sábado, 9 de fevereiro de 2008

Roupa Suja - Introdução

ROUPA SUJA
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Introdução
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Torres é um sujeito mal humorado. Definição incompleta, mas com certeza muito esclarecedora. Perceberão no sujeito uma crise muito comum nos dias de hoje: uma mistura de tristeza, menosprezo, falta de vontade; e uma inquietação em relação ao futuro. No meio dessa conturbada situação, ele é contratado para procurar um senhor que está desaparecido.
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Durante a investigação ele começa a questionar diversos assuntos relativos à sua vida: o casamento que não deu certo, a mãe que está doente num hospital, sua relação afetiva e a questão profissional. Afinal, ele consegue dizer que é um sujeito realizado? O quê precisaria para responder essa pergunta com convicção? Como provar para ele mesmo ser um ótimo sujeito e um excelente profissional?
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Na cabeça de Torres o serviço era simples, mas a pergunta intrigante: Quem ele quer encontrar? O velho ou ele mesmo?
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Boa leitura!!
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Sérgio Oliveira
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(Em breve - Texto na íntegra nesse blog)

Capítulos Finais

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Madeleine foi embora sem responder minha pergunta. Sei que ficou impressionada com o que disse, pelo menos demonstrou que sim. Escrever uma história mesmo não valendo nada, escrever por escrever; para relembrar quem eu sou. Escrever para observar, como anônimo espectador, os motivos da minha existência. Quem sabe alguém pudesse me entender, me perdoar nessa vida de enganos. Da minha situação, dos meus desejos. O que ela ganharia com isso? Nada. Nem dinheiro, nem conhecimento. Quem sabe ganharia tempo. Não resgataria em mim qualquer motivação, nem serviria como experiência para ela. O que ganharia? Volto a me repetir em todos os instantes, do caminho da praça até meu quarto. De novo a mesma resposta: não ganharia nada. Como não se ganha nada da vida.
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Chego à pensão. Por sorte as portas ainda não foram trancadas. Subo silenciosamente as escadas, não queria que me vissem chegar. Yves berra no final do corredor, disse para eu esperar. Ela vem caminhando lentamente, com uma carta nas mãos. Por um momento pensei que ela iria me cobrar novamente. Não disse nada, entregou a carta e voltou ao seu quarto. A carta era da empresa onde havia feito teste. Para meu desespero, eu fui rejeitado. Entro no quarto e começo a chorar. Qualquer tipo de rejeição é sempre humilhante. Em pouco menos de duas horas, fui rejeitado duas vezes. O ódio estava me deixando louco. Quando um homem poderia chorar daquele jeito?
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Não costumava ter pesadelos, nem sonhos. Acordo cedo. Hoje o corpo dói menos. Não quero pensar no futuro. Esse meu pessimismo se fortalecendo a cada dia, paralisando a imagem que eu tenho do futuro, quando pensava poder ficar na beira de um riacho qualquer, pescando. Ver meus filhos andando de um lado para o outro, brincando com areia, comemorar mais um dia de velhice com os amigos. Como disse, hoje não quero pensar no futuro, nem no presente e esse meu emprego, nem na falta de dinheiro, nem em Madeleine. Nem nos filhos, riacho, pescaria ou amigos. Não tenho nada.
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O jornal que está na mesinha da sala parece ser da semana passada. Os burgueses estão revoltosos com tudo que está acontecendo, toda essa falta de poder e dinheiro. Nunca me envolvi com política, não seria agora que faria isso. Mudo de página. Nada me atrai tanto quando o silêncio, a nostalgia da infância. Yves me olha com reprovação, afinal ainda estava devendo o aluguel do quarto. Em sua cabeça a pergunta que incomoda: Qual o motivo do sorriso desse cara? Não estou sorrindo, Yves, estou apenas tentando imitar a vida das pessoas felizes.
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A verdade é uma só: a vida não espera nada de mim. Não importa se estou aqui ou acolá. Não importa para a vida se decido essa ou aquela vaga de emprego. Nem importa se estou desempregado. Não importa se decidir abandonar essa pensão sem levar nada comigo. Ser um andarilho que se preocupa apenas em comer. Que pensa apenas na sobrevivência. Não importa a ausência dos meus pais, da ambição. Não importa a ignorância do amor, nem a necessidade do sexo. Não importa nada para a vida, pois ela nos leva apenas para um caminho irreconhecível. Não há outra finalidade e é para isso que nos serve a esperança, ignorar nossa rejeição do futuro.
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Madeleine aparece na porta da pensão. Ela está bonita, mas não consigo vê-la como antigamente. Bastaram alguns dias para ficar desinteressado naquela garota, que há pouco era minha única motivação de continuar vivo. Ela fica ao meu lado, parece perceber meu estado de inanição, de entrega; de rendição completa para a vida. Era um perigo olhar para ela, lembrar das coisas que eu vivi num passado não muito distante.
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"Resolvi escrever sua história"
"Não me importa mais"
"Agora pouco disse que era importante"
"Pois é, mudo de idéia toda hora"
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Ela se levanta, continua sem saber como lidar comigo e minhas inquietudes.
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Madeleine segura minha mão, mais do que isso: puxa-me daquele lugar. Era preciso que eu arrebentasse aquelas pesadas correntes que me aprisionavam num local escuro e úmido. Precisava ver o ar, precisava ver as pessoas sobrevivendo. Ela me carregava pelas ruas e em seus olhos eu podia me ver como se estivesse dizendo: Vê como essas pessoas vivem? Elas têm problemas como você, às vezes muito maiores. Atravessamos a rua, ficamos parados olhando os carros passarem. Não havia mais pedestres, nem crianças, nem pássaros.
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"Não entendo você"
"Não precisa"
"Tentei entender seus motivos"
"Também não sei"
"Pode ser interessante escrever sua história"
"Ninguém vai se interessar por uma história boba, sem sentido. Não haverá final feliz"
"Não precisa ter um final. Você mesmo disse que poderei guardá-la na gaveta"
"Não quero mais. Só penso que preciso comer"
"Está com fome?"
"Isso me irrita"
"O quê te irrita?"
"Seus cuidados"
"Acha que me preocupo com você?"
"Não estaria aqui se a resposta fosse não"
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Entramos numa padaria. Madeleine começa a mastigar um pedaço de pão com manteiga. Era tarde para um café da manhã. Mas quem foi que disse que precisamos de relógio para fazer as coisas? Começamos minha história, ela anota num caderno. Mas do que qualquer coisa, Madeleine começava naquele instante a mudar meus planos.
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O casebre ficava no meio da estrada, entre as fazendas de Valdemar e Lourival. Um caminho de terra que diariamente era castigado por carroças que iam e viam da cidade levando mais um dia de produção das fazendas. Foi ali que Pierre nasceu. Sujo, imundo. Lançado sem muita dor por sua mãe. Com ele mais treze irmãos, que morreram por malária, por acidente ou por facão de cortar cana. Nasceu sem pai, que poderia ser tanto outros que sempre passavam por aquela região, como por uns que nunca mais passaram. Nasceu e caiu no chão, para sempre sobreviver daquele modo.
