diferentes, mas paralelos. Ela sente piedade, eu remorso.
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“Não posso morrer sem saber a verdade”
“Que verdade é tão importante para você?”
“Nós dois, sempre fomos bons amigos”
“Sim, continuarei sendo sua amiga”
“Mas uma coisa me incomoda, não sei como explicar”
“Quer saber se poderia ter existido algo entre a gente?”
“Sim”
“Poderia, mas não aconteceu”
“Não há mais chance?”
“Nenhuma”
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26
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Luisa está cansada. Ela está comigo quase todos os dias, desde que os primeiros sintomas começaram a aparecer. Cuidava de mim, era tudo que eu tinha em minha vida. Mesmo assim sabia que meu amor não poderia ser como ela queria. Assim, acaba me ajudando em meu plano, de encontrar com minha filha. Luisa sabia que era arriscado sair do hospital, mas também sabia quanto era importante minha promessa. O aniversário estava próximo, talvez seria minha última oportunidade de conhecer, abraçar e beijar minha filha.
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Luisa e Vanessa me ajudam, elas trocam minhas roupas, lavam meus cabelos. Estou perfumado, quase não se percebe que passei vários dias trancado no quarto. Faltava o presente, eu lembrei que as pessoas recebem presentes quando comemoram o aniversário não somente quando recebem visitas no hospital. Leo ficou encarregado de comprar alguma coisa, nos encontraríamos no meio do caminho.
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Não sei como conseguiram, mas em menos de dez minutos eu estava no carro de Vanessa indo ao encontro de Cíntia. Meu coração está disparado, sinto medo de ser rejeitado; mas isso não me importa mais. Queria apenas mostrar meu amor, dizer tudo que estava sentido. Uma lágrima, apenas uma lágrima em meu rosto poderia dizer tudo. Leo aparece.
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“Ela vai adorar o presente”
“Eu confio em você”
“Comprei Beatles”
“Não podia ser diferente”
“Eu escutei Beatles pela primeira vez quando tinha doze anos”
“Ela vai gostar”
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Não conseguia falar muito, minha garganta doía. Luisa esteve com Camila, tinham armado o encontro. Provavelmente Cíntia estava preparada para me ouvir, e quem sabe pela má impressão que eu possa causar. Meu coração está disparado, eu sinto falta de ar. Era tudo que não podia acontecer comigo, tinha que me manter firme, seguro. Pensei em todas as coisas boas que poderiam acontecer ao encontrar minha filha, o coração diminui o batimento. Não podia perder a oportunidade. Morrer num instante como esse.
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“Já sabe o que vai falar?”
“Não” – Olho pela janela, era noite – “Acho que vou abraçá-la, simplesmente”
“Ela não sabe de nada. Camila disse que não iria contar nada sobre você”
“É melhor assim”
“Queria estar junto com você”
“Tem coisa que só podemos fazer sozinhos” – Seguro o presente na mão. Meus dedos, meu braço estão fracos – “É o meu momento de ficar sozinho”
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Chegamos. Era uma casa grande, vários carros na porta. Era dia de festa, lembrei. Amigos da família, parentes, amigos de escola. Todos estariam agora comemorando com Cíntia. Lá de fora podíamos ouvir a música, todos estavam dançando, alegres. A juventude é uma herança agradável do nosso tempo, ninguém deveria perdê-la por causa de um amor ou qualquer outra coisa desagradável. Vanessa pára o carro, era minha chance de desistir.
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Luisa me ajuda sair, Leo e Vanessa ficariam esperando caso acontecesse algum imprevisto. Não consigo ficar de pé, Luisa me ajuda subir as escadas. Não era alto, mas era muito difícil chegar ao topo.
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“Estou com medo”
“Tudo vai dar certo”
“Caso ela me odeie?”
“Ela vai saber que está sendo sincero”
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27
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No Abbey Road, a música diz “And in the end the love you take is equal to the love you make". No fim o amor que levamos é igual ao amor que fizemos. Não fiz nada por Cíntia, como ela poderia me amar? Penso nisso, paro no meio da escada. Luisa sabe que estou ansioso, tenta me ajudar. Eu olho para as estrelas, o céu estava aberto apesar de ser uma noite de inverno. Queria voltar, estar seguro no hospital. Luisa diz que é uma grande bobagem pensar nisso agora, estou muito próximo de conhecer minha filha.
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Chegamos. Luisa toca a campainha. Camila nos atende, fica surpresa com minha presença. Quer que eu entre, eu digo que prefiro uma conversa rápida com Cíntia ali mesmo. Ela volta para a festa. Lá dentro uma gritaria enorme, para mim tinham vozes de criança ainda, mas eram todos adolescentes. Uma menina grita, diz que é o Anderson que está na porta. Todos sorriem, se divertem. Não era o Anderson. Cíntia abre a porta, fica assustada ao me ver. Logo a sensação de desconforto passa, ela fecha a porta, Luisa também se afasta. Agora estamos nós dois somente, testemunhas do mundo.
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“Está esperando o Anderson?” – Eu pergunto sem jeito.
“Sim, ele é meu namorado”
“Sua mãe me disse que você não namora” – Digo agradavelmente.
“Quem é você?”
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A maldita pergunta. A única coisa que não queria ouvir de Cíntia nesse momento era aquela pergunta. Poderíamos ficar conversando por horas, esquecer que lá dentro uma festa está comemorando seu aniversário. Iria perguntar várias coisas, tinha em mente saber como ela aprendeu andar. Se ficou doente por causa da garganta. O primeiro dia na escola. Como eu queria estar com Cíntia em seu primeiro dia de aula. Queria saber o que ela come, como se veste no cotidiano. Quais as gírias? Adora gírias que não são do meu tempo. Mas não, a pergunta que eu não queria responder.
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“Seu pai”
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Um silêncio. Cíntia ficou surpresa, é claro que desconfiada. Olhar, pode não dizer nada em alguns momentos, eu precisava ouvir alguma coisa. Nada, ela não diz nada. Não é sempre que um estranho aparece em sua porta dizendo que é seu pai. Ela não sabe para onde olhar, para meus olhos cansados ou para qualquer outra coisa inanimada. Não acredita no que estou dizendo, é evidente. Abre a porta, quer entrar novamente na festa e esquecer esse encontro. Volta, alguma coisa faz com que ela pense melhor na situação, era preciso me ouvir.
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“Como assim?”
“Seu pai”
“Só pode estar brincando”
“Não estou”
“Cadê o Anderson? Ele está escondido em algum lugar. Só pode ser uma brincadeira dele”
“Não conheço o Anderson”
“Pare com isso, está brincando comigo! Não gosto dessa brincadeira”
“Não é brincadeira”
“Vai! Levanta dessa cadeira!” – Cíntia tenta me puxar pelo braço – “Pare de fingir, vai, pode parar com essa coisa, brincadeira besta!” – Vejo em seus olhos a tristeza, ela está chorando.
“Não é brincadeira”
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Cíntia me abraça, me beija. Sabemos tantas coisas para dizer, mas no momento o silêncio basta.
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O frio continua, posso ver o sol batendo no rosto. As enfermeiras olham para os monitores. Linha subia, descia. Ninguém tem esperança. Remédios? Não existem mais possibilidades. Linha sobe, desce. Parece onda, parece música. O silêncio, é o fim. Todos continuam me olhando. Linha sobe, linha desce. Linha esticada.
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FIM
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