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Quando completou doze meses foi abandonado pela mãe. A história não é muito clara, pois era nítido que escondiam de Pierre a verdadeira razão da mãe ter ido embora. Foi adotado por uma senhora da região, que cuidava de tantas outras crianças. Aos treze anos começa ajudar Magalhães, um vendedor de tecidos, profissão que na época era conhecido como caixeiro-viajante. Aos quinze chega à cidade grande, onde fica por dois anos na casa de uma das filhas de Magalhães. Estuda em bons colégios ao mesmo tempo em que trabalha para a família Magalhães, num ramo que crescia muito: tecidos, linhas e botões.
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Aos dezessete descobre que os homens são capazes de várias atrocidades por causa de dinheiro: Vê o próprio filho do Magalhães assassinando a família, deixando ileso o rapaz. Mas não por piedade, mas por não tê-lo encontrado debaixo da escada no momento do crime.
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Pierre estava num lugar distante, com pessoas desconhecidas. Começa ai sua vida de solidão.
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"Mais alguma coisa por hoje?"
"É o bastante"
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Não é fácil construir um personagem que pode virar um herói. As pessoas se dão bem somente com as pessoas falíveis. Geralmente em novelas nós sempre achamos os vilões mais carismáticos. Eles erram, acertam; são pessoas comuns com um sentimento que muitos repudiam: a inveja. Mocinhas bondosas desapareceram das histórias. Mocinhos caricatos também. Quem eu vou ser nessa construção que Madeleine está elaborando? Qual a verdade ela não vai contar? Eu sei que ela deverá se esforçar muito para tirar essa antipatia que me cerca. E creio que todos me odeiam nesse momento: um perdedor nunca é motivo de orgulho para quem quer que seja.
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Madeleine chega bem cedo, eu ainda estava na cama. Ela trouxe comida, já que ficou sabendo que Yves cortou meu nome da relação que poderia freqüentar a cozinha (era uma conhecida pressão que ela fazia quando alguém ficava devendo). Madeleine entra com cuidado no quarto, ela sabia da dificuldade de se locomover naquele lugar. Pão com manteiga, um copo de leite e algumas frutas. Mal tive tempo de agradecer, estávamos mais uma vez comentando sobre a vida. Ela disse que ficou curiosa para saber mais sobre minha história.
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"Só pode ser por amor" – Ela disse no meio de uma discussão.
"Não é amor"
"Não consigo achar outro motivo para tanta apatia"
"Esse é o nome da minha doença?"
"Você não está doente"
"Hoje preenchi mais uma ficha"
"Como foi?"
"Fui péssimo, dizem que estou velho"
"Ainda tem saúde"
"Estávamos falando do amor?"
"Sim, do amor. Acho que está desse jeito por causa de uma namorada, um amor qualquer"
"Pode ser, mas não tenho certeza"
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Pierre se aproximou da garota, naquele momento ele não sabia que o nome dela era Fernanda. Mostrou os documentos, disse que estava precisando de ajuda. Era costume naquela época se identificar para qualquer desconhecido com algum documento de identidade. Disse que estava perdido, que precisava de ajuda para encontrar um amigo. Fernanda duvidou da situação, mesmo assim ajudou. Eles se encontraram mais tarde, mas não se lembraram do acontecimento passado.
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"Parece que conheço você de algum lugar"
"Também acho"
"Quer um café?"
"Não, obrigado"
"Você pode preencher seu nome e telefone do lado de fora do envelope"
"Acha que tenho chance?"
"Não posso adiantar, temos muitos candidatos do lado de fora"
"Estou desempregado há seis meses"
"Eu sei, é complicado"
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"Não acredito que ficou apaixonado por uma garota que nem sabia o nome?"
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Sei que devem estar pensando que minha história é realmente sem graça. Eu não posso ser culpado disso, de perderem tempo. Eu mesmo disse, quando conversei com Madeleine sobre o livro, de que sou um sujeito normal. Por isso pode parar agora mesmo se sentirem que não haverá saída melhor para mim. Se perceberem que minha vida é assim, tão pessimista. As pessoas gostam da ilusão das histórias, e eu não pretendo esconder nada. Vale a desilusão, meu lema. Às pessoas que vivem de ilusão são mais felizes, mas não são verdadeiras. Por isso quero quebrar todas as barreiras possíveis e imagináveis, quero a desilusão rompendo tudo que não é real.
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Quem começou a história pensando em gracejos, em beijos e grandes lances de amor; pode desistir de saber o final. Quem prefere ação, pode ir embora. Fique apenas aquele que se importa com as pessoas, independente do seu estado, torcem pelo seu sucesso. Pessoas que tenham compaixão. Às vezes coisas estranhas acontecem em nossa vida, basta uma derrota para que a segurança e a vontade desapareça sem deixar vestígio. O que fariam com pessoas tão ridicularizadas? Dariam a mão tentando reerguê-la ou ignorariam sua história?
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"Quer morar comigo?"
"Como assim?"
"Estou sozinha naquela casa, não agüento a solidão"
"Mas, sabe minha situação"
"Não vai durar para sempre, amanhã ou depois consegue um emprego"
"Minha dívida com Yves"
"Eu acerto tudo, depois me paga"
"Não sei se vou viver muito tempo"
"Claro que vai"
"Por que confia em mim?"
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Pierre entra no bar. Seu amigo Georges está apostando com outro sujeito uma partida de bilhar. Pierre pega a cerveja, ficam conversando esperando a partida acabar. Georges vence, recebe o dinheiro, paga sua dívida no bar. Pierre e Georges saem, espiados pelas pessoas do local. Caminham pela rua enquanto conversam.
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"Tenho uma proposta para você" – Georges começa.
"Proposta?"
"É uma coisa complicada, eu poderia estar falando isso com uma outra pessoa. Mas sabe como é? Eu confio em você"
"Sim"
"Fique à vontade de dizer sim ou não"
"Tudo bem"
"Conhece a Monique, filha do Bernardino?"
"Sim"
"Preciso que acabe com aquela piranha"
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Monique e Georges não nomes dos verdadeiros personagens da minha história, nem piranha é o termo usado por Georges. Madeleine deixou assim mesmo em suas anotações, apesar da minha observação.
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Chego com minhas coisas, que não eram muitas. Entro no quarto que Madeleine separou para mim. Fiquei feliz com a ajuda. O quarto era bem maior do que aquele que estava vivendo na pensão. Tomo um banho. Pela primeira vez em quase dez anos tomava um banho de verdade. Sentamos à mesa, Madeleine havia preparado uma sopa de ervilha. Começamos a comer enquanto ela revisava a história. Um pedaço de pão na mão, a colher na outra. Lembrei de várias coisas da minha infância. Por momentos eu pensei que a felicidade havia me achado novamente.
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"Georges queria que você matasse a namorada dele?" – Madeleine.
"Sim" – Coloco uma colherada de sopa na boca – "Parece que é um lance de ciúme"
"E você?"
"Eu o quê?"
"Fez o serviço?"
"Estava precisando de dinheiro. Sabe que fazemos grandes bobagens quando precisamos de dinheiro"
"Não acredito que matou a garota"
"Não matei ninguém" – Mas uma colherada da sopa, arrependendo-se de falar demais.
"Não estou brincando!"
"Também não"
"Quer que eu conte a história ou não? Precisa sempre me dizer a verdade"
"Mal cheguei à sua casa e já estamos brigando?"
"Não estamos brigando, mas se não me disser tudo que aconteceu como poderei escrever sua história?"
"Essa parte não foi importante"
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Um único golpe certeiro na garganta de Monique. A faca ele encontrou ali mesmo, numa mesa da cozinha. Faca que foi usada para descascar abacaxi para festa que estava acontecendo nos fundos da casa. Monique não consegue identificar seu assassino, também seria inútil fazê-lo. Pierre coloca a faca suja de sangue na cintura, nas costas. Sai da cozinha, passa pela sala onde algumas pessoas conversavam. No portão escuta o primeiro grito. Acharam o corpo da desgraçada, ele pensa. Por muitos anos ficaram sem saber onde estavam Pierre e Georges, principais suspeitos do crime.
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Madeleine não queria escrever a parte da história onde eu mato uma pessoa. Mas ela mesma disse que era essencial que eu falasse a verdade. Eu fiquei pensativo durante o jantar e parte da madrugada. Estávamos do lado de fora da casa, olhando a Lua e as coisas da noite. Resolvi dizer que por algum dinheiro ridículo eu matei uma pessoa que não conhecia. Sempre pensei ser incapaz de fazer qualquer coisa de ruim para alguém, mas essa ilusão acabou muito antes do que eu esperava. Foi fácil pegar o dinheiro, contar todas as notas, enfiar no bolso. Foi fácil ouvir o plano do Georges, que se preocupou com os mínimos detalhes. Ele mesmo me disse que bastaria que eu pegasse a faca, segurasse a boca de Monique e passasse a lâmina com toda força no pescoço da mulher. Pareceu ser simples tudo aquilo, tanto é que aceitei.
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Ficamos pensativos depois da conversa, mais pela paralisação de Madeleine do que pela minha falta do que falar. Afinal eu era um estranho para ela, apesar de toda nossa aproximação dos últimos dias. Levantou-se, disse que estava com sono. Foi para o quarto. Fiquei mais algumas horas na rua, na porta da casa; olhando a noite e o silêncio. Algum dia ela irá me perdoar, tenho certeza. Tenho certeza também que ela está com medo do que eu possa fazer. No lugar dela ficaria preocupado também.
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Uma história sempre começará com três personagens, o resto é acessório. Um que nega, outro que confirma e um que representa o próprio conflito. Somos assim, todos. Alguns conseguem perceber a verdade, outros não. Alguns conseguem perceber, mas não conseguem fazer nada em relação a isso. É confuso? Eu sei que é. Tentaria explicar para Madeleine que aceitei a proposta de matar Monique, não querendo aceitar. Matei não querendo matar. O conflito, que é esse ser que sobra disso tudo, vive pela violência, felicidade, tristeza, vingança e arrependimento. Nossas motivações são maiores pela necessidade.
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Entro no quarto de Madeleine, ela está dormindo. Seu corpo esparramado na cama me dá uma sensação no corpo que fazia um bom tempo não sentia. Queria poder abraçá-la, me juntar ao seu corpo mesmo naquele inferno que estávamos vivendo. Ela parece perceber minha presença, se mexe de um lado para o outro, mas não acorda. Parte do lençol que estava cobrindo suas pernas cai para fora da cama; seu corpo fica ainda mais acolhedor. Tento cobri-la, sem que ela despertasse. Cenas de Monique me atormentam, começa um suor frio escorrendo pelo pescoço. Ela acorda assustada.
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"O quê está fazendo aqui?"
"Escutei um barulho estranho"
"Barulho estranho?"
"Sim, mas deve ser o vento"
"Não está ventando"
"Percebi que estava descoberta"
"Nunca mais entre em meu quarto quando eu estiver dormindo!" - Eu saio do quarto, ela continua resmungando.
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Eu sempre me senti um estranho, em qualquer lugar que estivesse. Pensava que as pessoas estavam me rejeitando, não querendo minha companhia. Durante um bom tempo eu pensava que aquilo era uma bobagem, coisa da minha cabeça doentia. Mas no fundo tudo isso acontecia de verdade. Sou perfeito quando quero criar uma aversão qualquer. Quando quero ser impertinente. Quando quero que as pessoas festejem minha ausência. Madeleine parecia ser uma dessas pessoas, que tentava me ajudar, mas ao mesmo tempo me rejeitava.
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A faca deveria ser jogada em algum bueiro longe da cena do crime. Pierre percebe que está correndo um risco enorme ao carregar a arma em sua cintura, com vestígios de sangue de Monique. Do outro lado da rua, percebe a movimentação de policiais, isso faz com que ele aumente seus passos; procurando desesperadamente um lugar seguro. Dobra a esquina, entra numa rua movimentada; mais um caminho até chegar numa rua escura (apesar de ainda ser dia). Agacha-se perto de um bueiro, como se estivesse procurando alguma coisa. Joga a faca. Tudo poderia estar resolvido, não há menor risco de ser descoberto na investigação. Mas, sempre tem uma coisa que não combina com assassinos: a sorte!
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Um senhor aparece na esquina, vê o movimento de Pierre. Ele poderia ter visto a faca na mão de Pierre ou não. Não importa agora, era preciso fazer alguma coisa. Pierre tem certeza que o velho viu tudo. Os crimes são assim mesmo, nunca têm situação marcada para acabar. Ele segue o velho, entram num bar. Pierre se aproxima do velho, ambos pedem um conhaque. Começam a conversar.
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"Eu nunca vi o senhor por aqui" – Pierre pergunta.
"Vim visitar minha filha"
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A conversa é interrompida naquele momento. Uma briga de dois rapazes começa no fundo do bar. De repente a bagunça é generalizada.
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Saio do quarto de Madeleine. Não deveria ter feito aquilo, ela pode pensar qualquer absurdo sobre mim. Já invadi sua casa, estou invadindo sua vida; entrando no quarto sem mesmo ser chamado. Ela pode estar se sentindo insegura. Por um momento tento me colocar em seu lugar. Aceitaria alguém fazendo as mesmas coisas que eu estou fazendo? Ponho na cabeça uma única coisa que não devo me esquecer nesse relacionamento: somos completos estranhos! Deito na cama. Era a primeira vez em anos que eu consigo dormir numa cama macia. Fecho meus olhos, penso em como as coisas poderiam ser melhores nessa fase da vida. Penso nas coisas que eu poderia melhorar, penso até pegar no sono. Naquela noite, infelizmente, não tive nenhum sonho.
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Pego a história que Madeleine estava escrevendo sobre mim. Ela estava me tornando um assassino. Sem medo e vingativo. Não é verdade. As coisas aconteceram porque tinham que acontecer. Não tive domínio sobre minhas escolhas. Ela passa rápido pela minha infância, conta pouco sobre minha relação com meus pais adotivos, com a morte das minhas irmãs. Não fala nada sobre minha adolescência. Não havia nada mesmo para contar, foram épocas que nem eu mesmo me lembro bem. Duas ou três páginas da minha vida. Na quarta página aparece a morte de Monique. Minha vida não se resume num assassinato.
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Acordo cedo, precisava caminhar; olhar como as pessoas estão. Sabe? Acordam cedo? Estão trabalhando? Levam filhos para a escola? Os velhos conversam sobre futebol? As velhas continuam fazendo feira? Eu ando pelo mundo, em todos os cantos. Cadê as pessoas que deveriam me conhecer? Onde está escondido meu grande amor? Estou cansado, minhas pernas doem enquanto caminho. Não vejo ninguém. Nossa vida sempre será muito sozinha, não importa quantas pessoas estão ao nosso lado. Sempre nos sentiremos sozinhos, com nossos medos e as lembranças de nossas derrotas e vitórias. Volto para falar com Madeleine, preciso terminar logo minha história.
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Madeleine está tomando café, ela me olha com desconfiança. É terrível morar com alguém em quem não confiamos.
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"Precisamos terminar a história" – Eu digo.
"Tudo bem. Hoje mesmo acabamos, se você quiser"
"Quero ir embora"
"O quê fez você mudar de idéia? Ver que eu não sou essa pessoa tão tola que você pensava?"
"Tola?" – Minha vontade de ir embora estava relacionado com o sentimento que havia criado em relação a Madeleine.
"Pensou que invadiria meu quarto e eu ia achar normal?"
"Não invadi seu quarto"
"Não!!! O que estava fazendo nele ontem de noite?!?!?"
"Já disse: o barulho, o vento"
"Não sei o quê estou reclamando, deixei você invadir minha casa sem dizer uma única palavra"
"Não precisa ter medo de mim, já disse"
"Como não ter medo de você? Nem te conheço, de repente estou me envolvendo, achando você o cara mais sofrido do mundo, que precisa de ajuda, de colo; precisa que alguém lhe dê onde morar"
"Não preciso de nada disso!"
"Quem é você, me diga?!"
"Você está escrevendo minha história. Não precisa me perguntar"
"Matou mais alguém?"
"Como assim?"
"Quer me matar?"
O silêncio assustador, eu estava sem resposta.
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Dois rapazes caem bem perto de nós, a briga no bar continua. Eu tento ver se eles ainda estão vivos, um deles está sangrando demais. O senhor se abaixa também, era minha chance de dar-lhe um golpe certeiro no pescoço, mas lembrei que não estava carregando mais nenhuma arma. Saímos correndo do bar antes que a polícia chegasse.
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Madeleine pega papel e caneta, senta-se no tapete da sala. Eu estava no sofá, lendo um dos livros jogados na mesa. Ela diz que podemos continuar com a história, faz um breve relato dos últimos acontecimentos, narra em voz alta a morte de Monique, minha entrada no bar. Eu continuo reflexivo, sabendo que ela quer me transformar num mostro. Continuo olhando para Madeleine, mais vez sinto ódio, raiva; uma vontade imensa de acabar com tudo aquilo. Esquece, é bobagem; posso fazer minha história mudar, tomar outro rumo. Quero lembrar que, apesar de tudo que eu faço e fiz, ainda sou um ser humano que sente desejo, vontade. Sem esperança é verdade, mas com alguns bons sentimentos.
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"Queria mudar algumas coisas" – Eu sugiro.
"Podemos fazer a revisão depois que tudo estiver pronto"
"Preciso mudar agora"
"Mudar sua infância? É impossível"
"Numa festa eu me queimei ao pular a fogueira"
"Isso não é importante"
"Como não é importante? Como vai explicar a marca que eu tenho na bunda" – A marca não era de infância.
"Não vi sua bunda ainda"
"Agora sabe"
"Vamos para a parte que saiu do bar, seguiu o velho"
"Eu não segui ninguém!"
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Madeleine se levanta do chão, joga os papéis em mim, diz que não pode continuar minha história se eu não cooperar. É uma verdade, como ela pode escrever sobre mim se eu escondo os fatos? Ela vai até a cozinha, volta com um copo de leite na mão. Isso não é importante também, como não é a mentira da minha queda na fogueira quando eu tinha sete anos. O que é importante em nossas vidas? Os momentos alegres ou os tristes? Lembramos mais da felicidade ou da dor? Sentimos falta do quê afinal?
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Na saída do bar uma chuva fraca, Pierre e o velho correm em busca de proteção. Ele não percebe que está sendo seguido, talvez pela pressa de sair correndo do lugar onde estava acontecendo uma briga, talvez por qualquer outro nervosismo. Entram numa rua deserta, talvez a mesma onde Pierre havia joga a faca. Continuam andando, correndo; mas lentamente diminuindo os passos. Ao mesmo tempo em que o velho vai parando, Pierre aumenta os seus passos para poder alcançá-lo. Se antes tinha alguma dúvida, agora sabia perfeitamente que ele era uma testemunha perigosa: sabia onde estava escondida a arma do crime.
O velho caminha lentamente. Pensa já estar em segurança, longe da confusão. Afinal nem precisava correr daquele jeito, não tinha nada com a briga do bar. Nessas horas é que percebemos como fazemos coisas impensadas quando estamos em uma situação incomum ao cotidiano. O quê você faria se alguém tentasse te assaltar agora? O que faria se estivesse num prédio pegando fogo? Não adianta responder. Com certeza as respostas não corresponderão à realidade.
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O velho olha para trás. Não dá tempo de se defender, nem de questionar. Pierre acerta-lhe um golpe bem na cabeça. Estava com uma barra de ferro que, por sorte dele ou azar do velho, encontrou em algum momento da perseguição. Sangue jorra, o velho cai no chão. Era preciso ter certeza que o velho estava morto, ele continua batendo, duas ou três pancadas na cabeça do sujeito morto. Rapidamente uma poça de sangue escorre. Pierre sai correndo, largando a arma do crime no chão.
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"Eu não bati no velho depois que ele estava no chão"
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Madeleine estava cada vez mais espantada com minhas ações. Não era possível que um sujeito calmo como eu pudesse agir com tanta brutalidade. É certo que dava o tom que queria, como era o exemplo da morte do velho. Não agi daquele modo, pelo menos pensava não ter agido. Queria acabar com ele, mas em nenhum momento pensei em acertar-lhe com inúmeras pancadas. Se sentisse ódio, quem sabe? Mas estava sentindo apenas medo de ser encontrado pela polícia por causa do meu primeiro assassinato.
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Madeleine se levanta. Ela está eufórica com a história.
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"Adorei essa parte. Eu mesmo estou ficando com medo do que você é capaz"
"Sabe que não sou capaz de fazer mal a ninguém"
"Não parece"
"Não pode me julgar assim, todos cometemos algumas loucuras"
"Você passou dos limites, não acha?"
"Foram coisas que aconteceram naturalmente"
"Não é normal sair matando os outros"
"Não pensou nas circunstâncias?"
"Nem quero pensar"
"Estou me sentindo mal com tudo isso"
"Como queria se sentir?"
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A pergunta de Madeleine era muito interessante. Afinal , até aquele momento da minha vida nunca parei para pensar a morte de Monique e do velho. Mais mortes aconteceram, mas é uma outra terrível história. Importa para mim contar como tudo aconteceu, até chegar nesse momento, com Madeleine ao meu lado, e tudo que eu sinto por ela.
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"As pessoas vão olhar para sua história, vão ficar admiradas, pensando nos motivos de ter feito aquilo"
"Não sou esse assassino que está escrevendo"
"Sua história está dizendo o contrário"
"Essa que é a questão! Não está escrevendo como realmente aconteceu"
"Matou ou não a Monique?"
"Não foi desse modo. Também não tinha raiva do velho para matá-lo do jeito que está escrito ai"
"Assassinato brutal ou assassinato normal, estamos falando sobre o quê afinal? Qual é a diferença?"
"...."
"Disse que eu poderia fazer qualquer coisa com sua história"
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De algum modo as coisas estavam saindo do meu controle. Pensei em acabar logo com aquilo, escrever logo a história e ficar livre de tudo. Mas a grande questão não era somente pela história, mas o que poderia acontecer com Madeleine. Todas as histórias são mentirosas, acredito. Nunca podemos acreditar em tudo que escrevemos ou lembramos. Nossa imaginação, às vezes, é um bicho assustador, que nos deixa encurralado em nossa memória, nos fazendo acreditar no que ele quer que seja verdade. Quem pode me dizer se realmente o homem não morreu daquele jeito, com pancadas de barra de ferro?
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"Tenho que sair por uns dias"
"Para onde você vai? Precisamos terminar o livro"
"Lembrei que fiquei de visitar um amigo que está doente, nos conhecemos na pensão"
"Que amigo é esse?"
"Não cheguei ainda nesse ponto da história"
"Vai chegar?"
"Sim, claro. Não estamos escrevendo minha história?"
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Era mentira tudo aquilo, precisa de alguns dias longe dali. Não queria minha história daquele jeito. A verdade é que preferia não ter começado nada daquilo, os motivos se perderam e agora eu me sinto sufocado. Não quero a mesma coisa para Madeleine do que eu queria quando resolvi procurá-la. Afinal, ela parece ser uma boa pessoa, que me ajudou. Em momentos de mais lucidez eu sei que não a odeio de nenhuma forma.
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Sai e disse que voltaria em dois dias, mas na verdade queria sumir para sempre.
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Queria ficar longe de tudo, mas não tinha muitas opções na vida. Se antes eu poderia estar causando algum medo em Madeleine, agora era ela quem estava me deixando preocupado. Sentia-me aprisionado, como querendo esquecer tudo que estava vivendo e não conseguisse. Minha história podia ser outra, bem melhor. Podia ter deixado alguma coisa de bom para o mundo. Mas o que sobrará de mim? Esse assassino inconseqüente, com medo das pessoas e sem um olhar acolhedor no futuro? Dou duas voltas no quarteirão, pensando em como sair dessa cilada que eu mesmo havia criado.
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Bem, poderia estar pensando em coisas reais, em arrumar logo um emprego e me livrar definitivamente de Madeleine. Mas as coisas não são tão simples. Estava e continuava perdido, assim como no momento em que procurei Madeleine pela primeira vez. Às vezes achamos que qualquer busca irá nos preencher para sempre, mas tão logo chegamos perto do objeto desejado, perdemos o interesse por ele. A vida inteira procurei uma pessoa em quem pudesse confiar. A vida inteira quis escrever minha história de outra forma. Hoje estou com essas duas coisas bem debaixo do nariz e mesmo assim quero abandonar tudo.
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Era verdade que um amigo estava no hospital. Também era verdade que eu havia prometido uma visita. Não posso chamá-lo de amigo, e nem minha aparição pode ser considerada uma visita. Mas estava ali, na porta do hospital, pensando em inúmeras coisas que eu poderia dizer ou desejar para que ele melhorasse e saísse logo daquela situação. Todavia a verdade era uma só: estava pouco me importando com a saúde dele. Entro no hospital, passo por uma enfermeira. Ninguém me pergunta o que estou fazendo ali. Subo as escadas, que me levaria para o primeiro andar. Continuo procurando Alan.
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Esse era o nome do meu amigo: Alan. Conhecemos-nos quando trabalhávamos numa gráfica, ficamos amigos e chegamos a dividir uma pensão durante uns dois anos. Mesmo assim não nos tornamos íntimos. Ele tinha sua vida e eu a minha. Não sei se amizades são formadas desse modo, só sei que nos dávamos bem dessa maneira. Infelizmente ele me apresentou sua noiva. Fui ao seu casamento. De repente eu desapareci. Nunca mais nos falamos. Ouvi notícias sobre ele pouco antes daquele dia, em que encontrei Madeleine; diziam que ele estava internado e muito doente.
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Sigo pelo corredor, encontro outra enfermeira. Perguntou sobre Alan, descrevendo seu porte físico. Pensava que ele ainda era um sujeito forte, com cabelos escuros e encaracolados. Ela me diz que ele está no quarto dezessete. Continuo andando pelos corredores. Eu sempre gosto de me preparar para qualquer encontro, saber o que vou dizer e provavelmente o que vão perguntar. Com certeza perguntaria se eu já estou casado, e eu vou perguntar como está a família. Chego ao quarto, Alan estava deitado olhando para a janela. Sua aparência cansada, com olhos fundos e um corpo raquítico.
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"Nunca pensei que viria me visitar" – Apesar de muito doente, Alan falava bem.
"Queria vir antes, mas não deu. Como está se sentindo?"
"Bem melhor, acho que foi um susto"
"A família?"
"Leonardo está um moço, precisa ver com seus próprios olhos"
"Que bom saber isso"
"Você casou?" – Inevitável pergunta.
"Ainda não"
"Sempre boêmio"
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Uma mulher entra no quarto. Tem cabelos lisos, sorriso simpático. Não é mais tão bonita quando era jovem, mesmo assim mantinha os traços por quem me apaixonei. Ela se assusta com minha presença, era tarde para sair antes de ser percebida. Ela se aproxima de Alan, beija seu rosto. Ficamos em silêncio por alguns instantes.
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Queria que minha visita fosse bem rápida, isso evitaria meu encontro com Fernanda. Esperamos Alan dormir, ele está cansado. Não sei bem o que aconteceu com ele, não quis perguntar também. Muito mais do que curiosidade, queria apenas saber se ele poderia se recuperar. Um médico entra com um papel na mão, conversa com Fernanda em particular, ela volta para o quarto. Conforme sua informação, Alan estaria melhor nos próximos dias. Era tudo que eu precisava saber, quero sair logo daquele lugar, o mais rápido possível. Fernanda me segue pelos corredores do hospital, eu finjo não saber que ela está atrás de mim. Ela me alcança, continuamos andando.
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"Queria saber como você está"
"Estou bem"
"Está com pressa?"
"Sim"
"Queria conversar com você, te procurei depois daquele dia"
"Você estava bonita de noiva"
"Então, nunca mais nos falamos"
"Aquele dia foi estranho para mim, sabe bem"
"Queria que entendesse"
"Eu entendi"
"Mas está ausente, pensei que fossemos bons amigos"
"Pensou errado"
"Vamos tomar alguma coisa?"
"Estou com pressa"
"Pensei que sabia da minha relação com Alan"
"Não sabia"
"Queria que entendesse"
"Entendo que meu melhor amigo se casou com a mulher que eu mais amei"
"Alan não entende sua ausência"
"Melhor assim"
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Continuo andando, Fernanda não me acompanha. Paro para atravessar a rua, queria voltar e conversar mais com Fernanda. Sua presença me fazia bem, não sei como, nem qual a razão; mas me sentia bem. Continuo andando, sem querer prestar atenção nas coisas, apenas sair andando, ficar cada vez mais longe do hospital, de Fernanda e Alan. Ficar longe de tudo que me causava algum mal.
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De certo modo o encontro foi o impulso que eu precisava para dar continuidade à história que Madeleine estava escrevendo. Eu tinha esquecido meu plano, tinha esquecido minha vontade de deixar a história da minha vida pronta, sem mistérios e arrependimentos. Não existe alegoria, nem conflitos; não existe ação, nem uma grande questão de paixão. Minha história pronta, sem esconder nada: eu sendo verdadeiro, pela vingança e infelicidade.
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Chego tarde, Madeleine está dormindo no sofá. Dessa vez não me atrevo a nenhuma situação, de chamá-la ou tentar levá-la para sua cama. Eu passo direto e vou para meu quarto. Fernanda começa a me aterrorizar novamente nos sonhos. Sinto uma febre correr pelo corpo, sinto sua voz bem próxima, vejo Alan caminhando lentamente em minha direção. Ele continua doente, quase morrendo. Não morre pelas minhas mãos, mas é como se estivesse apertando seu pescoço, sufocando-o. Acordo assustado.
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Pierre está com o ramalhete nas mãos. Estava pontual em relação ao encontro com Fernanda. Olha mais uma vez no relógio, para ter certeza de que está no horário. A chuva aperta, era comum chover assim naquela época do ano. Um casal passa abraçado bem na sua frente, um protegendo o outro da chuva. Ele sorri delicadamente, pensando na cena que poderia estar vivendo com Fernanda. Olha mais uma vez no relógio. Está ansioso. Pretende pedir Fernanda em namoro. Estava eufórico, queria contar tudo que estava acontecendo ao seu amigo Alan, mas ele havia saído bem cedo de casa.
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Madeleine acorda assustada, o pesadelo foi horrível. Eu não pergunto nada, não estava mesmo querendo saber o que tinha acontecido. Ela pega uma xícara de café, senta-se ao meu lado. Eu estava olhando as ofertas de emprego, nenhuma era atraente. Levanto, vou até a janela. Madeleine continua me olhando, curiosa para saber o que estou pensando. Não posso dizer meus pensamentos, lembro dos meus últimos dias com Georges, sua lembrança me deixa furioso. Eu não digo nada, mas queria dizer que estava cansado de tudo aquilo, que não tinha mais tempo; queria que ela escrevesse logo minha história para eu poder ir embora, sem rumo. Estava desistindo de tudo, do motivo principal de estar naquele lugar. Para sorte de Madeleine, meus planos estavam sendo esquecidos lentamente.
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"Você está distante"
"Estou?"
"Está. Aconteceu alguma coisa?"
"Nos últimos quarenta anos nada acontece"
"Não pode dizer isso"
"Sim. As surpresas só acontecem quando somos crianças, o resto perde o sentido"
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Levanto novamente, curiosamente não tinha muito mais o que dizer para Madeleine. Eu que sempre gostei de revirar casos, estava sem menor vontade de qualquer discussão.
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"Poderíamos terminar logo esse livro" – Eu digo de forma impaciente.
"Estou esperando me dizer o que aconteceu depois que matou o velho"
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Antigamente qualquer barulho de polícia incomodava Pierre. Ele realmente tinha um medo enorme de ser apanhado por quem quer que seja que usasse farda. Talvez um trauma quando criança, talvez uma percepção de como seria seu futuro fugindo da polícia. Naquele dia ele tinha mesmo que se esconder.Acabara de matar um velho com vários golpes na cabeça. Pior de tudo é que continuava sem dinheiro, já que não foi capaz de fuçar nos bolsos do cadáver para saber se existia alguma coisa de valor.
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Corre sem parar, como se estivesse sendo perseguido. Não há nada, nem ninguém atrás dele. Somente a consciência lhe intimando a relembrar os fatos dos últimos dias. A facada bem no pescoço de uma mulher que ele nem conhecia, não tinha ódio nem motivo. Quer dizer: motivo existia: o dinheiro que Georges havia lhe prometido. Depois o velho, com vários golpes na cabeça. Motivo? Achava que o sujeito era uma perigosa testemunha do seu primeiro crime (acredita até hoje que o velho viu a arma do crime sendo jogada no bueiro).
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E agora? Para onde iria?
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Ele anda sem parar, não tem mesmo nenhum lugar para correr. Lembrou de alguns amigos, mas esses não eram tão íntimos a ponto de botá-lo para dentro de casa. Lembrou da Fernanda. Fernanda ele tinha conhecido há pouco tempo, meio por acaso. Ficou apaixonado por Fernanda, mas não tinha coragem de lhe dizer a verdade. Sua única esperança era Alan. Não, Alan era um sujeito muito correto, não queria colocá-lo em nenhuma situação de risco. Corre. Ele continua correndo.
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Certas pessoas sempre estão desesperadas para alcançar algum objetivo, mas a maioria nem sabe bem o quê está querendo. Assim, correr para não ser apanhado pela polícia, ou procurar desesperadamente por alguma paixão, acaba quase sempre significando a mesma coisa.
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Ele pára perto de uma ponte e se esconde. Lembrou de Georges e o amaldiçoou pela eternidade.
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Algumas coisas em mim deixam-me curiosamente entristecido: afinal de contas qual o motivo de estar sempre fazendo a escolha errada? As pessoas odeiam seres que ficam se queixando por todos os cantos e de todos os modos, e deve ser por isso mesmo que eu sou um sujeito solitário. Por melhores amigos, pelas piores pessoas ao meu lado, sempre me sinto solitário. Alguém dever ter escrito alguma coisa sobre isso num tratado do comportamento humano, alguém deve ter sofrido com a solidão. Será que eu sou tão diferente da espécie humana? Quanto tempo uma pessoa suporta me amar de verdade?
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Madeleine está com uma cara de grande decepção. Acaba de chegar da Universidade, onde faria a apresentação do seu projeto. Ela fica no sofá, olhando para o nada. Eu estou do outro lado, esperando qualquer menção de que ela está viva e disposta a conversar sobre qualquer assunto. Ela continua em silêncio, com olhar amargurado. Eu me acostumei a não ficar preocupado com os outros, não sei de onde saiu essa minha mentalidade tão orgulhosa. Dane-se, eu penso.
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"Não passei" – Ela diz sem perceber que eu não estava mais prestando atenção no que ela tinha para dizer.
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Eu me aproximo e mesmo sem menor vontade de ajudar, acabo abraçando Madeleine. Ela tem um corpo forte, não sei como descrever isso. Não era alta, mas tinha os braços musculosos. Não era gorda, mas o corpo era cheio. Os fios de cabelo não eram longos, mas cobria sua cabeça por completo. Tinha olhos fundos, apesar de brilhantes. Um corpo perfumado, apesar de não usar perfume. Tinha um cheiro quando abria a boca, de algo que me incomodava por dentro, me chamava atenção. Naquela confusão toda, de tantas percepções, do tato; beijamos-nos novamente.
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O que nossos corpos sentiam naqueles movimentos? O que estávamos procurando um no outro? Qual vibração nossos órgãos precisariam para se manterem vivos? Continuamos nos beijando, mesmo não havendo nenhuma atração. Às vezes isso acontece, por acaso. Sem intenção e sem qualquer resposta. Dúvidas existem, mas não fazemos questão da pergunta. Saímos entrelaçados por entre os corredores, nos jogamos na minha cama desarrumada. A vida transformando-se num caos. Ficamos saciados por alguns segundos, depois arrependidos.
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Naquele lugar era inevitável uma chuva cair de repente, trazendo consigo um vento gelado e úmido. Pierre tenta se proteger, agarrando-se num amontoado de lixo que alguém da vizinhança havia jogado naquele lugar. Lembrou-se do poema que dizia da transformação em feras quem nas feras quisesse se esconder. Pierre se sentia um lixo, o próprio lixo abandonado; que fazia a cidade feia e mal-acabada. Ele não está preocupado com aquilo, apenas quer se manter vivo. Quer se esconder do frio e na manhã seguinte não ser mais procurado pela polícia. Queria dormir e acordar como uma outra pessoa, como se isso fosse possível como num passe de mágica. Queria não ter conhecido Georges, a pessoa que o colocou nessa vida; quem lhe ofereceu dinheiro para o primeiro assassinato.
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Tenta dormir, mas o sonho lhe persegue. O sonho não é assustador para uma pessoa normal, mas para Pierre aquilo era muito agressivo: ele sonhava com sua mãe, fazendo carinho em seu rosto, lhe chamando pelo nome. Se ele pudesse mandar no sonho diria para sua mãe nunca mais lhe chamar pelo nome verdadeiro. Tinha vergonha, medo, receio do que seu nome era capaz. Maldito meu nome, ele tenta gritar ainda dormindo. Tanto faz qualquer nome, desde que não fosse o dele. O que ele não sabia é que seu crime não seria escondido por qualquer beijo que lhe afagasse o rosto, qualquer boca que lhe chamasse por outro nome. Ou qualquer mão que escondesse o crime. A mão que escolhe o crime pode não escolher também.
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"O que sentiu ontem?" – Madeleine perguntando após acordarem abraçados na manhã seguinte.
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Não queria dizer para Madeleine que nossa relação não poderia existir. Que minha verdadeira e única paixão tinha sido Fernanda. E se falasse sobre isso? Ela está escrevendo minha história, deve saber toda verdade. Eu continuo quieto, achei melhor não responder a pergunta de Madeleine sobre a noite anterior. Ela fica me olhando. Nossa relação era estranha, apesar de estarmos sempre juntos desde quando me mudei para cá. O certo é que conversávamos muito pouco sobre nossos sentimentos.
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"Perguntei o quê significou a noite anterior para você" – Ela insiste na pergunta.
"Não significou nada"
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Ela fica em silêncio. O amor é banal, por isso muitos se divertem com ele. Qualquer coisa banal é mais difícil de explicar do que coisas complexas. Ele desvia o olhar, pela primeira vez desde que conheci Madeleine ela não olha nos meus olhos enquanto estamos conversando.
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"Não significou nada mesmo?"
"Como pode achar que um cara como eu venha ter algum privilégio na vida?"
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A vida e muito parecida mesmo com qualquer livro, basta o escritor ter um pouco de paciência e ir aprendendo com o erro. Como se tornar um grande escritor? Escrevendo. Como se tornar uma boa pessoa? Fazendo o certo. Como amar? Não há explicação melhor para amar, apenas amando. Portanto, creio que da mesma forma que um escritor cria uma forma especial de se comunicar com seus leitores, um homem cria também sua maneira de viver. Eu tenho a minha e ela não servirá de exemplo para mais ninguém.
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"Podemos continuar escrevendo?"
"Não estou me sentindo bem para continuar a história" – Ela diz.
"Está quase acabando"
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Pierre passou alguns dias perambulando pela cidade, como maltrapilho qualquer. Comia restos nas ruas, quando era possível. Vestia-se com o que lhe davam, bebia quase sempre; pois bebida é uma coisa que não falta para ninguém que realmente queira ficar embriagado. Não sabe bem quanto tempo viveu daquele modo, possivelmente alguns anos; quem sabe três ou quatro. Foi andando por várias cidades, sendo esculachado nas praças, dos bares e dos bordéis (frequentava esses lugares quando lhe sobrava algum dinheiro). De repente estava de volta à sua cidade natal, sem ao menos se lembrar quem era.
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Madeleine estava muito triste para continuar escrevendo qualquer coisa. Tem gente que acha que a tristeza em dose certa é um excelente estimulante para histórias como essa que estou querendo contar. É verdade: a tristeza muitas vezes nos revela como a vida é fantasiosa e hipócrita. Como as pessoas são egoístas e falsas. A tristeza nos mostra nossa verdadeira condição no mundo: estaremos sozinhas sempre, lutando contra inimigos que conheceremos ou não, fazendo coisas que gostamos ou não. Deveríamos ter orgulho de nossa tristeza, e talvez por isso seja um dos sentimentos mais humanos e ricos.
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Animais não sentem tristeza. Eles sentem fome, vontade de transar e de se sentirem seguros em algum lugar. Tristeza mesmo somente os homens, que acabam perdendo a vontade tão comum aos outros animais que lutam pela sobrevivência. Animais não sentem ódio, nem vingança. Vingança às vezes se confunde com justiça, ambos são tão subjetivos quanto incoerentes.
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François Mauriac era o nome do escritor que Madeleine falava em seu trabalho. Li algumas folhas de sua tese, estava jogada na mesa da sala, com anotações em vermelho. Era por isso que ela estava desesperada, havia sido reprovada. Eu pego alguns textos, inclusive olho para minha história. Poderia ter acabado logo com aquilo, podia estar livre nesse momento. Fico imaginando que as coisas poderiam ser mais fáceis nesse momento. Ela está tomando banho, combinamos de terminar o livro hoje, amanhã vou embora. Ela aparece na sala.
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"Eu sei que está com problemas, mas gostaria de acabar logo com isso" – Eu insisto.
"Só preciso de mais alguns dias"
"Quero ir embora amanhã"
"Do mesmo modo que não entendi os motivos de escrever uma história que ninguém vai ler, também não entendo sua pressa"
"Você nunca vai entender"
"Se você tentar explicar"
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Não foi difícil que alguém reconhecesse Pierre na cidade. Mesmo depois de tantos anos longe dali, e com o rosto desfigurado, os trajes sujos. Georges estava passando pela rua, quando viu seu amigo jogado na sarjeta. Ele se aproximou, estava com medo de estar enganado. Olha bem nos olhos de Pierre. Ele está cansado, faminto; mal consegue reconhecer a pessoa que começou tudo aquilo, quem o contratou para o primeiro assassinato.
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- Você é o Pierre?
- Sim – (Pierre responde com dificuldade).
- Como veio parar aqui?
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Pierre não sabe como responder aquilo, alias mal sabia dizer seu nome. Georges pega o sujeito, leva para um lugar ali perto, comem um prato de sopa. Georges entrega Pierre num local onde se cuidava dos mendigos, dos maltrapilhos e dos abandonados. Pierre toma banho, recebe roupas novas. Fica no abrigo por alguns dias, recuperando a memória gradualmente.
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Madeleine me olha com ternura, poucas pessoas me olharam assim durante minha vida.
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"Você não sabia realmente quem era?"
"Foi uma época confusa mesmo, sinceramente. Quando me reencontrei com Georges eu estava completamente perdido"
"Como foi lembrar das coisas?"
"Não me lembrei facilmente. Só tinha certeza de uma coisa: a morte de Monique e do velho"
"E esse negócio de saber sobre minha vida? De sermos parentes?"
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Fiquei em silêncio, não havia como me programar para aquela pergunta, bem naquele momento. Levantei, não queria responder nada, ela me acompanha.
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"Vai me dizer que é tudo mentira?"
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Não podia dizer nada para Madeleine naquele instante. Desconverso, digo que precisamos terminar pelo menos mais um capítulo da minha história. É claro que iria pular uma parte, exatamente aquela em que recupero minha memória e os motivos que me fizeram chegar até aqui. Parte daquilo que contei para ela, sobre sua família, era verdade. Outra parte, a mais sórdida, eu deixei oculto. Contei mais uma coisas bobas, do tempo que fiquei no abrigo e os sofrimentos que tive depois que fugi por causa da morte do velho.
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Pierre recupera a memória, em poucos meses sabe exatamente quem é e o que fazia de sua vida. Georges ajuda com algumas coisas, dando roupas e pagando um lugar para Pierre ficar. Mas Georges não fazia isso gratuitamente, pois Pierre era obrigado a participar de várias armações. Pequenos roubos entre outros crimes. Com o tempo suas ambições vão ficando maiores, como também suas ações vão ficando mais arrojadas e perigosas.
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Resolveram assaltar um banco, crime que crescia assustadoramente na cidade devido ao desenvolvimento do comércio na região. Já não estavam satisfeitos com linhas, tecidos e grãos, queriam também moedas. Num desses planos, Georges leva um golpe violento, é preso. Pierre sabe que é uma questão de tempo ser capturado. Por forte tortura Georges indica o esconderijo. Pierre pega o que pode, sai correndo em disparada pela madrugada, quanto mais longe ficasse, mais seguro estaria.
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Carrega consigo alguns documentos que pertenciam ao Georges, inclusive um testamento e outros documentos pertences pessoais, fotografias e anotações que Georges fez durante a procura de sua filha. No meio dos documentos uma carta para Pierre, onde o amigo dizia que caso alguma coisa acontecesse, que procurasse a filha e entregasse o testamento. Olhando para os documentos não foi difícil saber onde estava a filha de Georges.
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Nesse momento da história, não passava pela cabeça de Madeleine que ela seria a filha do homem que me colocou no mundo do crime e que me entregou para a polícia.
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A história que poderia ter um final feliz, acabou contando com um elemento que Pierre não considerava em sua fuga: Os policiais já sabiam onde Pierre estava. Georges acabou acreditando na promessa dos policiais e disse qual era o plano de fuga do seu comparsa. Não conseguiu receber a recompensa, pois morreu dois dias depois de dizer onde poderia estar Pierre.
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"Seu amigo te traiu?"
"Muito pior do que isso"
"O que aconteceu?"
"Tive que entregar todo o dinheiro, fui torturado e humilhado"
"E depois?"
"Depois de cinco anos de cadeia, mandaram-me novamente para a sarjeta. Acabei conseguindo abrigo e emprego com um antigo amigo"
"Entendo porque é desse jeito"
"Desse jeito como?"
"Sem esperança"
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27
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Não havia muito mais do que comentar em minha história, estava ali junto com Madeleine para me vingar do meu amigo Georges. Mas as coisas não são tão fáceis assim, às vezes nossos desejos são sobrepostos por desejos muito mais fortes e bonitos. Georges me entregou para os policiais, e nem foi torturado como eu havia pensando. Disse onde eu estava, pois pensava que assim conseguiria a liberdade para encontrar-se com sua filha Madeleine. Ele nunca amou sua filha, tinha somente um estranho sentimento, de quem sempre esteve ausente, de quem desistiu de uma batalha. Ele sentia isso mesmo: a dor de um derrotado. Eu sei disso pois também me sinto um derrotado. Não há outra explicação para estar aqui, esperando uma oportunidade para me vingar.
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Em alguns pensamentos surgia a figura inocente de Madeleine. Afinal, se ela soubesse a história do pai, também o odiaria. Isso era o bastante para que ajuntássemos nossas forças e amaldiçoássemos Georges por toda existência. Não quero isso, não quero trabalhar com mais ninguém. Prometi na cadeia que trabalharia sozinho, pelos menos princípios e desejos. Para o bem e para o mal, não importa. Fui criado assim, vivi assim; meu desejo ficou assim. Tão humano que me sinto envergonhado, sinto-me derrotado. Derrotado pelo meu desejo, pela minha fraqueza; pela minha vontade de desejar e fazer mal para Georges, onde ele estivesse.
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"Podemos terminar amanhã?" – Madeleine me pergunta.
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Eu estou com meu pensamento longe, imaginando o fogo e a maldade que sofri durante minha prisão. Para mim seria fácil, depois que achei o paradeiro de Madeleine, me aproximar e fazer tudo que eu pensei durante todos os dias que fiquei na cadeia. Só não podia me envolver daquele jeito, sento cruelmente acariciado, com tantos cuidados. Meu coração sangrava mais com o amor de Madeleine do que se ela tivesse me ignorado completamente, colocando-me para fora de sua casa com chutes e pontapés. Como eu torci para que ela revidasse, que ela partisse com alguma coisa na mão, querendo me matar. Aquele dia que invadi sua casa, queria mesmo que ela me odiasse também. Seria muito mais fácil e rápido. Eu estava pronto para fazê-la sangrar, como havia sonhado muitas vezes.
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"O que me diz? Podemos escrever sua história amanhã?"
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A pergunta voa pelos meus pensamentos, sua voz doce e suave. Queria que ela se irritasse comigo, que me fizesse perguntas sobre Georges, queria que ela soubesse meus motivos de estar ali. Ela iria se defender, tentaria escapar das minhas mãos. Eu seguraria seu pescoço, como pensei em segurar o pescoço de Georges caso ele estivesse vivo. Meus olhos brilham com essa possibilidade, de vê-lo perdendo o ar; pedindo perdão por tudo que me fez. Não é possível, ele não está mais aqui. Mas está sua filha, sangue do seu sangue. Olho novamente para Madeleine, tenho absoluta certeza que ela não imagina o que estou pensando. Inferno! Com ela é diferente, não sinto ódio; não a vejo como qualquer coisa ligada ao Georges.
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"Vou dormir, já que está tão quieto. Amanhã continuamos"
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Madeleine está dormindo, eu prometi que nunca mais entraria em seu quarto. Tenho prometido tantas coisas, não sei se devo cumpri-las. Ela não se mexe, realmente está cansada. Eu me aproximo, com mais suavidade do que da outra vez. Ela não deveria acordar assustada. Não ventava. Queria abraçar aquele corpo pela sensação que eu nunca mais havia sentido. Nenhuma cena me atormenta, nem mais qualquer desejo. Ela acorda:
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"Escutei novamente um barulho estranho"
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.FIM